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Se o leitor não sabe das polêmicas da internet, parabenizo-o. Tem boas chances de não ser um doente mental na época em que ser doente mental é normal. O problema é só que ninguém é uma ilha, então é bom se inteirar do que está acontecendo no mundo – sobretudo com as gerações mais novas. Por isso conto que estavam xingando muito a revista Time no Twitter por ela ter usado pronomes malucos para se referir a alguém que faz questão de ser chamado por pronomes malucos. O leitor deste jornal a esta altura já sabe que o movimento trans faz do cavalo de batalha “os pronomes”.
É difícil traduzir a polêmica, porque em português seria mais apropriado falar de desinência do que de pronome, já que marcamos o gênero muito mais em adjetivos do que em pronomes. Um trecho do tuíte da Time que suscitou a revolta, em português, ficaria assim: “A Time falou com Maia Kobabe […] sobre o seu trabalho”. Maia é evidentemente um nome feminino, e em inglês esperaríamos o pronome possessivo “her”. Em português, vai o “seu”, que serve para homem e para mulher. (No português mais formal, dificilmente leríamos algo como “Maia falou sobre o trabalho dela”.) Por outro lado, “author and illustrator”, que é indiferente em inglês, precisaria marcar o gênero em português: “autora e ilustradora”.
Como o que pega em inglês são os pronomes e a mania começou no mundo anglófono, a prática dos militantes é ostentar, sempre que possível, os pronomes pelos quais quer ser tratado. Se o nome dele é John e ele é um homem comum, botará assim: he/him, o pronome pessoal e o pronome possessivo masculino. Numa tradução literal e arbitrária, ele/dele (poderia ser “ele/seu” também, mas aí marca menos o gênero). Como a militância não costuma ser muito letrada nem inteligente – embora costume ser muito escolarizada, mas isso é outra história –, importou logo a moda. Quando você vir um perfil no Instagram com a legenda “ela/dela” ou “ele/dele”, já pode saber que é progressista. A pessoa está lhe informando qual é o próprio “gênero”, porque a ideologia manda não presumir que alguém é um homem ou uma mulher só por causa do seu nome ou de sua aparência física. O politicamente correto manda perguntar antes de falar – uma evidente inversão da etiqueta, já que hesitar quanto ao sexo de alguém é muito embaraçoso e ofensivo num cenário normal.
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Não-binários
Mas calma que piora. Trans é a pessoa que quer ser do sexo oposto, correto? Em princípio, sim. Inclusive uma pessoa famosa, BBB, artista signatária da “carta pela democracia”, a travesti Linn da Quebrada, tatuou “ela/dela” na testa, alegando que é para as pessoas saberem como tratá-la. Como o progressismo está sempre em movimento, a coisa evoluiu e os ativistas decidiram que homem e mulher são apenas dois gêneros entre vários possíveis. Gênero é um espectro – dizem os “especialistas” em abobrinhas devidamente diplomados em abobrinhas. Num polo extremo está o gênero masculino e no outro o feminino. Se você não for um clichê ambulante (uma Barbie vestida de rosa ou um machão), então você provavelmente é outra coisa. Que outra coisa? Ora, um “não-binárie” (sic). Um não-binárie (sic) tem direito a pronome neutro. Em português, decidiram que é “elu/delu” e que o correto é dizer “elu é bonite”. (Ou seja, decidiram que a desinência de gênero é -e, mas esses especialistas escolarizados não estão familiarizados com o conceito de desinência.) Em inglês, o mais comum é usar “they/them” (no singular, mesmo). Mas é claro que, se há um milhão de gêneros possíveis entre dois pontos numa reta, é claro que há um milhão de pronomes (e desinências) possíveis para corresponder a cada gênero misterioso desse. Eis o bafafá da Time, então: a pessoa tinha uma série de pronomes especiais para si. E o que era ela? Uma assexual não-binária. E mais: a matéria tratava de como ela estava contente por uma juíza ter considerado que seu livro infantil não era pornografia e portanto poderia continuar em bibliotecas escolares.
Hem?
Propaganda involuntária contra homeschooling
Li o tal do livro censurado. O título é Gender Queer, é de 2019 e é uma autobiografia em quadrinhos. A pequena Maia nasceu em 89, é filha de um casal hippie vegetariano que foi morar no meio do mato quando as duas filhas estavam na primeira infância. O local não tinha luz nem água encanada. O pai é professor escolar do método Waldorf. Walforf é um rótulo adotado por escolas caras e ripongas. Para maiores especificações, tomar dois Engovs e tratar com um pedagogo.
Como a família vivia no mato, o único amigo de Maia era um menino da mesma idade, filho de outro casal hippie. O que ela conta é que ela não teve “papéis de gênero impostos” pelos pais, que tampouco os obedeciam. O meu jeito de descrever o mesmo fato é dizer que os pais dela a mantiveram em tal estado de isolamento social, que ela ficou sem a capacidade de adquirir noções básicas da vida em sociedade. Assim, ela tinha uma dificuldade real em entender por que o pequeno Adão da casa ao lado usava roupas diferentes das dela. Ela o via pelado e sabia que ambos faziam xixi de maneiras diferentes, porque ela fazia agachada e ele em pé. Eles temiam cobras e insetos no banheiro, por isso faziam suas necessidades no chão. Na autobiografia, Maia desenha o pai e a mãe listando características, e afirma que não eram adeptos de estereótipos de gênero. A mãe era tecelã, bordadeira, fazia vassouras e preparava chás naturais. O pai entendia de marcenaria e tocava violão. Tirando o fato de o pai ter cabelo comprido e de a mãe não raspar as pernas (ela era loira e tinha os pelos fininhos), os pais de Maia são, sim, “adeptos de papéis de gênero”. Todas as aparentes atipias se explicam por eles serem hippies; a mãe não é masculina e o pai não é feminino. Isso só mostra que ela realmente não sabe quais são os clichês masculinos e femininos.
Na escola
Maia e o adãozinho só foram socializar com outras crianças da própria idade quando entraram na primeira série, numa escola Waldorf. Os meninos não a deixaram se enturmar e ela perdeu o único amigo, que não aparece na fase adolescente e adulta da vida dela. Ela tampouco consegue se enturmar com as meninas e quer passar por menino. No mais das vezes, consegue, e ela fica feliz com isso. Ela tinha os cabelos compridos, cortados pela própria mãe, mas muitos meninos também tinham cabelos compridos.
Maia não entra em detalhes quanto às suas angústias pré-pubescentes. Estava triste por todos saberem “tudo”, mas ela não saber nada. Em meio a esse “tudo” estava inclusive o que ela deveria ter aprendido na escola com os colegas: ela chegou aos 11 anos analfabeta, a única da turma. A coisa só mudaria com o advento de Harry Potter, que a estimularia a ler. (Harry Potter também era um esquisitão rejeitado por todos, a propósito.)
Uma mudança subsequente foi a menstruação. Ela no começo quis esconder até da mãe, mas precisou de ajuda. Ainda assim, passava dias com um único modess, embaraçada com a menstruação, e hoje não sabe como não teve uma infecção. Todas as informações que ela teve acerca da menstruação foram obtidas por meio da personagem Alanna The Lioness, uma guerreira que não gostava de menstruar.
Não é só quanto às características fisiológicas ligadas ao sexo feminino que Maia tem dificuldades. Os pais dela não lhe informaram sequer sobre o uso de desodorantes. Ela começou a se enturmar na escola quando apareceu um grupo LGBT para apoio dos estudantes. Aí ela se viu enturmada, mesmo que sua vida sexual se resumisse a fantasiar. Fantasiava ora com meninas, ora com meninos, e graças a isso pôde se considerar bissexual. O grupo de adolescentes reunia outros esquisitões que gostavam de literatura fantástica. Eles se reuniam para discutir quais atores d’O Senhor dos Anéis eram gays. Nessa época a diretoria a procurou e informou da necessidade de usar desodorantes. Ela pediu à mãe que comprasse e conversou com ela sobre o assunto. Adulta, fica inconformada com o fato de ter sido caguetada para a diretoria – e não com o fato de a mãe ter permitido que andasse fedida, sem instruções.
Ainda nessa época, Maia começa a ler quadrinhos gays, o que ela equivale (cf. p. 118) a quadrinhos pornô. Na verdade, fica espantada com o fato de as amigas não gostarem de “quadrinhos gays”. Exclama: “Eu pensei que pornô gay fosse universal!”
Ela começa a se excitar – e, segundo supõe, ter orgasmos não físicos – com sexo entre homens. Sua maior expectativa – obviamente irrealizável – é receber sexo oral no pênis que ela gostaria de ter. Não fica claro quando ela começou a ter acesso à pornografia, mas aos 11 ela já fantasiava com a ideia de ter um pênis.
Sexualidade e vida adulta
Maia tem uma dificuldade terrível com os traços físicos característicos da feminilidade, a saber, os seios e a vagina. Ao longo da vida, só piora. Ela sonha em fazer a “top surgery”, isto é, uma mastectomia dupla, e vê, ainda que com consciência pesada, como felizardas as mulheres que têm câncer de mama e precisam tirar os seios. Quanto à vagina, ela fez dois exames ginecológicos na vida. No primeiro ela se sentiu horrorizada por ser penetrada por um espéculo. Numa segunda ida, já adulta, ficou tão nervosa que a ginecologista mandou voltar medicada. Ela tomou ansiolítico para fazer o exame, mas ainda assim fez aos prantos e ficou traumatizada.
Ela mesma sequer põe o dedo na vagina. Tem nojo da própria vagina e da alheia também. Pelo relato, parece nunca ter se aproximado de um pênis ereto na vida.
Quando entrou no ensino médio, descobriu páginas de transexualidade e ficava vendo coisas sobre isso no Tumblr. Ao cabo, concluiu que era transexual não-binária, pois ela não tinha vontade de ser homem, mas sim de não ser mulher. Fantasiava com a ideia de que teria um irmão gêmeo idêntico a ela, que faz as coisas femininas que ela não faz. Ela é muito obcecada por si mesma; anota metodicamente os livros que lê e anotava quando se masturbava (sem enfiar o dedo). Foi se masturbando cada vez menos até concluir que é assexual.
Aos 25 anos, na faculdade, ela escrevia fanfics e sentia falta de vivência sexual. Nunca tinha nem beijado na boca – exceto criança, quando beijou o adãozinho. Ela baixou o Tinder e acabou encontrando uma namorada que consentiu em não envolver as vaginas na relação. Simulou sexo oral com um pênis postiço e, sem surpresas, não sentiu nada.
Hoje, supostamente, é uma pessoa feliz e plena que usa os "pronomes Spivak", é assexual e não-binária. Como a sua é uma história de sucesso, ela a escreveu para ajudar outras crianças com problemas relativos à identidade de gênero. Na última página, ela põe uma nota para os pais: “Ainda que eu tenha tido muitas dificuldades sendo sua filha [daughter, feminino], eu sou muito, muito feliz por ser sua criança [child, sem gênero determinado].”
Abigail Shrier tem razão
Naturalmente, o que mais surpreende nessa história toda é a celebração – mais que a normalização – de uma vida infeliz e sofrida, fruto de muitos erros educacionais. E se o começo do livro é uma propaganda involuntária contra o homeschooling, o fato de esses pais serem professores (a mãe de pré-escola, o pai de escola) acaba contrabalançando com uma propaganda antiescola. A escola deveria ser uma tábua de salvação para as crianças com pais desajustados, mas no fim das contas são precisamente os desajustados que se põem à frente da educação infantil. A autora é tão desajustada, que duvido muito que ela saiba distinguir pornografia de material apropriado para criança. O pior de tudo é que creio na boa fé da autora. Ela não consegue fazer um exame ginecológico, mas se acha muto bem resolvida porque se autoatribuiu um rótulo de assexual não-binária e, de fato, é celebrada por isso em um meio influente.
O livro é ainda uma eloquente prova de que Abigail Shrier está coberta de razão. Seu livro Irreversible damage falava isso: as meninas estão virando trans na puberdade por terem dificuldade de socialização, por terem acesso à pornografia, por detestarem os próprios corpos e por passarem tempo demais vendo besteira na internet. Além disso, elas sequer querem ser homens; apenas querem deixar de ser mulheres e viver numa espécie de casulo infantil para sempre.
Nesse contexto, a única excepcionalidade de Maia é sua idade. Seus pais foram vanguarda da tragédia que bate à porta.