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Divinização da Liberdade de Expressão: se o povo quer, não “é proibido proibir”
| Foto: Bigstock

Em O império do politicamente correto, Mathieu Bock-Côté comenta que uma característica da esquerda pós-68 é estar em eterna mutação. Isso explicaria por que há tantos ex-comunistas entre os conservadores: não é necessário mudar para se tornar um conservador; basta ficar parado. Você acha que homem é homem e mulher é mulher? Conservador. Se Che Guevara saísse da tumba, precisaria dizer que Lia Thomas é mulher e tem o direito de competir com outras mulheres. Do contrário, seria considerado um reacionário pela vanguarda.

Eu creio que Mathieu Bock-Côté tem muita razão ao caracterizar o movimento ideológico. Há uma vanguarda marchando rumo ao “progresso”, e quem pausar a marcha é automaticamente considerado um conservador. Mas penso que essa análise não se limite à esquerda, e valha para um certo liberalismo autoritário que tem muita afinidade com o slogan de 68, a saber, que “é proibido proibir”.

Tomem a elite midiática de hoje. Ela diz que é proibido proibir drogas (e libera os traficantes), que é proibido proibir mudança de sexo (e libera castração química de menores e doentes mentais) etc. Não à toa seu alvo predileto é a polícia, encarregada de efetivar as proibições que ela quer proibir. No entanto, o povo, o suposto legitimador de toda democracia, é invariavelmente contrário à proibição das proibições, e vibra quando a polícia mata bandido.

Quando a União Soviética ainda era uma potência, os letrados achavam chique defender proibições. Em 68, surge a Nova Esquerda, muito mais afim à esquerda dos EUA do que à URSS. Passa a ser muito mais chique, então, defender amor livre e autoconhecimento pelas drogas. Houve também um movimento minoritário não filiado à esquerda, mas que gozava de respeitabilidade intelectual: o “liberal por inteiro”, isto é, o apologista do mercado para o qual “é proibido proibir”.

Gustavo Maultasch, que é ao mesmo tempo fundador do Livres (um antro politicamente correto) e propositor do abaixo-assinado em defesa de Risério (um adversário do politicamente correto), lançou um livro que defende justo a proibição de uma proibição, a saber, Contra Toda Censura (Avis Rara, 2022).

Fiz este preâmbulo pretendo explicar a minha impressão geral após ler o livro: Gustavo Maultasch representa e defende muito bem uma opinião corrente entre os letrados de dez minutos atrás. A turma letrada apressou o passo, Gustavo Maultasch ficou para trás junto com uma meia dúzia de “radicais de extrema direita”. Ademais, essa ideologia representa apenas uma fase passada da política dos EUA e é perfeita para preparar o terreno para a atual, da hegemonia progressista politicamente correta.

O caso de Skokie

Digamos que um punhado de sobreviventes do Holocausto saia da Europa e resolva, em solo novo, criar uma associação política – fundar um Estado. A pergunta filosófica fundamental aqui é: esse povo tem o direito de proibir propaganda nazista em seu solo? A minha resposta é: Tem, porque o povo é soberano. Creio que a minha resposta seja intuitiva o bastante para prescindir de justificações, e o caso particular da proibição do nazismo encontra amparo em qualquer lugar relevante do Ocidente… à exceção dos Estados Unidos.

Pois bem: em vez de se associarem e fundarem um Estado – o que, convenhamos, dá muito trabalho –, uma porção de sobreviventes do Holocausto foi para a pequena vila de Skokie, no estado de Illinois, nos Estados Unidos. Em função da grande presença de judeus e vítimas do Holocausto nessa vila, o Partido Nacional-Socialista dos EUA decidiu que lá era um bom lugar para fazer uma manifestação nazista e supremacista branca. É óbvio que os habitantes protestaram e buscaram meios judiciais para fazer valer a sua vontade. No entanto, a Suprema Corte entende que a Primeira Emenda impede qualquer tipo de censura a discursos ideológicos abstratos, de modo que os neonazistas têm o direito inalienável de realizar uma parada neonazista numa vila de sobreviventes do Holocausto. A ACLU, uma ONG de advogados liberais, defendeu os neonazistas. A ACLU era cheia de judeus e o próprio Maultasch é neto de sobrevivente do Holocausto. Ou seja: em vez de se tratar de um conflito entre judeus e neonazistas, era um conflito entre o habitante comum de uma vila e os letrados. E é claro que nunca, jamais, em hipótese alguma, o letrado ficará ao lado do cidadão comum. Defende o neonazista.

Se você é um liberal “por inteiro” e um entusiasta da liberdade de expressão, como Gustavo Maultasch, nada mais coerente. Do tanto de gente que tinha ali, no breve período Temer, se declarando liberal, era de se esperar que a posição de Maultasch fosse mais comum no meio letrado. Mas a marcha dos letrados brasileiros rumo ao “progresso”, nos últimos 10 anos, foi assim: primeiro era-se de esquerda anti-mercado e pró-bundalelê, depois era-se liberal pró-mercado e pró-bundalelê, por fim se é “civilizado”, pró mercado regulado (via ESG ou crédito de carbono), pró-bundalelê e antiliberal (contrário às liberdades individuais consagradas). Antes, ser pró-bundalelê era uma consequência de defender as liberdades individuais. Agora, se você se opuser ao bundalelê, é discurso de ódio e é crime. Gustavo Maultasch parou de marchar com os letrados durante o governo Temer.

Qual a fundamentação filosófica?

O fundamento intuitivo para criminalizar a expressão de algumas ideologias é a soberania do povo. Se o povo decidir que tal ideologia deva ser criminalizada, tem legitimidade para tal. “E se o povo decidir algo imoral?” Se você acha um dado povo imoral, esse é um juízo de valor seu. Você pode reprová-lo ao máximo e pode ganhar uma guerra contra ele. Só não me diga que você pode impor a um povo as suas convicções e querer, ainda assim, que esse povo seja uma democracia enquanto não pode ter a sua própria moral. Esse é um dilema moral típico das nossas elites letradas. Quando eram comunistas, abominavam os camponeses que não queriam coletivizar as terras. Quando se tornaram capitalistas e democráticas, não melhoraram. Que fazer com um país como o Afeganistão, cheio de “machistas”? Os EUA implementaram uma “democracia” com quotas para mulheres no parlamento. É possível crer que essa democracia não é um formalismo despótico? E a situação do Ocidente, onde nunca há plebiscito para o povo decidir se aprova casamento gay e aborto? As elites progressistas desprezam a moral do povo e passam tudo pelo judiciário. É um aparato formal sem legitimidade popular.

Se não há legitimidade popular, que tipo de legitimidade haverá? Vamos enfim à argumentação de Gustavo Maultasch. A liberdade de expressão é defendida por ele por duas vias: uma, pragmática; outra, filosófica. Podemos discutir a pragmática noutra ocasião; por ora, vamos à fundamentação filosófica – afinal, o fato de ele ter escolhido Skokie mostra que ele não defende a soberania popular como limite último da lei.

Cito-o: “A justificativa mais fundamental da Liberdade de Expressão [sic] é uma justificativa deontológica [i. e., correta por questão de princípios], não residindo em nenhum valor instrumental que ela possa garantir à sociedade. A sua razão fundamental, que podemos chamar de razão existencial, afirma que a Liberdade de Expressão é um fim em si mesmo, um princípio ético apriorístico, um direito natural, uma característica intrínseca ao que chamamos de ‘viver’, pois o pensamento e a comunicação livres são aspectos fundamentais da nossa existência; o que eu penso é parte do que eu sou, e muitas vezes é apenas na exposição das ideias que eu aprimoro o meu entendimento daquilo que eu mesmo penso – e, portanto, aprimoro aquilo que eu sou. Se nós somos livres para buscar nossa felicidade – conforme a nossa própria definição de felicidade –, nenhuma via pode ser fechada. Cada indivíduo é dono do seu destino, dono de si, seu cérebro e sua boca; cada indivíduo é senhor único da jurisdição de sua consciência – o seu foro mais íntimo – e, assim, é o único legítimo árbitro das exportações que faz, para o mundo, das ideias de sua cabeça” (p. 36-37).

Calma lá

Assim, ele decreta a existência de um princípio apriorístico, isto é, anterior à existência e à experiência. Um princípio, se é que possível, mais que universal, e até atemporal.

Seria mais fácil e mais preciso dizer que ele diviniza a Liberdade de Expressão (com maiúsculas, como Deus). Acontece que só um punhado de letrados tem vocabulário para aderir a essa prece racionalista. Mas eu tenho esse vocabulário e rejeito. Tudo o que Gustavo Maultasch diz da Liberdade de Expressão pode ser dito, por muito mais gente, de Deus. Se o letrado descer do apartamento até a portaria, encontrará quem concorde que: Deus antecede a existência do mundo; a vida do homem sem Deus não faz sentido; o homem sequer pode ser livre de verdade sem Deus; uma sociedade decente respeita Deus. A diferença é que o porteiro do letrado vai ser incondicionalmente contra o racismo e sua expressão; o letrado, não. Em resumo, no parágrafo acima, não é a “razão fundamental” que “afirma” nada, é Gustavo Maultasch. E eu rejeito, assim como rejeitavam os moradores de Skokie.

O segundo problema que enxergo é a equivalência entre legislação e realidade. Existe uma noção de liberdade num sentido profundo que é exaltada pelo cristianismo e pelo judaísmo: o livre arbítrio. A liberdade, nesse sentido fundamental, é inerente à condição humana. Tem-se até mesmo num campo de concentração, como ensinou Viktor Frankl. O escravo e filósofo Epiteto, lá na Antiguidade, era dotado de uma liberdade que abolicionista nenhum poderia conferir a um ser humano. A liberdade em seu sentido existencial e em seu sentido jurídico ou factual não podem ser confundidas, sob pena de esculhambar a maior parte da humanidade.

Vejamos bem: a liberdade fundamental defendida por Gustavo Maultasch existe só nos EUA e só foi consolidada no século XX. Quer dizer que Sócrates, Galileu Galilei, Michelangelo, Beethoven e Machado de Assis são menos indivíduos menos livres e menos senhores de si do que qualquer norte-americano drogado? E bom, se é um princípio atemporal, quer dizer que deveria ter sido aplicado na Idade Média na Europa e no Império Asteca; no Japão Meiji e nas tribos tupinambás que zanzavam pela Mata Atlântica; na Índia dos brâmanes e na Bombaim dos muçulmanos. Não é uma pretensão excessiva aplicar um particularismo da história dos EUA a toda existência social humana? Um pouco de prudência recomendaria a avaliação de contingências. De todo modo, essa postura lembra a da repórter da CNN que exigia dos políticos quenianos uma especial atenção à questão LGBT. O líder eleito respondia, com muita plausibilidade, que a questão LGBT não era uma prioridade para os quenianos agora.

Já se imaginaram chegando no Japão Meiji e tentando convencer o povo da necessidade da Liberdade de Expressão? E se isso for como pregar sobre a questão LGBT para quenianos? A reivindicação de Liberdade de Expressão é um fenômeno histórica, social e culturalmente restrito. Seu culto não pode lastrear, com legitimidade, regime algum.

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