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Bruna Frascolla

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Darcy Ribeiro: leal a Rondon ou a Vargas?

Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro: leal a Rondon ou a Vargas? (Foto: Reprodução)

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Um nome amiúde celebrado por patriotas brasileiros é o de Darcy Ribeiro. Desde quando li a biografia de Rondon escrita por Larry Rohter, porém, tenho um tremendo pé atrás com Darcy Ribeiro, seja em matéria de nacionalismo, seja em matéria de antirracismo. Ao contrário de Darcy Ribeiro, Cândido Rondon é uma figura que não recebe dos letrados brasileiros um décimo da atenção merecida. Mestiço fluente em línguas indígenas nascido no Mato Grosso quando este não tinha comunicação com o Rio de Janeiro (era preciso descer o Rio da Prata e sair no Atlântico para chegar à capital do Império), militar, republicano, humanista, positivista, pacifista, Rondon abriu o território nacional sem matar um índio, valendo-se de trocas de presentes, talento antropológico e conhecimento linguístico. Einstein quis que fosse indicado ao Nobel da Paz.

Um dos feitos de Rondon foi a criação em 1911 do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que mudou de nome no final de 1967 e virou Funai (Fundação Nacional do Índio). Em 1967 o país estava sob Castello Branco. Por que mudar o nome de uma instituição com origem tão auspiciosa? Os militares adoravam de Rondon, até criaram um projeto com seu nome para levar universitários para prestar serviços nos interiores do país.

Abrilhantaram o nome do SPI os irmãos Villas-Bôas, Curt Nimuendaju (ou Curt Unckel) e o próprio Darcy Ribeiro, que seguiu Rondon na presidência do órgão. A resposta, verdadeira e simples, é que o SPI mudou de nome porque seu nome passou a designar uma coisa muito ruim. Após assumirem a presidência do país, os militares mandam inspecionar o status quo dos órgãos burocráticos.

O procurador Jader Figueiredo, encarregado de vistoriar o SPI, volta com um relatório de gordo amparo documental, fotos inclusas, fazendo saber da escravização, tortura seguida de morte e, numa palavra, verdadeiro genocídio indígena com requintes de crueldade praticado por funcionários do SPI em conluio com fazendeiros. Trata-se do Relatório Figueiredo, que ficou famoso na Comissão da Verdade e vocês podem acessar aqui.

O que aconteceu?

Os militares encerraram a SPI e eu confesso que não sei que fim levaram os criminosos. Tampouco sei como uma instituição de histórico prévio tão bom, com uma gente tão humanista, de repente se transformou num antro de psicopatas a serviço de limpeza étnica. O que eu sei é que esse vergonhoso episódio da História Brasileira é pouco estudado, e, de certa forma, desestudado. De maneira que está além das minhas capacidades saber o que aconteceu. O máximo que posso fazer é apontar o dedo para o fato e torcer para que alguém com tempo e meios se empenhe em investigá-lo. Seria tema ideal para um trabalho acadêmico, mas a academia hoje é essa coisa aí que é melhor nem comentarmos.

Digo que é um assunto desestudado, além de simplesmente não-estudado, porque a primeira coisa que você encontra ao procurar pelo Relatório Figueiredo é o material da História Alternativa da Comissão da Verdade. Como os militares interromperam em 67 uma série de torturas e assassinatos que ocorria sabe Deus desde quando, isso implica que em 64, 65, 66 e 67 houve violações dos direitos humanos praticadas por agentes do Estado brasileiro. Então deram um jeito de botar o Relatório Figueiredo no meio da Comissão da Verdade.

A Comissão da Verdade foi aquele circo armado por Dilma Rousseff e PCdoB voltado a dar indenizações gordíssimas pra terrorista e a martelar na cabeça do público a História Alternativa segundo a qual os terroristas só lutavam contra a ditadura porque queriam instaurar a democracia. Os terroristas são anjos; os militares, demônios. E para a demonização dos militares serviu o Relatório Figueiredo, que mostra que os índios também sofreram nesse período demoníaco da História. No mais, serviu para as ONGs donas de índios ganharem dinheiro junto os terroristas.

Isso omite, naturalmente, o fato de que os abusos do SPI vinham de décadas. As primeiras denúncias formais surgiram na década de 50. O Ministério da Agricultura engavetava tudo e o prédio da SPI pegou fogo, eliminando provas. Durante a democracia tentou-se uma CPI, que não deu em nada. Com o golpe de um governo autoritário, que desconhecia travas democráticas, a SPI foi desfeita e a operação de limpeza étnica cessou. Não estou defendendo ditadura como um modelo ideal (já que ditaduras em geral são melhores em limpezas étnicas do que democracias), mas este me parece um raro caso em que uma intervenção ditatorial teve um efeito benéfico evidente.

Havia justificativa intelectual

Como os leitores desta Gazeta sabem muito bem, no mundo Ocidental grandes matanças amiúde têm justificativa intelectual. A Comissão da Verdade, além de jogar tudo na conta dos militares malvados e dos fazendeiros “latifundiários”, faz crer que não havia uma justificativa intelectual para o genocídio indígena. Matavam por serem capitalistas e malvados.

Pois bem: no começo do século XX a oligarquia cafeicultora paulista tinha, a oeste do estado de São Paulo, terras indômitas das quais eram senhores os “índios bravos”. Eles eram uma variável humana que, acrescida aos alagamentos do Pantanal e as brenhas da Mata Atlântica, impediam a comunicação do Mato Grosso com a capital do Brasil.

Os paulistas importaram um naturalista alemão chamado Hermann von Ihering, que falava sem peias na extinção física dos índios bravos, raça atrasada que deveria ceder espaço a uma raça superior. Isso foi no começo da República, décadas antes de Hitler chegar ao poder. Desde o começo do século, parte da mentalidade alemã já não era flor que se cheirasse. Do seio daquele povo brotam também vigorosas reações, tal como Curt Nimuendaju, que vivia entre os índios brasileiros e se opunha a von Ihering. Outro opositor evidente, público e notório era o nosso militar pacifista Rondon. Os paulistas deram a direção do Museu Paulista para esse sujeitinho propagandista de genocídio.

A elite paulista não era o único grupo político racista atuante. Getúlio Vargas, embora fosse opositor dos paulistas, também trazia consigo bajuladores de teorias racistas importadas. Sua simpatia pelo nazismo está já bem documentada pelo seu biógrafo Lyra Neto, bem como a razão de sua perseguição aos colonos alemães do Sul. Estes eram opositores do padrinho político de Getúlio, Júlio de Castilhos.

Assim, enquanto prendia donas de casa por falarem alemão a pretexto de combate ao nazismo, o Estado Novo emitia circulares secretas no Itamaraty para impedir o refúgio de judeus no Brasil e cooperava secretamente com a Gestapo para entregar judeus comunistas. Uma das vítimas foi Genny Gleizer, uma judia romena de apenas 17 anos deportada para a Alemanha Nazista pelo Estado Novo. Genny tinha uma irmã chamada Berta, a qual se casou com o getulista Darcy Ribeiro.

Oliveira Vianna, arianista que antes servira à intelectualidade paulista como pensador oficial, mudara-se para pensador oficial do Estado Novo. A ele juntava um egressos da ala racista do integralismo, minoritária: o arianista Gustavo Dodt Barroso, cearense filho de alemã. Essa ala tinha uma figura menor chamada Abdias do Nascimento, membro da corrente racista negra. Este teria grande fortuna intelectual graças à USP e à Fundação Ford. Na política, seria senador, eleito suplente em chapa com Darcy Ribeiro.

Embora seja uma fonte muito boa para tratar de Rondon no SPI, o livro de Rohter comete o erro imperdoável e incompreensível de chamar Gilberto Freyre de ideólogo oficial do Estado Novo e defensor de um racismo que considera o mestiço brasileiro superior. Rohter não entende nada de Freyre, nem de Estado Novo. Gilberto Freyre era udenista e se autoexilou no Golpe de 30. Em “A História da Bahia”, Luís Henrique Dias Tavares relata a queima pública pelo interventor da Bahia de exemplares de 'Casa Grande & Senzala'.

O arianismo de Oliveira Vianna defendia um embranquecimento progressivo da população brasileira através da miscigenação clareadora. A imigração de negros também foi vetada pelas circulares secretas do Itamaraty. Quanto aos judeus, sua entrada é indesejada, dentre outras razões, por formarem “quistos raciais”, sem se dissolverem na população brasileira rumo ao embranquecimento. (Para as circulares secretas, leia-se “O antissemitismo na Era Vargas”, de Maria Luiza Tucci Carneiro.)

Assim, é bom termos bem claro que a propaganda getulista mentia para a população brasileira quando elogiava a nossa cultura tal como era. A ideologia secreta, porém documentada, do Estado Novo era a do arianismo.

Darcy com Rondon no SPI

Os interessados na cronologia de Rondon no SPI terão, portanto, a obra de Rohter para consultar. Resumidamente, podemos dizer que Rondon e Vargas nunca se gostaram, e que Rondon era grande demais para ser jogado para escanteio, de modo que desde 1930 até o dia de sua morte ele ficou num entra e sai. Rondon parece ter acreditado na propaganda oficial em alguns momentos, embora pareça também ter tido em mente que a convicção original de Vargas era a de os índios bravos deveriam ser mortos. Em meio a esse balé político, Vargas promovia a Marcha Para o Oeste, estimulando os brasileiros a ocuparem terras bravias. Uma doutrina do Lebensraum à brasileira?

Quem ficava mediando a relação entre Getúlio e Rondon? Darcy Ribeiro, que ingressara no SPI em 1947, caíra no gosto de Rondon, sempre se mantivera em atividades de campo e crescera dentro do órgão.

Agora leiamos um trecho da seção “Desindianização” de “O Povo Brasileiro”: “O estudo que realizamos para a UNESCO, esperançosos de apresentar o Brasil como um país por excelência assimilacionista, demonstrou precisamente o contrário. O índio é irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre com o cigano ou o judeu. Mais perseguição só os afunda mais convictamente dentro de si mesmos. […] A incorporação de indígenas à população brasileira só se faz no plano biológico”. Se um varguista compara índio a judeu na condição de formador de “quisto” dentro do Brasil, e se essa pessoa esteve à frente da proteção dos índios, devemos ficar com o pé atrás.

Na sequência, Darcy Ribeiro comete o despautério de comparar a catequização indígena ao extermínio: “Na primeira metade [do século XX], a situação indígena brasileira era altamente conflitiva. Missionários se apropriavam das terras dos índios que catequizavam e as estavam loteando, com grande revolta dos índios. […] O próprio diretor do Museu Paulista e eminente cientista pediu ao governo que optasse entre selvageria e civilização. Se seu propósito era civilizar o país, cumpria abrir guerras de extermínio com tropas oficiais para resolver o problema.” Esse “eminente cientista” é von Ihering. Seria este parágrafo a sua maneira de descrever o genocídio operado pelo SPI enquanto trabalhava nele?

Na versão de Darcy Ribeiro, Rondon então seria o humanista mor pelo “estabelecimento pioneiro do princípio […] do direito à diferença”, que se traduziria em reserva indígena. No frigir dos ovos, ele o transforma no pai dos zoológicos humanos. E as reservas são como quistos não-brasileiros dentro do Brasil. Se der na telha, pode-se aplicar a eles o princípio do Lebensraum (espaço vital), que, segundo Darcy Ribeiro no mesmo livro, fora cogitado por Hitler na Amazônia.

Darcy Ribeiro cita nominalmente von Ihering uma vez. Chama a atenção que o descreva só como errado quanto aos fatos, e nunca quanto à moral. Sequer chama de genocídio o que ele defendia. Desculpável, “o sábio Hermann von Ihering” tinha uma “visão deturpada” e uma “paixão por defender seus conterrâneos alemães”. Tal como para Vargas, para Darcy tudo é culpa dos colonos alemães; parece até que Ihering era diretor de um Museu de Joinville e não Paulista.

Com meus botões, creio que a SPI foi aparelhada por varguistas, e isso explica a sua conversão numa máquina de limpeza étnica. Acho também que o nome de Darcy Ribeiro intimida investigações. Mas não posso provar nada, e só me resta torcer para que um dia o país avance no conhecimento do seu passado recente.

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