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Bruna Frascolla

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História

Detrator de Ilan Pappé relativiza limpeza étnica

Em junho de 1948, os palestinos abandonavam a vila de Tantura, que deu lugar à cidade israelense de Haifa. (Foto: Benno Rothenberg/Biblioteca Nacional de Israel)

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O Estado de Israel foi fundado em 1948 após os paramilitares sionistas conquistarem um território povoado por árabes então sob tutela britânica. As Nações Unidas acabaram avalizando a ação, pois a memória fresca do Holocausto contribuiu para que houvesse leniência com os paramilitares sionistas. A fundação desse Estado é conhecida pelos israelenses como "Independência de Israel" e pelos palestinos como "Nakba", Catástrofe em árabe.

Segundo a história oficial do movimento sionista, que fundou o Estado de Israel, os árabes eram antissemitas, queriam exterminar os judeus, e por isso houve uma guerra. Após a vitória de Israel, os árabes, perdedores, teriam ido embora de livre e espontânea vontade. Já do lado palestino, a Nakba sempre foi percebida como a expulsão violenta por meio de ataques terroristas e de massacres contra civis, perpetrados por paramilitares judeus (em geral europeus), os quais expulsaram os palestinos sobreviventes.

Trinta anos após a Independência de Israel (ou a Nakba), as Forças de Defesa de Israel (forjada a partir dos grupos paramilitares) abriram os seus arquivos referentes ao evento. Isso deu o ensejo aos historiadores israelenses de profissionalizar a História de Israel, lastreando-a então em documentos. Surgem assim os “revisionistas” ou “novos historiadores”, que substituíram os mitos de fundação por pesquisa acadêmica. Os três nomes-chave são: Benny Morris, Ilan Pappé e Avi Shlaim. Os três estão vivos. Benny Morris é filho de judeus ingleses que migraram para um kibbutz; Ilan Pappé é filho de judeus alemães e Avi Shlaim nasceu em Bagdá, mas foi criado em Israel porque sua família emigrou pouco após a criação do Estado. O trio mostrou que história oficial era falsa, pois de fato houve uma expulsão em massa de aldeões e civis árabes indefesos. A iniciativa dos "revisionistas" foi muito importante porque os israelenses eram historiadores acadêmicos e tinham acesso a documentos novos. Do lado árabe, quem tinha tomado alguma iniciativa antes disso foi o literato Edward Said, que não era historiador, nem tinha acesso a tais documentos.

Nos dias de hoje, Avi Shlaim tem se dedicado a estudar ao lado árabe da relação entre árabes e judeus sionistas (que eram originalmente só os judeus europeus) e Ilan Pappé se mantém dedicado ao tema da limpeza étnica dos palestinos, que tem evoluído para algo mais grave. Ambos serviram às FDI e foram sionistas, mas seus estudos de história os tornaram antissionistas. Ambos tiveram, também, de se mudar de Israel.

A proposta de Ilan Pappé para Israel é a de um só Estado, com igualdade de direitos entre judeus e não-judeus. Essa, aliás, é a proposta mais usual entre os antissionistas, ao menos no Ocidente. Em A limpeza étnica da Palestina, Ilan Pappé considera que só haverá paz em Israel quando os palestinos tiverem o direito a voltar para as suas casas ou para as casas dos seus pais e avós, além de receberem de volta o dinheiro que estava em suas contas, sequestradas pelos sionistas na Nakba.

Benny Morris, por outro lado, não só não se mudou de Israel, como se firmou como uma espécie de novo historiador oficial, que se dedica a explicar como é moralmente aceitável despovoar um país na base da força. O nome disso é limpeza étnica e é um crime contra a humanidade. Em sua tarefa de dar tratos à bola, Benny Morris acusa Pappé de distorcer – mas não de inventar a expulsão violenta de mais de 700 mil palestinos de suas casas, o que era metade da população. Aliás, um sofisma comum dos sionistas para negar o genocídio em Gaza é apontar para o aumento populacional na região até o período anterior a outubro de 2023 – omitindo que esse aumento não se deve a uma natalidade fenomenal, mas sim ao fato de a região ter recebido muitos refugiados.

Em artigo de opinião recentemente publicado pela Gazeta do Povo, o jornalista Ben-Dror Yemeni repercute, de modo ainda mais exagerado, as acusações de Benny Morris, colocando frases isoladas cujo contexto original não podemos verificar. O que achei, navegando a partir dos hiperlinks do texto de Yemeni, foi este texto em que Pappé explica como deve ser o trabalho de um historiador, e com o qual concordo: os fatos documentados nunca vão ser suficientes para explicar tudo e cabe ao historiador concatená-los, atividade na qual sempre influenciam as suas visões políticas. Isso não quer dizer que devamos desprezar os fatos, e um mérito que Pappé (segundo esse texto) tem é procurar todas as fontes possíveis, em vez de fazer como Benny Morris, que só olha os documentos das FDI e não sabe árabe. É normal ter uma posição política e deixar-se influenciar por ela. A coisa passa do ponto, porém, quando só se dá atenção às fontes que corroboram a visão política. Assim a visão se torna impossível de ser provada falsa, e o historiador ou jornalista vira um fanático.

A propósito, não haveria nada de errado em ouvir um jornalista para se contrapor a um historiador (mesmo um grande), se o jornalista tivesse alguma pesquisa relevante. William Waack prova que é possível um jornalista usar o seu próprio viés (o anticomunismo) para se contrapor ao viés filocomunista dos historiadores brasileiros e aumentar o nosso conhecimento da História. Que fez ele? Aproveitou que estava na Rússia durante a abertura dos arquivos soviéticos e escreveu Camaradas (Companhia das Letras, 1993), sobre a ingerência de Moscou na Intentona Comunista. Os arquivos deram-lhe nomes e ele foi atrás dos envolvidos que ainda estavam vivos para entrevistá-los. Camaradas é um trabalho sério que obedece a padrões acadêmicos e deve ser lido por qualquer um que queira entender a Intentona. (Waack é professor universitário, também.) Já o artigo de Yemeni, com seus disse-me-disse, não chega perto disso.

É normal ter uma posição política e deixar-se influenciar por ela. A coisa passa do ponto, porém, quando só se dá atenção às fontes que corroboram a visão política

Enviei o seu artigo ao Prof. Pappé, que fez o seguinte comentário: “É inacreditável que, em 2024, jornalistas israelenses possam negar, num jornal brasileiro, o crime de Israel contra a humanidade em 1948 e o genocídio de 2024. O jornal deixaria um jornalista sul-africano negar o Apartheid durante os dias do Apartheid na África do Sul? Ou um jornalista ruandês negar o genocídio ruandês em Ruanda? Só um jornalista israelense pode gozar desse status excepcional graças ao poder do lobby sionista. Não se trata de liberdade de expressão, mas da posição moral que um jornal tem que tomar neste momento sombrio de desumanidade.”

De fato, eis o que disse Yemeni no referido artigo: “O principal argumento de Pappe [sic] diz respeito à Nakba (a catástrofe causada pela Guerra de Independência de Israel, em 1948, após a qual 715.000 árabes da Palestina se tornaram refugiados). Segundo Pappe, foi ‘uma das piores expulsões forçadas da história’. Errado. Após a dissolução de impérios e o estabelecimento de Estados-nação, ocorreu uma enorme onda de expulsões e trocas populacionais no século anterior, especialmente na primeira metade. Gregos, turcos, alemães, poloneses, ucranianos, indianos, paquistaneses e muitos outros povos passaram por expulsões. Sessenta milhões de pessoas passaram pela experiência de deslocamento e expulsão. Na maioria dos casos, isso aconteceu enquanto eram cometidos terríveis massacres.” Ou seja, ele segue a normalidade da historiografia posterior à abertura dos arquivos israelenses e aceita como fato que mais de 700 mil árabes “se tornaram refugiados”. Mas diz que isso é muito normal. É mesmo? Então os nazistas não fizeram nada de errado ao transferir os judeus para a Polônia, já que na época isso era super normal. Os nazistas chegaram a cogitar o envio de judeus para Madagascar antes de optarem pela "solução final".

A única novidade do artigo de Yemeni é acusar Pappé de ter se recusado a provar para ele que os israelenses querem “transferir” a população árabe. Ora, basta pesquisar um pouquinho para descobrir que, segundo as próprias fontes israelenses, o partido de Netanyahu quer tirar os palestinos de Gaza e recolonizar o local. Diante da persistente recusa do Egito, o governo até procurou o Congo para saber se poderiam despachar os palestinos para lá. Se isso acontecer, os adeptos de Benny Morris dirão que isso é normal? E se isso não acontecer porque os palestinos morreram, dirão que Israel matou todos os palestinos por culpa do Hamas? Vão redefinir a palavra "genocídio" para dizer que os palestinos "se transformaram em mortos", mas não foram vítimas de genocídio perpetrado por Israel?

Quem quiser ler Benny Morris e seus adeptos, que leia. Quem quiser ouvir, ouça: ele até foi a um debate com Norman Finkelstein que resultou em muitos memes na bolha pró-Palestina, mas não muito mais que isso. Só não queira depois cantar vitória, achando que viu o melhor da historiografia. E quem apoiar Benny Morris confessa, no ato, que não se incomoda com crimes contra a humanidade.

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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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