| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
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Como classificação política, direita e esquerda surgiram na Revolução Francesa. Os que se sentavam à direita estavam ao lado do Rei e da Igreja; os que se sentavam à esquerda, ao lado da Revolução. Tendo sido uma denominação estritamente conjuntural, não existe uma conceituação teórica objetiva e não arbitrária para definir o que é um direitista e o que é um esquerdista fora do conjuntura da Revolução Francesa. Se interpretarmos “direita” como a defesa da manutenção do status quo ante, então em 2020 o PT era de direita, enquanto o governo Bolsonaro, à esquerda, tentava revolucionar a política brasileira. É tudo arbitrário e aberto à interpretação.

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A tentativa geralmente aceita entre os acadêmicos é a de Bobbio, que considera que, se se norteia pela igualdade, é esquerda; se não, é de direita. Bobbio se diz de esquerda democrática, mas a sua divisão tem a hombridade de colocar Stalin no quadrante da esquerda, porque todas as barbaridades do Czar Vermelho foram feitas em nome da igualdade. Não é esquerda = bom, direita = ruim, como no Brasil. Bobbio marca também o seu respeito por democratas de direita. A Itália de Bobbio era marcada pelo terrorismo de comunistas como Cesare Battisti – que teve uma recepção bem diferente entre a intelectualidade brasileira. Os comunistas italianos sequestraram e assassinaram o ex-primeiro ministro Aldo Moro, democrata cristão, professor universitário e ativista católico.

No Brasil, ser um ativista católico faz de alguém um direitista ou um esquerdista? Sem dúvida, o pessoal do Centro Dom Bosco e o da CNBB são bem diferentes. No entanto, bem poderíamos usar de esquematismos rígidos para falar que todo católico é de direita, porque na Revolução Francesa quem defendia a Igreja (católica) sentava-se à direita.

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É muito estranho que em seu último artigo Flávio Gordon use de modo rígido o conceito de direita (os militares não eram de direita porque se diziam revolucionários) ao tempo que usa de modo arbitrário dois conceitos rígidos (positivismo é progressismo porque acredita no progresso).

O Centro-Oeste é legado positivista

Segundo Flávio Gordon, “creem os positivistas e demais progressistas [que] a política se tornará dispensável, porque todos os homens passarão a compreender a realidade da mesma maneira, ou seja, racional e objetivamente. O corolário é que quem assim não a compreender será tido por algo menos que um homem, no pleno sentido da palavra”. Noutras palavras, quem acreditar no triunfo da Ciência como condutora da evolução social terminará por se converter num racista. Ora, devo lembrar que o Marechal Rondon (1865 – 1958) era mais positivista do que qualquer militar nascido no século XX. Numa etapa mais tardia de sua vida, o fundador da doutrina, Auguste Comte, criou a Religião da Humanidade, que cultuava grandes nomes da humanidade (como Arquimedes, Dante e São Paulo) à maneira de santos, e tinha uma Clotilde de Vaux (a paixão platônica de Comte) retratada à maneira de Maria para representar a Humanidade. É uma imitação laica do catolicismo que não abandona um traço moralmente muito importante da religião original: o universalismo antropocêntrico.

O progressismo, por outro lado, é marcado pelo malthusianismo, pelo darwinismo social e pelo racismo. Se desse no mesmo ser positivista ou progressista, uma figura como Rondon jamais teria existido. Mas voltemos à Religião da Humanidade. Ela praticamente só pegou no Brasil. Há um belo templo no Rio de Janeiro em ruínas, no qual estava a primeira bandeira republicana. Já em Porto Alegre, há uma construção mais modesta, mas que segue em funcionamento. Ao que se saiba, é o único templo positivista em funcionamento no mundo.

Seja como for, Rondon não foi Rondon apesar do positivismo, nem nada. Cultuando a Humanidade, ele encarou como missão desbravar o Centro-Oeste sem matar um único índio. “Morrer, se preciso for. Matar, jamais”, era o seu lema. Ele usava da tecnologia para impressionar os índios mais brabos, colocando uma vitrola para tocar o hino do Brasil em meio à mata. Quando Rondon nasceu, para sair do seu Mato Grosso natal e chegar à capital era preciso sair do Brasil por via fluvial, desaguar na foz do Prata e pegar um navio rumo ao Rio de Janeiro. Com os telégrafos implantados por Rondon com ajuda indígena, o Centro-Oeste começa a se integrar com o Brasil.

Rondon era um naturalista e um poliglota. Como mostra Rother em sua biografia, suas tentativas de se corresponder com a Royal Society foram infrutíferas. Aquele pequeno homem marrom de um país atrasado não servia para cientista. Com a comunidade científica francesa, porém, não houve problemas.

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Na Era Vargas, a SPI criada por Rondon foi conivente com limpeza étnica. Vargas não era um positivista, e Oliveira Vianna, seu guru, era adepto do racismo científico. É possível que a Marcha Para o Oeste de Vargas tenha tido inspiração na Conquista do Oeste dos Estados Unidos, que praticou limpeza étnica. Vargas fez o possível para tirar Rondon de cena; Rondon sai, a SPI fica com o varguista de sua confiança – Darcy Ribeiro – e a SPI possivelmente passa a agir em prol de uma limpa no Oeste paulista e no Centro-Oeste. O Museu Paulista era adepto da limpeza étnica, e seu proponente, então nêmesis de Rondon, era um alemão chamado Von Ihering. Darcy Ribeiro o cita elogiosamente em 'O povo brasileiro'. Penso que é preciso investigar o que ocorreu na SPI durante a Era Vargas até o governo Jango.

Mas em 64 há uma “Revolução” que tira o varguista Jango da presidência e coloca os “positivistas” — decerto bem menos positivistas que Rondon — na presidência da República. Os militares dão uma geral e, como resultado disso, é redigido o Relatório Figueiredo, que narra barbaridades cometidas contra os índios. A SPI é extinta e reformulada. Ganha o nome de FUNAI e conta com quadros novos.

Depois disso, graças a esses positivistas, é criada a Embrapa, que viabiliza a agricultura no Cerrado — o mesmo Cerrado que o positivista Rondon integrara ao Brasil.

Com alguma licença, podemos dizer que o Centro-Oeste e o agronegócio são criações positivistas. No mais, o grupo político mais dedicado à soberania brasileira na Amazônia, inclusive combatendo guerrilheiros, é o grupo positivista.

Só interessa período militar, e só a cultura

Flávio Gordon deixa tudo isso de lado porque, tal como a esquerda brasileira gramsciana, seu foco está no período militar; e, mais em específico, na cultura. De fato, os militares pecaram por deixar a universidade na mão da esquerda. Flávio acha que isso pode ter sido um plano deliberado dos positivistas para acabar com os conservadores e dar espaço aos seus colegas de progressismo, os comunistas. Como fonte para isso, cita o depoimento de Vélez Rodríguez, segundo o qual os militares fizeram um acordo com a AP (Ação Popular) para ela sair da guerrilha. A AP levaria a CAPES e o CNPq e largaria a guerrilha.

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De minha parte, já penso que um positivista, justamente por mistificar a Ciência, acha-a neutra, de modo que pode ser entregue a qualquer pessoa, desde que competente. E uma coisa à qual Flávio Gordon não dá muita atenção é que a AP está a anos luz de ser um grupo guerrilheiro normal. Ela saiu da costela da Ação Católica e é formada por pupilos do Padre Vaz. A Ação Católica foi criada graças à encíclica Quadragesimo Anno, onde o Papa defendia alguma espécie de corporativismo. Dela saíram órgãos como a JUC, Juventude Universitária Católica. Na primeira metade do século XX, a JUC era extremamente próxima da Ação Integralista. Depois de Vargas, a JUC se afastou da direita (se eu puder chamar o integralismo de direita) e virou esquerda cristã. Quando a JUC foi denunciada como organização comunista, os militantes católicos fundaram a AP, sem relações com a hierarquia da Igreja. Mas continuavam pupilos do Pe. Vaz, e nessa condição fizeram o primeiro atentado terrorista do regime militar, o do Aeroporto Guararapes. Nos anos 70, houve um racha porque parte resolveu virar comunista. Aí, sim, surgiu a APLM, Ação Popular Marxista-Leninista. Já a AP ficou extinta.

Ou seja: no fim das contas, esses “progressistas” que ganharam a CAPES e o CNPq eram católicos e não marxistas.

Perseguição nas universidades

Recuando no tempo, e voltando à época de Aldo Moro, que fundiu as figuras de ativista católico e professor universitário, vale lembrarmos Thales de Azevedo (1904 – 1995) antropólogo membro da Ação Católica que sempre se manteve distante do marxismo. Suas convicções políticas aparecem um pouco em A evasão de talentos (Paz e Terra, 1968), uma obra sobre a dificuldade das universidades brasileiras de reter os bons pesquisadores que formam. Entre as suas metas está a criação de um sistema que “sugeriria às Universidades, […] unificadas num único sistema, as medidas eficazes ao desempenho dos objetivos do ensino e da pesquisa como instrumentos do progresso e da justiça social” (p. 3). A única filiação política de Thales de Azevedo, em toda a sua longa vida, foi à Ação Católica, e sempre se opôs aos marxistas. Na antropologia, é o sucessor de Gilberto Freyre no Projeto da UNESCO, e trata do Brasil como país exemplar na convivência entre negros e brancos em seu livro sobre as elites de cor na Bahia. Florestan escreveu o seu livro sobre os negros em São Paulo para se opor a Freyre e a ele. No entanto, ele caberia fácil aqui na caixinha de “progressista” de Flávio Gordon.

Mais para frente, Thales elenca um dos motivos para o “brain drain”: “Na raiz de muitas dessas saídas para o estrangeiro estão, infelizmente, suspeitas e perseguições políticas, cujo episódio mais deplorável e de vergonhosa repercussão mundial foi a intervenção armada na U. de Brasília, que resultou na renúncia de 200 professores, com o exílio de muitos e a frustração completa de uma experiência educacional planejada pelos mais destacados educadores e pensadores brasileiros” (p. 49). A UnB, à época, era facilmente associável ao nome de Darcy Ribeiro, que a idealizara. Quanto ao seu esquerdismo, vale lembrar que foi ali que Agostinho da Silva fora perseguido como salazarista, pelo mero fato de ser português – refugiado da ditadura de Salazar.

Crítica razoável

Olavo de Carvalho, um culturalista, vivia fazendo discursos contra os militares cujo teor é bem esse do texto de Flávio Gordon: positivistas não prestam e comunistas não foram suficientemente perseguidos. Acontece que essa é uma postura um tanto quanto folgada. O culturalista fica sentado no sofá pedindo que alguém forte desça o cacete nos comunistas enquanto a revolução cultural não se concretiza. Tudo o que importa é a cultura, diz-se, mas enquanto a cultura não está resolvida (e só Deus sabe quando estará), os militares que deem um jeito.

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A crítica culturalista válida me parece a de Josias Teófilo: o governo – este, de Bolsonaro – pecou por não promover a cultura. Não obstante, a culpa disso não foi dos militares. Foi, em parte, de um certo senso comum liberal, segundo o qual o Estado não deve investir em cultura, e, em parte, de maus seguidores de Olavo, que combinaram esse senso comum liberal com a ideia de que cultura é a mesma coisa que garganta. A pessoa “acabava com a mamata” (prendendo um dinheiro que virou lei Aldir Blanc) e fazia tuítes metafísicos para resgatar a alta cultura.

Eu gostaria de saber o que têm em mente os que picham as Forças Armadas brasileiras por elas serem positivistas. Além de isso ser uma ingratidão com os legados de Rondon e do período militar, fica a pergunta: quem vai defender o Brasil em caso de ataque? A ONU? Elon Musk? Os traficantes armados? Carla Zambelli de pistola?

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]