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Bruna Frascolla

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Opinião

Crise de 2008 e Síndrome de São Jorge Aposentado: a origem dos movimentos identitários

Uma vez mortos todos os dragões das discriminações, o mundo anglófono estaria desorientado como São Jorge sem dragão. (Foto: Pixabay)

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Que hoje vivemos um efeito bolha em nosso próprio país, é difícil discordar: no que depender do jornalismo comum, sobretudo televisivo, aprendemos que o Brasil é um país racista, machista, homofóbico e transfóbico, recentemente vítima de genocídio, porém disposto a melhorar por meio de embromação progressista. Os pobres estariam representados em "Bacurau", de Kléber Mendonça: vivem amor livre, usam drogas e adoram bandido. Evangélicos? São todos homens brancos cis hétero, portanto ricos. A eleição de Bolsonaro em 2018 é um verdadeiro mistério, resolvido apenas com um feitiço lançado pelo WhatsApp. Mas, para começo de conversa, nem na classe média é verdade que a maioria das pessoas conhece ou entende a nova ortodoxia moral que guia redações.

Se entender o nosso próprio país já está difícil, quanto mais entender os países alheios. Para estas duas coisas serve o mais novo livro de Douglas Murray, “A loucura das massas”. Ajuda a nos entender porque trata de um mal de que também sofremos e que foi gestado no mundo anglófono. Esse mal é a imposição vertical de uma nova religião ou metafísica segundo a qual brancos oprimem estruturalmente negros, homens oprimem estruturalmente mulheres, heterossexuais oprimem estruturalmente homossexuais e, por fim, pessoas cis oprimem estruturalmente pessoas trans. Cis é como são chamados todos os que não são trans. Ou seja, Foucault é cis, Deirdre McClosckey é trans. Se vivo, Foucault oprimiria McCloskey, e todos nós oprimimos Laerte.

O “estruturalmente” implica que a opressão independe de escolha individual: a menos que você seja uma mulher negra trans lésbica, você é machista, racista, transfóbico e homofóbico. Como empurrar isso de uma vez para as pessoas é difícil, a imprensa brasileira tem batido no slogan de que todo branco é racista, uma vez que o Brasil é estruturalmente racista. As ideias que Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida e outros repetem como se fossem deles são, na verdade, o conjunto de slogans do progressismo dos EUA. Uma vez que você tenha a cor de pele certa e boas relações, está qualificado para repetir slogans e ser vendido como pensador – quando não passa de uma peça de montagem retórica.

No mundo anglófono, essa moral tem muito mais penetração na sociedade e no governo do que aqui. Lá, alcançou as massas. Eis a loucura das massas, descrita por Douglas Murray logo na introdução do livro:

“Estão nos pedindo que acreditemos em coisas inacreditáveis e nos dizendo para não objetar a questões (como dar drogas a crianças para evitar que entrem em puberdade) sobre as quais a maioria de nós se opõe intensamente. A dor que surge dessa expectativa de permanecer em silêncio em algumas questões importantes e dar saltos em outras é tremenda, também porque os problemas (inclusive as contradições internas) são muito evidentes. Como pode atestar qualquer um que tenha vivido sob o totalitarismo, há algo de degradante e destruidor da alma na obrigação de aceitar que são verdadeiras as alegações nas quais você não acredita e que não se podem provar verdadeiras. Se a crença é que as pessoas devem ser vistas como tendo o mesmo valor e merecendo a mesma dignidade, pode ficar tudo bem. Se lhe pedem, no entanto, para acreditar que não há diferença entre homossexualidade e heterossexualidade, homens e mulheres, racismo e antirracismo, então, depois de algum tempo, isso o levará ao desespero. Esse desespero – ou loucura das massas – é algo que estamos atravessando e do qual realmente precisamos tentar sair”.

Causas sociais dessa nova metafísica

É bem sabido que tais despautérios tiveram origem acadêmica. Mas a academia inventa um monte de coisa e nem todas vão para a imprensa e corporações. Ainda por cima, os estudos de gênero, raça, etc. (os inventores da nova metafísica) são cursos bem periféricos dentro da maioria das universidades. O que explica que seus dogmas tenham saído de salinhas modestas para o centro da vida pública nos Estados Unidos e na Inglaterra?

Douglas Murray tem algumas hipóteses, todas complementares. Para ele, um fator preponderante foi a crise de 2008. Ela estaria para o identitarismo assim como a crise de 1929 esteve para o fascismo e o comunismo. “O poder de atração desse novo conjunto de crenças é bastante óbvio”, diz Murray. “Não está claro por que uma geração que não consegue acumular capital deveria sentir algum amor pelo capitalismo.” Assim, em meio ao empobrecimento dos norte-americanos, tal como no empobrecimento dos europeus, a obsessão pela ideia de justiça social encontra terreno fértil. Teria sido, então, a partir de 2008 que o identitarismo vem ganhando espaço na vida pública.

Outro fator seria algo chamado Síndrome de São Jorge Aposentado. Uma vez mortos todos os dragões das discriminações (racismo, machismo e homofobia), o mundo anglófono estaria desorientado como São Jorge sem dragão. Por isso inventaria uma opressão nova (a transfobia), e redefiniria as finalidades das causa gay, feminista e negra. O livro é orientado pelas transformações das demandas de cada movimento desse, começando do movimento gay (que degenerou em queer), passando para o feminista (que agora exige que a mulher seja sexy sem ser sexualizada), o negro (que trocou o sonho de Martin Luther King por um racismo antibranco) e o trans (que foi inventado agora e se dedica a castrar crianças quimicamente e a apagar as mulheres).

Um fator que pesa é a internet ter diluído as fronteiras entre vida privada e o mundo, de maneira que uma selfie feita para ganhar uns likes dos amigos pode ser vista pelo mundo inteiro, e linchada. Diluídas essas fronteiras, as pessoas começam a afetar adesão à nova ortodoxia para os amigos, porque nunca se sabe se o planeta está de olho em você.

Por último, e não menos importante, há a adesão do Vale do Silício. As Big Techs, lá sediadas, aderiram à nova fé e são grandes prosélitos. Os usuários do Google em línguas europeias de países ricos (inglês, francês, alemão), ao pesquisarem imagens de “família feliz branca”, se deparam com famílias mestiças ou famílias de casais gays. Ao pesquisar “casal heterossexual”, encontra casais gays. Procurando “arte europeia”, encontra um retrato que Velásquez fez de seu assistente Juan de Pareja, um mestiço meio mouro (que os anglófonos, Murray incluso, consideram simplesmente negro, pois pensam conforme a one drop rule).

Além dos rios de dinheiro que esses prosélitos têm para usar na causa, há até mesmo uma máquina de inteligência artificial para corrigir vieses humanos. Trata-se da MLF, sigla de Machine Learning Fairness, a justiça aprendida por máquinas. Se quando o anglófono diz "homem" pensa num homem branco, isso é viés. Esse tipo de viés é inerente à humanidade e é improvável que um japonês não pense num homem japonês ao pensar em "homem". Essa nova justiça mecânica seria então superior à justiça humana, porque programada para ser isenta de vieses. Por causa da implementação da MLF, os resultados do Google Imagens estavam tão esquisitos – e se você achou esquisito, isso só prova como você é racista e odeia gays, ao contrário da máquina. Que substituto para justiça divina!

Tal justiça é ancorada num teste de Harvard chamado IAT (Implicit Association Test), ou teste de associação implícita, em que um computador decidirá se você tem preconceitos ou não. A partir da premissa de que se pode medir tal coisa a ferro e fogo, surgiram os cursos “antirracistas” para o mundo corporativo, bem como essa belezura do Google.

Paremos de romantizar o mundo rico

Há livros rasos que cabem em resenhas. Não é o caso deste, e muita coisa vai ficar de fora. Algo que não posso deixar de registrar, porém, é que esse livro é uma fonte para nos inteirarmos do estado de coisas em países ricos. (Assim como os livros de Dalrymple, que lembrei ao tratar do caso do menino Henry).

A Inglaterra está parecendo uma republiqueta de bananas, uma Argentina com dinheiro. Eles têm um cargo de Ministra para Mulheres e Igualdades e, segundo nos conta Murray, tal cargo foi ocupado por uma criatura (Lynne Featherstone) que incitou publicamente o Observer a demitir uma feminista (Julie Burchill). A causa? Transfobia. O Observer publicara um artigo em que essa feminista defendera outra (Suzanne Moore) das ofensas de militantes trans, dizendo que ambas não ouviriam sermões de “caras vestidos de mulher”. O Observer pediu desculpas e tirou o artigo do ar. Nem no Brasil petista tivemos história assim. Aqui, político só censura jornal grande por via judicial.

Reclamamos muito da burocracia para contratar trabalhadores e da dificuldade em pagar impostos. Enquanto isso, os empregadores ingleses têm que prestar contas da folha de pagamento e da raça dos funcionários ao Estado. Aos incrédulos, cito Murray:

“No Reino Unido, todas as organizações com mais de 250 funcionários devem publicar a diferença média de salário entre homens e mulheres. Em 2018, parlamentares sugeriram que todas as empresas com mais de cinquenta funcionários fornecessem a mesma informação”.

Ainda segundo Murray, o que os empregadores observaram foi a contratação de indivíduos de elite. Como os políticos também se empenharam em “diversificar” os seus partidos, ele pôde dar nomes públicos de gente com esse perfil: os partidos ingleses atraíram pelo menos uma sobrinha de primeira ministra de Bangladesh e um sobrinho de vice-presidente da Nigéria.

Há, porém, problemas de riqueza. O SUS da Inglaterra, o NHS, se empenhava em receber uma onda súbita de meninas adolescentes que alegavam ter alma de menino e queriam mudar de sexo. Eram prontamente atendidas e castradas quimicamente. Murray antevia uma série de processos contra o Estado e, quando o livro saiu, ainda não se tornara público o desfecho do caso de Keira Bell.

“Oh”, dirá o leitor liberal, “mas isso é porque eles são estatistas. Bom é nos EUA, que não tem essas coisas!” Nos EUA, é pior ainda. O Estado arrecada, mas, em vez de se responsabilizar, dá o dinheiro para ONGs, bem ao estilo chavista e petista, que consiste em atuar por órgãos paraestatais irresponsáveis. O NHS tem orçamento e pessoal limitados, e não consegue atender à torrente de meninas que querem ser castradas. Já os EUA dão dinheiro para uma louca que ensina crianças de 8 anos que elas podem ser como um bombom numa embalagem errada e que interpreta o choro de um bebê como “manifestação de gênero”.

Essa louca se chama Johanna Olson-Kennedy, do Centro de Saúde e Desenvolvimento de Jovens Transgêneros do Hospital Infantil de Los Angeles. “Trata-se”, diz Murray, “da maior clínica juvenil transgênero nos EUA e é uma das quatro beneficiárias do fundo, financiado pelos contribuintes, do Instituto Nacional de Saúde para um estudo de cinco anos sobre o impacto de bloqueadores de puberdade [i.e., bloqueadores hormonais, usados em castração química] e hormônios [do sexo oposto] em crianças. Um estudo para o qual, aliás, não há grupo de controle”. A idade mínima é doze anos.

Perante esse tipo de informação, temos duas opções. Uma, a dos covardes, é sentar no chão e chorar, porque os países grandões e idealizados estão na pior e não podem nos salvar. A outra é se olhar bem no espelho, reconhecer pontos positivos, dar valor a eles e não baixar a cabeça. Até porque é fácil brigar quando sabemos estar com a razão.

PS: A tradução da Record deveria ser melhor e mais revisada. Traduzir assume como assumir e riscar o verbo presumir do dicionário é erro de iniciante. E Damore fez um memo, ou seja, um memorando, em vez de um meme.

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