Ouça este conteúdo
A julgar tanto pela cobertura da imprensa, quanto pelos depoimentos de amigos e pelas redes sociais, o day after das eleições foi tenso. Começou com #demitaumpetista, mas dava rolo com a justiça do trabalho, então passaram ao Sleeping Zap, paródia do Sleeping Giants. Cidadãos comuns organizariam listinhas de comerciantes petistas e distribuiriam no WhatsApp a fim de organizar um boicote. Uma amiga conta que no condomínio em que ela mora, na Zona Sul do Rio, o síndico organizou uma lista de comerciantes petistas e os moradores já tinham cancelado uma doceria próxima.
Dado que na minha cidade as urnas apontaram uns 70% Lula, o tuiteiro médio, que acha que o Brasil é igual às metrópoles, concluirá que estou frita, ou que vivo escondendo as minhas posições políticas. A isso digo que nem uma coisa (não estou frita), nem outra (não escondo minhas posições políticas), e mais: um candidato a deputado federal pelo PSOL faz questão de contar a todo transeunte que passe por perto quando eu estou junto. Ele diz assim: “Ela é Bolsonaro, mas eu amo ela!”
Relações cordiais, sistema impessoal
O nosso sistema eleitoral tem um efeito colateral que ficou conhecido como “efeito Tiririca”. Basta pegar um candidato com muitos votos para um partido fazer vários deputados. O PSOL vive disso, mas em menor escala. Ele não tem um Tiririca com milhões de votos; em vez disso, tem uma figura carismática da qual as pessoas gostam por razões alheias à política. Um artista, um cantor. No caso supracitado, um cantor de reggae que foi muito famoso nos anos 90, mas que continua conhecido por quem quer que goste de reggae. O cantor ficou muito feliz e se sentiu muito honrado com o convite para disputar uma vaga para a Câmara. Os amigos no bar ficaram incrédulos. Os irmãos mais velhos, revoltados, porque são de direita. Eu alertei: “Não vou votar em você, não!” Altivo, ele respondia que não queria o meu voto.
Eu viajei antes do primeiro turno, então não pude saber na hora qual seria a política dele com relação aos amigos e família eleitores de Bolsonaro. Na última vez que falei com ele antes de viajar, encontrei-o feliz porque agora os irmãos aceitavam a candidatura.
Voltei logo após as eleições, e qual não foi a minha surpresa ao descobrir que os amigos tinham votado nele e em Bolsonaro. Expressei minha surpresa e o cantor logo dedurou o amigo: “Ele disse que ia dar uma surra em mim se eu ganhasse!”
Era verdade. Um dos amigos votou nele apenas para deixá-lo feliz, contando que não se elegeria. Mas, se uma catástrofe acontecesse e o maluco beleza fosse eleito, ele encomendaria uma surra. Tive oportunidade de lançar uma polêmica: e se o cantor de reggae tentasse se eleger vereador? Aí, sim, o assunto era grave. Um dos amigos concluiu que a surra teria de ser mais pesada nesse caso, mas votaria mesmo assim. Outro ficou na dúvida. Uma coisa era mandá-lo para Brasília, o povo lá em Brasília que se virasse com ele. Outra, bem mais séria, era tê-lo como vereador aqui.
Cheguei a alertar que cada voto dado ao amigo servia para botar alguém do PSOL em Brasília; não era só um voto inócuo. Se levaram a sério, não sei.
No programa, ONGs
Encontrei material de campanha dele colado na cidade. Quais as promessas? Além de “colocar fogo na Babilônia em Brasília”, o material atribuía ao cantor grande interesse pelas áreas da educação e da cultura. Concretamente, defendia “melhorias na educação [quem é contra?], com apoio aos projetos realizados, principalmente, pelas organizações não governamentais.” Ou seja, a proposta que o pessoal do PSOL elaborou para ele é entregar a Educação pras ONGs. Ser de esquerda, hoje, é defender Estado mínimo e ONGs máximas. O candidato “é defensor do canabidiol como substância fundamental para o tratamento de doenças graves”.
O cantor de fato tem fama de maconheiro. No entanto, também se empenha em advertir a juventude que cocaína mata; que ele mesmo só não morreu porque a mulher o salvou. Manda enfaticamente os jovens não se aproximarem de cocaína. No mais, o cantor descobriu que “estar no PSOL é estar no lugar certo para fazer a língua do reggae ser entendida, lutando contra todos os tipos de opressões, em especial, aquelas que dizem respeito à comunidade negra.” Ele não tem histórico de politização — nem mesmo em questão racial. E “comunidade negra” é uma tradução de black community, um termo que faz sentido nos EUA, onde existem dentro das cidades comunidades étnicas. No caso dos brasileiros, faz sentido falar em comunidade japonesa, comunidade judaica, e talvez (a depender da região) em comunidade nordestina; mas “comunidade negra” é uma expressão sem pé nem cabeça, ainda mais na Bahia. O próprio cantor é claro demais para ser apontado como negão. Ele é negro nos EUA, ou, quem sabe, em Joinville.
Assim, o quadro que temos é: existe uma figura que é benquista pela cidade; que é uma boa pessoa (assim o considero); que tem fama de maluco beleza (o próprio material de campanha diz que ele é “o maluco que sabia"); que tem uma base de fãs através do estado; e que não tem nenhum histórico de politização. Daí o PSOL aparece com um papo aranha de se candidatar a deputado para defender a educação e ser contra o racismo. Quem se diz contra a educação e a favor do racismo?
Daí eles botam o cara para concorrer, fazem o “favor” de detalhar a plataforma e pronto. Formalmente, temos cinco mil votos para as ONGs tomarem conta da educação e difundirem a racialização do povo.
Muda o sistema ou o povo?
Há quem ache que o nosso povo é muito ruim porque não é estudado. Eu já acho que quanto mais se estuda, mais chances há de se acreditar que mulheres têm pênis. Nunca vi analfabeto que acreditasse que mulher tem pênis; isso é coisa para quem tem doutorado ou acredita na “Ciência”. Se recuarmos no tempo, as pessoas estudavam para acreditar em comunismo, em racismo científico, em uma porção de bobagem desastrosa. Não creio que a educação deva ser um fim em si mesma, e não acho que um povo sem educação é um povo ruim.
Acho que o pior cenário possível é o da Europa: tem mais de metade da população com diploma e uma elite que não está nem aí para o seu povo, disposta a chamar boa parte dele de fascista e a combater o “racismo” deixando imigrantes ilegais fazerem o que bem entendem com a população. Acredita-se que a elite é bem educada. Mas quando uma imensa parcela da população é educada, é como se todo o mundo fosse elite. Aí, ninguém é elite; e o que há é essa massa que segue os jornais bovinamente e se sente muito superior por isso. Superior a quem, cara pálida, se você é massa? Superior ao analfabeto? Ao famélico africano, ao nordestino dos grotões? Massa que repete a CNN e similares é massa. E é mais bitolada do que os pobres da zona rural, porque não tem nenhum apego ao senso comum ou a autoridades tradicionais.
Pois então. Perante o causo aqui narrado, é frequente aparecer a opinião de que o povo precisa ter educação para aprender a votar. De que educação se está falando? Acho que no caso em tela se trata antes de informação; de explicar como é o sistema eleitoral. Ainda assim, é possível que eles saibam que os partidos levam o voto, e apenas considerem que dá no mesmo, porque todos os políticos são iguais. Se todos os políticos são iguais, não há nada de mal em votar no meu amigo doido que nem vai ser eleito mesmo. Assim, trata-se antes de um problema de comunicação. O eleitorado não foi atingido; por isso acha que todos os políticos são iguais. Provar que eles estão errados dá trabalho.
Outra coisa digna de nota é que a coerção do Estado se faz sentir menos por aqui. Digamos que lá em Brasília se aprove uma lei dizendo que banheiro feminino é para quem se autodeclarar mulher. Na capital, se alguma pessoa com pênis se autoreclarar mulher e entrar nos banheiros das meninas numa escola, é certo que os pais e as meninas vão protestar. Mas vai baixar MP e TV; vai ser uma dor de cabeça danada. Já por aqui, não vai dar nada. (O eleitor inclusive planejava encomendar uma surra para uma autoridade federal.) Por isso é natural que os projetos mais progressistas pareçam uma fantasia, e não uma coisa real. O fantasma do aborto legal é um problema muito mais tangível nas metrópoles anônimas do que por essas bandas, onde todo o mundo se conhece, todo o mundo se julga e não há muitos segredos.
Por outro lado, creio que é mais sensato mudar o sistema do que mudar o povo. É preciso desenhar um sistema em que os eleitores elejam políticos que eles conhecem. Em estados grandes como a Bahia, não parece boa a ideia de eleger simplesmente os mais votados, porque assim os deputados eleitos se concentrariam em Salvador.
Quanto a votar em ideologia em vez de pessoa... Lembro que em 2018 os liberais de direita que pensavam assim votaram em Amoedo.