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Ao que parece, o ano que vem será um tedioso déjà-vu do ponto de vista intelectual. Sílvio Almeida, por exemplo, irá cuidar dos direitos humanos. Em abril deste ano resenhei o livro dele sobre “racismo estrutural”. Eu já tinha me esquecido de como era ruim. Você pode se lembrar também, clicando aqui. Essa mesma resenha, junto com alguns outros textos meus e de Flavio Gordon publicados aqui, saíram na obra A crise da política identitária (Topbooks, 2022), organizada por Antonio Risério. Outro colega de Gazeta, mas que aparece com texto inédito, é Eli Vieira. Além de nós, a coletânea inclui uma porção de textos de esquerdistas, e até de liberais de modess, que no mínimo põem em questão o identitarismo – no máximo, o rechaçam em absoluto. O mínimo, é claro, fica por conta dos liberais de modess. São eles os mais afeitos à political correctness importada dos EUA, e ficam pedindo desculpas para se opor aos “excessos” do movimento. Estou contando isso porque há quase dez anos escrevo contra o racialismo; e de lá pra cá passei de minoria obsessiva a feijão com arroz. Tão feijão com arroz, mas tão feijão com arroz, que até mesmo eleitores de Lula que acham Bolsonaro o Cão põem a boca no trombone para reclamar do identitarismo. No atual estado de coisas, quem tem independência intelectual é contra o identitarismo. Ponto. O problema é que independência intelectual está em falta – na verdade, até intelectual mesmo está em falta. Hoje temos uma porção de chacrete alçada a “personalidade pública” e as personalidades públicas repetem opiniões uníssonas, não raro mostrando a bunda.
Ninguém que pense no assunto engole esse negócio. Mas pouca gente pensa no assunto, e as chacretes-intelectuais estão aí para dar a falsa sensação de consenso e hegemonia intelectual.
“Igualdade racial” convive com o racismo
Pois bem. Teremos Sílvio Almeida cuidando dos direitos humanos. Sílvio Almeida não reconhece a noção de humanidade, porque é universal, e, se é universal, é branco. Além disso, como mostrei na minha resenha, ele considera o racismo parte normal da sociedade. Aquilo que o código penal pune como racismo ele não considera racismo, mas “discriminação direta”. Por outro lado, fazer um processo seletivo cego, que ignore a cor dos candidatos – como um vestibular, por exemplo –, é discriminação indireta. Os homens só podem ser pensados segundo a sua raça; assim, está fora de questão acabar com o racismo, que é estruturante da sociedade.
Por isso eles apagam a ideia de “combate ao racismo” e colocam a “igualdade racial”. Vou contar um causo antigo repetido pelo publicitário João Silva, criador das logomarcas do Olodum e de Collor na eleição presidencial. Baiano autodeclarado negão, de origem humilde, macumbeiro, ele sempre foi ligado ao movimento negro local e, na juventude, à esquerda. Apoiava os petistas quando eles não tinham poder e o carlismo estava em alta na Bahia. Fez a logomarca do Olodum por amor à causa; a de Collor, por trabalho. Não briga comigo quando digo que ele é mulato, pois é desbotado demais para ser negão. Ofensivo mesmo, segundo me explicou, é dizer que tem tinta ruim ou tinta fraca, em vez de pouca tinta. Naturalmente, estou contando o causo com autorização, e ele mesmo já contou em longas entrevistas nas quais o entrevistador sempre pinça o que parecer mais importante.
O causo é o seguinte: feliz com a chegada ao Planalto de um presidente comprometido com a causa antirracista, João Silva foi à recém-criada SEPPIR (Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial) de Lula oferecer o seu selo “Racismo, aqui não!”. A ideia dele era simples e eficaz. Segundo me explicou, o racismo muitas vezes é praticado pelos funcionários de estabelecimentos comerciais, que resolvem tratar mal o cliente em função da sua cor sem que o patrão tenha a menor ciência disso. Depois, o cliente ofendido processa a loja e o patrão, muitas vezes um antirracista convicto, paga a conta pelo funcionário metido a besta. Assim, para se blindar de processos e, ao mesmo tempo, lembrar ao funcionário que racismo é errado, ele criou o selo “Racismo, aqui não!” para ser afixado em estabelecimentos comerciais. O selo trazia o círculo estrelado da nossa bandeira e, em vez de “Ordem e Progresso”, lia-se “Racismo, aqui não!”.
A SEPPIR achou a ideia ótima, exceto pela palavra “racismo”. Só poderia trocando “racismo” por “igualdade racial”. A palavra “racismo” estava riscada do vocabulário petista… até o PT virar oposição e passar a chamar tudo e todos de racista, para perplexidade de João.
Elementar, meus caros
Agora o PT está em vias de voltar ao Planalto e já apareceu ela de novo, a Igualdade Racial. Em vez de SEPPIR, será Ministério da Igualdade Racial, com Aniele Franco à frente da pasta. As credenciais de Aniele Franco consistem na condição de irmã de Marielle Franco, que por sua vez se tornou conhecida nacionalmente após ser assassinada. Aí, as TVs tiveram de informar que se tratava de uma vereadora do PSOL carioca.
Antes de ler o livro de Sílvio Almeida, a história de João Silva parecia apenas sinistra. Depois de ler o livro de Sílvio Almeida, parece somente elementar. Se o racismo é intrínseco à estrutura da sociedade, combater o racismo está fora de questão. Em vez disso, há a meta da igualdade estatística entre grupos demográficos categorizados segundo a raça. Não se trata mais de fomentar oportunidades básicas para brasileiros sem ligar para a cor: isto seria, segundo a filosofia de Sílvio Almeida, “discriminação indireta”. Trata-se de etiquetar cada brasileiro com uma raça e guiar políticas públicas pelas estatísticas. Trocando em miúdos, botar tribunal racial em tudo.
As origens disso são estrangeiras e vêm dos EUA; mais precisamente, das infames leis Jim Crow, de segregação racial.
A Constituição dos EUA afirma a igualdade e não menciona cor. Por isso, foi preciso que o STF lá deles (do qual o nosso é imitação…) desse uma decisão que contrariasse a Constituição e liberasse uma gambiarra que concilia igualdade e racismo. Cito o clássico Uma gota de sangue, de Demétrio Magnoli: a decisão “Plessy versus Ferguson, de 1896, consolidou a doutrina jurídica do ‘separados, mas iguais’ (separated, but equal), que serviria como sustentáculo para leis segregacionistas. Na Louisiana, antes da consolidação da regra da gota de sangue única, uma lei estadual separava os trens de passageiros em vagões para brancos, colored (mulatos, no caso) e negros. Homer Plessy, cidadão de Nova Orleans com um oitavo de ancestralidade negra, que participava de um pequeno grupo disposto a desafiar na justiça as Leis Jim Crow, embarcou num vagão para brancos, declarou aos funcionários sua condição racial e foi preso por não aceitar transferência para um vagão reservado aos colored. O caso foi levado à Corte Suprema, que julgou Plessy com base no argumento de que as acomodações eram iguais e, portanto, não violavam a 14ª emenda” (p. 122).
Por aí vocês veem aonde se quer chegar. O verdadeiro nome do ministério deveria ser Ministério dos Separados, Mas Iguais.
Miscigenação brasileira histórica
Felizmente a história do Brasil não facilita a implementação desse tipo de política. Por aqui, as Coroas Espanhola e Portuguesa ficaram incumbidas pelo Vaticano de trazerem a boa nova aos índios. Os espanhóis se depararam com um império; os portugueses, com umas tribos da pedra lascada que trocavam madeira por metal e aceitavam se casar. Casaram-se, fizeram filhos e começaram o Brasil assim. Depois vieram os negros em condição escrava; mas, diferentemente dos EUA, aqui existia a possibilidade de receberem a alforria e casar com pobres de outras cores, fazendo às vezes descendentes mulatos que chegavam às mais altas posições na Corte. A Igreja nunca proibiu o casamento de católicos de sexos opostos; não existia interdição racista. Quanto aos negros puros, é difícil pensar numa figura norte-americana análoga a Cruz e Souza, o filho biológico de escravos pretos que foi adotado pelos senhores brancos que não conseguiam ter filhos.
O resultado disso foi uma miscigenação generalizada que impede categorizações fixas e precisas. Esse sistema que Sílvio Almeida quer implementar depende de classificação racial. Já no primeiro vestibular com tribunal racial da UnB, classificaram dois gêmeos idênticos como negro e branco. Isso significa que os racialistas precisam dar tratos à bola e fazer das tripas coração nos tribunais raciais. Como isso tudo é assunto velho e gasto, vocês podem ler esta matéria formidável de março de 2021 deste jornal sobre os critérios malucos dos julgadores.