Volta e meia nos deparamos com o neorracismo negro sendo defendido às claras. Dia desses me chegaram imagens de um perfil pan-africanista do Instagram que mandava negros não terem filhos com brancos, pois são uma raça de estupradores. Mandava negros não terem relações nem de amizade com brancos. Não é nenhuma surpresa para mim, já que procuro esse tipo de coisa. Esse tipo de coisa está nos grandes portais de ex-jornalismo também, os quais às vezes resolvem explicar ao leitorado os conceitos racistas de “palmitagem” e “amor afrocentrado”. Se a grande mídia faz isso, qual a surpresa com uma conta obscura numa esquina da internet?
Isso é abjeto. Por isso mesmo, o Brasil tem lei contra racismo. E se algum neonazista fizesse as mesmas coisas numa esquina obscura da internet, a Polícia Federal iria bater à porta dele. De minha parte, acho muito bom que seja assim. E por isso mesmo acho revoltante que o neorracismo não só seja cultivado impunemente em esquinas obscuras da internet, como reine pela imprensa comum.
Nessas horas, sempre aparece quem diga que a censura é inócua, de modo que mais vale deixar o povo falar as piores coisas do mundo, mostrando bem a sua cara feia. A mera sanção social daria conta do recado, e o feioso ficaria em ostracismo. Será?
Talvez sim, talvez não. Depende da cultura do país, e depende – eis o motivo da minha preocupação – da camada social de onde brote. No Brasil, o neorracismo é claramente um fenômeno de elite, e uma imposição de cima para baixo. Muito se diz que o marco da derrocada da nossa Constituição é a manutenção dos direitos políticos de Dilma após o impeachment. Discordo. O marco é a liberação do racismo de Estado, ocorrida em 2012.
Nós no Brasil
O racismo é malvisto entre nós desde sempre. Tanto é que, quando se queria difamar o nosso país, sacavam estatísticas que mostravam que quase todo brasileiro negava ter preconceito quanto à cor, mas um monte de brasileiro conhecia gente preconceituosa. Isso seria uma hipocrisia, e os brasileiros deveriam assumir de uma vez que são racistas. Ora, se substituíssemos “gente preconceituosa” por “médico”, o resultado seria ainda mais contraditório: só uma porcentagem ínfima da população é médica, mas é factível chutar que menos de 1% dos brasileiros não conheça nenhum médico. Daí não se segue, porém, que no fundo, no fundo, todo brasileiro seja um médico. Além disso, o mais importante para conhecer a moralidade de uma sociedade é justamente o seu aspecto público. Com certeza mais homens ingleses do que brasileiros relutariam em admitir, num censo, que têm uma amante ou até um amante do sexo masculino. Estaria correto quem considerasse, ao menos lá nos anos 60, que os ingleses têm uma moral sexual mais rígida do que os brasileiros – que tradicionalmente estão acostumados à figura da “teúda e manteúda”, bem como à ideia de que machos podem penetrar o que bem entenderem – mulheres, homens, cabras, porcas – sem deixarem de ser machos. E quem presumir que a moralidade pública têm influência sobre as práticas privadas não estará sendo nem um pouco audaz.
Do mesmo jeito, se alguém, lá nos anos 60, consultasse os norte-americanos e os brasileiros para saber se eles reputavam os negros inferiores aos brancos, poucos brasileiros teriam coragem de assumir que pensam uma barbaridade dessas. Não à toa, os norte-americanos tinham segregação racial, e nós não. Não à toa, os propositores da nova discriminação racial querem que nos autodeclaremos racistas.
Eles lá nos EUA
Os EUA provavelmente são um caso único na história da humanidade de liberdade de expressão irrestrita. A Primeira Emenda, criada em 1791, resta firme e forte. A estabilidade institucional dos EUA é de fazer inveja ao Velho Mundo. Creio que só a Suíça e a Inglaterra possam se gabar de instituições tão duradouras; ainda assim, a juventude do país americano faz com que a institucionalidade atual praticamente coincida com a existência da identidade nacional. Nós entendemos que a história do Brasil começa em 1500; eles, que a história dos EUA começa com a Independência. Até por isso os progressistas se empenham em mexer com a história dos EUA, antecipando-a para o século XVII, e colocando na conta deles a escravidão praticada por ingleses em solo americano. Os EUA seriam fundados em 1619 pela escravidão, e não mais em 1776 pela liberdade.
Os EUA sem dúvida têm uma Constituição invejável. No entanto, raramente se atenta ao fato de que os progressistas conseguiram avacalhar a Primeira Emenda. O assunto é pouco comentado e já tratei dele aqui. Sob Woodrow Wilson, os EUA já tiveram polícia secreta e já criminalizaram toda crítica ao governo.
Tirando isso, o progressismo conseguiu empurrar, via Suprema Corte, duas de suas grandes pautas: a segregação racial (Plessy v. Ferguson, 1896) e o aborto sem prazo como um direito humano (Roe v. Wade, 1973). Em ambos os casos, a corte aparelhada deu tratos à bola: a igualdade virou igualdade entre raças separadas e o direito à privacidade virou direito ao aborto em qualquer época da gestação. Roe v. Wade foi revertida pela Suprema Corte este ano, com Dobbs v. Jackson Women's Health Organization. Plessy v. Ferguson, por outro lado, não recebeu uma reversão única e definitiva. Em vez disso, uma série de decisões iniciada com Brown v. Board of Education acabou com a constitucionalidade da segregação.
O aborto irrestrito nunca foi, nem é, um desejo comum à população dos EUA. Pode-se dizer que foi, mesmo, um movimento de elite intelectual. Não é à toa, portanto, que o nome da decisão está na ponta da língua dos interessados pelo tema. Por outro lado, a segregação racial encontra desde sempre amparo na população dos EUA. Esse país se dividiu, em guerra civil, entre aqueles que queriam a segregação racial para manter os negros como escravos e os abolicionistas, que pensavam em mandar os negros “de volta” para a África. O projeto hipersegregacionista de enviar os negros “de volta” para a África foi uma empreitada abolicionista. A fracassada Libéria, um dos mais pobres países da África, foi criada com negros deportados pelos abolicionistas. A cidadania, lá, é condicionada à raça.
No que concerne à raça, a moralidade pública dos EUA é e sempre foi inferior à do Brasil. Ainda assim, a moralidade pública dos EUA por 50 anos não foi capaz de segurar as elites progressistas. Será que a Primeira Emenda sobrevive por sua clareza e pela força das instituições, ou porque os progressistas conseguem dar um balão nela? Esse balão são os cancelamentos e o ESG; ou seja, num país de grande atividade empresarial privada, o fim da liberdade de expressão poderia ser conseguido por meios privados. Mas se a Primeira Emenda subsistir pela força das instituições, então eu não tenho dúvidas de que a Constituição dos EUA seria melhor sem ela, ou com uma inequívoca criminalização do racismo, igual à lei brasileira.
Eles lá na Alemanha
Liberais de verdade, não os de modess, gostam de apontar que Weimar tinha leis contra crime de ódio. Evidentemente, não funcionou – e não só não funcionou, como a censura estatal alemã foi instrumentalizada pela elite progressista para tratar o povo como criminoso.
No entanto, se formos condenar toda lei por causa de sua má aplicação, sem dúvida acabaríamos com a punição para homens que batem em mulheres ou as estupram, já que a deturpação progressista faz com que a “palavra da vítima” sirva para abusos contra os acusados. Se pegarmos as deturpações dos “direitos dos manos”, então… Não sobra lei nenhuma. Teremos de liberar tortura, estupro e espancamento conjugal, no mínimo. Além do próprio crime de racismo, já que hoje qualquer coisa que desagrade militante identitário pode ser racismo.
No mais, a ineficácia final das leis de crime de ódio em Weimar não apontam para a sua ineficácia absoluta. Talvez fosse ruim com ela e pior sem ela. Hoje com o narcotráfico temos guerra civil, mas podemos dizer, quanto à criminalização dos homicídios, que está ruim com ela, mas estaria pior sem ela.
O fato é que os alemães de Weimar só sentiram a necessidade de criar tal lei porque a moralidade pública alemã ia muito mal das pernas. Não me parece sensato comparar a turbulenta República de Weimar, com restrição à liberdade de expressão, à pacífica população dos EUA, com sua Primeira Emenda. Um povo guerreiro e etnocêntrico, belicoso frente ao Ocidente, tem uma cultura bem diferente da dos EUA, fundados por protestantes muito religiosos e trabalhadeiros. É como dizer que não adianta nada ter 190 porque um marido bruto matou a mulher a despeito disso, e marido pacato vive muito bem com a sua esposa a despeito da falta de linha telefônica em sua cidade.
Prova da eficácia pretérita da censura
Enquanto teoria científica, o racismo apareceu e se difundiu por países protestantes. O racismo se baseava na versão laica da heresia do pré-adamitismo. Deus não teria criado só Adão e Eva, mas casais diferentes globo afora. Era uma teoria difundida na modernidade, impactada pelas grandes navegações. Se houver só Adão e Eva – como sustentava a Igreja –, toda a humanidade é irmã, a despeito de suas diferenças físicas. Porém, se Deus tiver criado vários casais, não há mais esse vínculo universal. Tem-se a hipótese da poligenia humana, que deu origem ao racismo propriamente dito.
Não é à toa que os países de formação católica sejam muito menos propensos a aderir ao racismo. Resta inferirmos que o fato de a Igreja ter queimado em seus domínios os pré-adamitas mais recalcitrantes teve um impacto sobre a moralidade pública dos católicos. Impacto benéfico, diga-se. E cabe pontuar que a Igreja gozava de autoridade moral perante a população das regiões católicas, de modo que não podemos resumir a eficácia da censura a uma ameaça de fogueira.
É muito fácil falar contra todo tipo de censura quando estamos sentados sobre um legado cultural formado com ela. Agora vemos cursos de ética e bioética por todo o Ocidente adotando as ideias de um filósofo que defende a licitude de matar bebês dentro e fora do útero (refiro-me a Singer). Em meados do século passado, um teólogo protestante que dava aulas de ética virou best-seller ao defender o aborto à luz do amor cristão, alegando inclusive que em caso de estupro o embrião era “culpado” (refiro-me a Joseph Fletcher com seu Situational Ethics: The New Morality, de 1966). Pouco depois, apareceu Roe. Se o infanticídio for descriminalizado, eu não vou ficar surpresa. Tampouco vou ficar surpresa com o rebaixamento da moralidade pública entre os médicos.