Leiamos um trecho do artigo de Vélez Rodríguez, da filosofia, citado por Flávio Gordon, da antropologia: “Aconteceu, na seara da filosofia, estranho fenômeno de colonialismo cultural que foi extinguindo progressivamente tudo quanto, no nosso País, cheirasse a estudo do pensamento brasileiro ou à consolidação de uma filosofia nacional. Os artífices dessa façanha (ocorrida nas três últimas décadas do século passado) foram os burocratas da CAPES no setor da filosofia, comandados pelo Padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz. Os fatos são simples: no período em que o General Ruben Ludwig foi Ministro da Educação [11/1980 - 8/1982], ainda no ciclo militar, os antigos ativistas da Ação Popular Marxista-Leninista receberam à sombra do Padre Vaz a diretoria dos conselhos da CAPES e do CNPq, na área mencionada. Especula-se que o motivo da concessão fosse uma negociação política: eles prometiam abandonar a luta armada. A preocupação dos militares residia no fato de que foi esse o único agrupamento da extrema esquerda que não se organizou explicitamente em partido político.”
A objeção que me salta aos olhos, e que apontei, é que não faz sentido algum a negociação ter sido feita com a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), em vez da Ação Popular (AP). Isso é importante porque a Ação Popular, liderada informalmente pelo Pe. Vaz, não era marxista. Era sintomática de uma mudança cultural interna à Igreja, que se radicalizou independentemente do marxismo. Há muita informação a ser levada em conta, então vou fazer uma cronologia para não nos perdermos. Comecemos pelo ambiente de onde surgiu o Pe. Vaz.
Ativismo católico pós Quadragesimo Anno
Em 1931, Pio XI publica a encíclica Quadragesimo Anno, que, movida pela crise de 29, rascunha diretrizes para criar uma sociedade corporativa e menos atomizada. A ideia era combater o capitalismo de laissez faire que vigorava no Ocidente industrializado. A Igreja já tinha se manifestado contra o laissez faire pelo menos desde 1891 (quarenta anos antes), com a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII. Os proletários, apartados da terra e que viviam à base de salários magros, deveriam ganhar o bastante para constituir patrimônio e ter direitos sociais. O tempo acabou dando razão à Igreja.
Um expediente usado para combater aqueles capitalistas predatórios retratados por Dickens seria a composição de uma corporação coesa de trabalhadores – possivelmente inspirada nas guildas medievais – que aumentaria o poder de barganha do proletariado em face dos patrões.
Esse tipo de pensamento foi aproveitado pelo fascismo italiano e pela social-democracia alemã, que terminou ficando com os louros. Quanto aos marxistas, eles coincidiam com os liberais de laissez faire, que amiúde eram darwinistas sociais: nada deveria ser feito para regular o capitalismo, pois suas leis são inexoráveis e a humanidade ruma para o progresso. No caso dos darwinistas sociais, os inaptos seriam eliminados e a humanidade evoluiria; no caso dos marxistas, o proletariado acabaria com a exploração por meio do banho de sangue. O proletariado tomaria os meios de produção, criaria uma ditadura e depois, de alguma maneira, o Estado feneceria e a humanidade viveria feliz para sempre. Tanto o liberal de laissez faire quanto o marxista não enxergam dignidade no papel do Estado.
Como um meio de tornar eficaz essa organização corporativa da sociedade, Pio XI em 29 funda a Ação Católica, um braço de Roma voltada para leigos. A Ação Católica Brasileira foi criada em 1935, ou seja, durante o Estado Novo. A ACB não é criada do vácuo: usa-se o material humano do Centro Dom Vital, sediado no Rio de Janeiro e criado em 1921 pelo sergipano Jackson de Figueiredo. D. Sebastião Leme era um entusiasta do órgão leigo, e a ele coube a aproximação entre o órgão pré-existente e a ACB, cuja criação o papa instigava. Grandes nomes da ACB são Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Gustavo Corção e o jurista Sobral Pinto (conhecido por sua defesa jurídica de comunistas torturados pelo Estado Novo).
A Ação Católica continha a Juventude Católica. Uma subdivisão desta era a Juventude Universitária Católica, a JUC. Durante a Era Vargas, havia uma relação estreita entre a militância integralista e a militância jucista, isto é, da JUC. Assim como no auge da ditadura militar as organizações estudantis e o ativismo eclesiástico estavam tomadas pela esquerda (a teologia da libertação), no Estado Novo havia os "batinas verdes" (os padres integralistas) e a tomada de diretórios estudantis por integralistas ou jucistas. Um dos “batinas verdes” seria D. Hélder Câmara, que, tal como Sobral Pinto no Estado Novo, notabilizou-se por combater a tortura de comunistas na ditadura militar.
O cenário intelectual católico da primeira metade do século
Na segunda edição da História das ideias filosóficas no Brasil (1974), Antonio Paim descreve um cenário de pensamento neotomista no Brasil mais difuso. Cito-o: “Embora o Brasil não dispusesse de tradição escolástica, estruturou-se neste século uma corrente filosófica neotomista, inspirada basicamente nas ideias de Jacques Maritain, que chegou a adquirir dimensões sem precedentes, na matéria, promovendo, em sua primeira fase, movimento cultural de extrema amplitude.” Esta Gazeta já trouxe um artigo explicando o teor da obra de Jacques Maritain.
Continuo com Paim: “Durante largo período a iniciativa dos beneditinos paulistas, criando, em 1908, a Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo, permaneceu como evento único e isolado. Na década de 20, o Centro Dom Vital, fundado por Jackson de Figueiredo, em 1921, nutria preocupações eminentemente políticas. No decênio subsequente é que as tarefas de índole cultural são trazidas a primeiro plano. Estruturam-se Institutos Católicos de Estudos Superiores no Rio de Janeiro, Juiz de Fora e Recife, que logo instituem as primeiras faculdades, núcleos das futuras universidades católicas. Estas se constituem, em 1940, no Rio de Janeiro; em 1945, a de São Paulo, e, mais tarde, nos principais dentre os outros estados. Além do órgão oficial do Centro Dom Vital – A Ordem – que se volta para idêntica direção, aparecem a revista Verbum (1944), da PUC do Rio de Janeiro, e outras publicações periódicas nos Estados.”
O Pe. Vaz nos anos 50
De Minas Gerais é que saiu o Pe. Vaz. Nos anos 50 e começo dos 60, ele costumava publicar suas ideias na forma de artigos submetidos à Revista Kriterion, de Belo Horizonte. Esta é, hoje, a revista que goza da melhor avaliação pela CAPES. Segundo lemos em página institucional, foi fundada em 1947 e é a mais antiga revista “de pesquisa original e alta qualidade” de filosofia. Quem determina se uma revista é de “pesquisa original e alta qualidade” ou não é a direção da CAPES, que teria, segundo Vélez, sido loteada para pupilos marxistas-leninistas do Pe. Vaz. Tirando a parte de "marxistas-leninistas", faz sentido: os pupilos do Pe. Vaz teriam negado o status acadêmico às revistas concorrentes e mantido a do seu mestre. Será que a revista Verbum acabou antes ou depois do ministério de Ludwig? Isto eu não consegui descobrir. De todo modo, a Verbum não está citada no artigo de Vélez entre as entidades prejudicadas.
A Kriterion hoje é da UFMG, mas foi criação de uma faculdade de filosofia extinta. Segundo lemos neste artigo da FGV, os criadores da Kriterion e da faculdade eram ligados ao ativismo da Juventude Católica no Colégio Aplicação de Belo Horizonte, e tinham por meta discutir o ensino secundário. "Havia [entre os professores] certa concordância de que se vivia uma crise de valores em nível global desencadeada pelo rompimento dos limites do homem com sua moral religiosa."
Já em 1974, Paim comenta que o neotomismo, após crescer nas décadas de 30, 40 e 50, começara a decair nos anos 60, e em 72 já chegara ao “ocaso”, na expressão de Tristão de Athayde. Tudo isso é anterior ao ministério de Rubem Ludwig (1980-1982), quando a filosofia teria sido entregue aos pupilos do padre mineiro.
Voltemos ao ambiente da Kriterion. O Pe. Vaz não é mencionado, mas vale citarmos o artigo da FGV que analisa as ideias desses professores de Belo Horizonte: “para Amaro Xisto Queiroz, o professor ideal era aquele que inspirava discípulos. Para ele, o objetivo do ensino secundário era ‘a realização definitiva da humanitas, ideal a que todos aspiramos’, a formação integral ‘do homem como ser social e como ser racional. É a integração do homem na cultura’ (QUEIROZ, 1951, p.148-149). Assim, a educação secundária deveria permitir que o indivíduo estivesse, ao seu fim, ‘adaptado à luta pela vida e integrado num sistema filosófico e racional’ (QUEIROZ, 1951, p.149). Por isso, a seu ver, o bom professor seria: aquele que possuindo uma filosofia da vida orientada no melhor sentido de sua humanidade e do seu tempo, na medida dos valores eternos, e tendo um perfeito conhecimento antropológico dos seus alunos, possua também as qualidades pessoais que o tornem capaz de amoldar a inteligência e fecundar o coração dos seus discípulos.’” Não é exagero dizer que havia uma idealização da figura do professor como a de um guru personalista, já que se discutiam as suas capacidades pessoais em vez dos conteúdos ou da didática.
Em obra de 79, Paim acusaria o grupo do Pe. Vaz de ser responsável pela radicalização da JUC. O Pe. Vaz passou do ano de 54 a 63 escrevendo artigos teológicos e filosóficos na Kriterion que, segundo Paim, seriam totalitários.
O Pe. Vaz era uma espécie de guru dos jucistas nos anos 50. Paim o acusa (sem que ele negue) de entender a cultura como ruptura, em vez de obra continuada de sucessivas gerações. Isso teria duas consequências: “A primeira delas é o privilégio que se passa a atribuir àqueles momentos históricos em que os valores de determinada sociedade se tornam questionáveis. E, a segunda, a suposição de que o questionamento possa ser substituído por um estágio de harmonia e equilíbrio, tornando-se justificável uma opção totalitária, isto é, a imposição à sociedade desse novo estágio.” O Pe. Vaz frisa que ele não é marxista, e Paim não contesta isso. Apenas afirma que é totalitário e responsável pela censura e pelo terrorismo praticados pelos militantes da AP, que ficam para o próximo texto.
Balanço até aqui
Tudo isso é anterior à fundação da AP, e a fundação da AP é anterior à teologia da libertação. Um dado interessante da obra de 74 é que a direita católica já vinha em decadência antes do predomínio do gramscismo. Paim diz, apoiando-se em Tristão de Athayde, que Maritain era tido por esquerdista demais e avançado demais nos anos 30, depois ficou retrógrado demais nos anos 60. Os católicos politizados queriam mais. Paim supõe que os democratas cristãos, herdeiros de Maritain, não tenham conseguido segurar a radicalização dos militantes católicos.
Pela denúncia de Vélez, a negociação se deu na área de filosofia, e a perseguição foi voltada especificamente à área de Filosofia Brasileira. Penso que é uma área acadêmica pequena demais para causar estrago cultural tão grande. Por isso, faz mais sentido enxergar o loteamento dessa área acadêmica como parte de um problema maior que é a guinada da Igreja católica para o radicalismo revolucionário ocorrida entre os anos 60 e 70. Sua oposição ao capitalismo irrefreado, se extrapolada, pode aproximá-la do marxismo, se pregar revolução. Sendo a Igreja a maior instituição conservadora do Brasil, sua guinada revolucionária levou ao declínio do conservadorismo no Brasil -- não uma negociata de positivistas com marxistas.
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