Esta semana eu me lasquei. Podemos traduzir os textos abertos de Patrick Deneen no seu Post Liberal Order. Estava eu traduzindo um catatau para sair neste final de semana (intitulado “Em defesa da ordem, parte 1”) e, quando cheguei pertinho da última lauda, deu ruim: percebi que ele dizia coisas reprováveis segundo as mais recentes jurisprudências brasileiras. Eu jamais imaginaria que uma palestra para estudantes conservadores sobre um livro de Russell Kirk (As raízes da ordem americana, sem tradução brasileira) chegaria a questões muito atuais. Olhei aquele texto livresco que tomava o rumo das discussões etimológicas e comecei a traduzi-lo sem outro medo que não o de entediar o leitor do jornal.
Mas o texto foi esquentando.
Por que o escolhi? Por tocar no assunto do suposto “conservadorismo” que hoje constitui, até mesmo aqui no Brasil, uma hegemonia na direita: é o “conservadorismo” que, no frigir dos ovos, se resume à promoção do laissez faire econômico enquanto empreende uma anacrônica batalha contra o “comunismo” (tudo é comunismo agora). É normal as pessoas simpatizarem com laissez faire, ainda mais no Brasil pós-Dilma. O que é estranho é as pessoas entenderem que conservadorismo é livre mercado. De onde, diabos, saiu isso?
Para mostrar essa hegemonia, Deneen arrola as seguintes missões e valores das principais ONGs consideradas conservadoras nos EUA:
- Heritage Foundation: “Livre empreendimento, governo limitado, liberdade individual, valores americanos tradicionais, e uma forte defesa nacional: estes são os valores pelos quais lutamos a cada dia.”
- AEI: “um think tank de políticas públicas dedicado a defender a dignidade humana, expandir o potencial humano e construir um mundo livre.”
- Cato Institute: “A visão do Cato Institute é criar sociedades civis livres e abertas, fundadas sobre princípios libertários.”
- Institute for Humane Studies: “O IHS tem suas raízes na tradição liberal clássica e promove uma sociedade mais livre, mais humana e aberta, conectando e apoiando alunos de pós-graduação, acadêmicos e outros intelectuais que lideram o progresso nas conversas cruciais que moldam o século XXI.”
- Young America’s Foundation: “A Young America’s Foundation tem o compromisso de garantir que um número crescente de jovens americanos entendam e sejam inspirados pelas ideias de liberdade individual, uma forte defesa nacional, livre empreendimento e valores tradicionais.”
- Hudson Institute: “Uma organização de pesquisa que promove a liderança americana em prol de um futuro seguro, livre e próspero.”
- Fund for American Studies: “Ensinando Liberdade desde 1967 […]. Nossa missão é desenvolver líderes corajosos […], inspirados para proteger e promover as ideias de liberdade individual, responsabilidade pessoal e liberdade econômica […].”
- Liberty Fund (site “Law and Liberty”): “Uma fundação educacional privada que estimula questões duradouras relativas à liberdade […]”. Criada com o espólio de Pierre Goodrich, ela reflete seus compromissos com a “preservação, restauração e desenvolvimento da liberdade individual”.
- Law and Liberty (webzine do Liberty Fund): “foca na tradição liberal clássica da lei e do pensamento político, e de como ele modela uma sociedade de pessoas livres e responsáveis…”.
- Acton Institute: “a missão é promover uma sociedade virtuosa, caracterizada pela liberdade individual e sustentada por princípios religiosos”. (Sua revista se chama “Religion and Liberty”.)
Por último, Deneen cita o Intercollegiate Studies Institute. I.S.I., que “foi um das primeiras organizações de movimento conservador, e suas iniciais, no começo, significavam Intercollegiate Society of Individualists. A organização foi fundada em 1953 por William F. Buckley e Frank Chodorov. Chodorov, por acaso, era o editor da ‘The Freeman’ (1954), publicada sob os auspícios da Foundation for Economic Education (cuja ‘Visão’ é: ‘Fazer ideias da liberdade familiares, críveis e contundentes para a nova geração’), e autor de One is a Crowd: Reflections of an Individualist (1952) e Out of Step: The Autobiography of an Individualist (1962). O site do I.S.I. anuncia que ‘sob a liderança de nosso primeiro presidente, William F. Buckley, começamos a treinar rapazes e moças para serem eloquentes defensores da liberdade’.”
Diante desse rol, Deneen aponta a onipresença da palavra “liberdade”, sempre enfatizada, e a completa ausência da palavra “ordem”. Ora, tradicionalmente, o conservadorismo é o Partido da Ordem. É muito, muito estranho que o conservadorismo mainstream dos EUA fale só de liberdade (uma tradicional bandeira da esquerda) e deixe a ordem de fora. Deneen também costuma criticar o entendimento desregrado da liberdade que os conservadores mainstream têm, mas esse não é o assunto do texto.
O assunto é justamente explicar a origem disso, além de mostrar como esse movimento está contra o verdadeiro conservadorismo. Daí ele ter usado o livro de Russell Kirk sobre a ordem americana: “Kirk enfatizou que a fundação dos EUA (vista com tanta frequência, hoje, como um esforço para assegurar a liberdade individual acima de tudo) era, na verdade, dedicada para assegurar a ordem. Embora os Pais Fundadores fossem, na visão de Kirk, ‘homens tanto de liberdade quanto de ordem’, eles reconheciam que a época [, no calor da Rebelião de Shay,] clamava pela preeminência de um desses dois princípios: ‘acharam bom, àquela época das questões americanas, corrigir o equilíbrio americano em favor da ordem.’ Encontramo-nos num momento notavelmente similar, no qual um profundo desequilíbrio levou a negligenciar uma política da ordem.”
Deneen aponta a onipresença da palavra “liberdade”, sempre enfatizada, e a completa ausência da palavra “ordem”. Ora, tradicionalmente, o conservadorismo é o Partido da Ordem
Temos então um certo revisionismo da história, feito para os Pais Fundadores se parecerem mais com uns hippies do que com Pais Fundadores, asseguradores da Ordem. Esse revisionismo, para Deneen, tem origem no contexto histórico em que o conservadorismo moderno dos EUA tomou forma e se desenvolveu: as ONGs começaram a surgir em meados dos anos 50 e seu discurso alcançou sucesso político com a eleição de Reagan. Por todo esse período, a ameaça comunista era o maior perigo ideológico para os EUA. Na situação do Pós-Guerra e da Guerra Fria que se lhe seguiu, fazia sentido enfatizar a liberdade para se defender do comunismo no campo das ideias. Agora, para Deneen, o discurso das ONGs conservadoras está datado.
Mas há ainda outra razão importante para ele escolher o livro e Russell Kirk. Uma coisa muito correta que Olavo de Carvalho dizia era que as pessoas repetem ideias cujas origens desconhecem. Muito do que foi vendido (inclusive por Olavo) como “conservadorismo” é, na verdade, uma ideologia muito específica, inventada por Frank Meyer e promovida pelo midiático William F. Buckley, intelectual de berço de ouro, criador da National Review e apresentador de programas televisivos. Essa ideologia chama-se fusionismo, e consiste numa defesa de certo tradicionalismo no âmbito dos costumes aliada à defesa do liberalismo mais extremado no âmbito público (pode descriminalizar tudo, pode desregulamentar o mercado financeiro etc).
Por isso, Frank Meyer inaugurou justamente com Kirk a prática de desancar conservadores chamando-os de comunistas por, sei lá, ser contra usar heroína na praça. Trata-se do artigo “Coletivismo rebatizado”, de 1955, que pode ser lido aqui, a partir da página 21 do PDF.
Vamos ao comentário de Deneen: “Meyer atacou a ênfase de Kirk na ordem como indiscernível da opressão que ele via animar a Idade Média – para ele, o maior insulto. Segundo Meyer, ‘O padrão social que emerge dos palpites e sugestões nos escritos [de Kirk] é modelado por palavras como autoridade, ordem, comunidade, dever [e] obediência. Liberdade é uma palavra rara; o ‘indivíduo’ é um anátema […]. As qualidades dessa sociedade sugerida são uma mistura das da Inglaterra do século XVIII e da Europa medieval – ou talvez, de uma maneira mais precisa, as da República de Platão…’
“Essas acusações são, em essência, idênticas àquelas feitas hoje contra os defensores da ‘ordem’ – inclusive, não raro, escritores neste local. E, assim como amiúde são feitas por progressistas da Esquerda, são feitas por liberais de direita que, enganosamente, reivindicam o manto de ‘conservadores’ desde o tempo de Kirk. De fato, no que toca a defesa de visões cada vez mais extremas de uma sociedade livre desatrelada da prioridade da ordem, os ataques tanto da ‘esquerda’ progressista quanto da ‘direita’ libertária aos defensores da ordem são tão indistinguíveis hoje quanto a setenta anos atrás.
“Notavelmente, as acusações de Meyer a Kirk foram as mesmas alegações essenciais feitas por liberais no Pós-Guerra contra fascistas e comunistas, que desenvolveram a tese de que o totalitarismo era simplesmente uma repetição do platonismo e do medievalismo. Essa era exatamente a linha da argumentação desenvolvida por Karl Popper em seu livro de 1945, A sociedade aberta e seus inimigos. O argumento – invocar a prioridade da liberdade contra um retrato reducionista da autoridade que supostamente molda toda a tradição filosófica desde Platão a Tomás de Aquino a Marx – é o mesmíssimo reducionismo adotado por Meyer contra Kirk. O libertário Meyer tira a mesma conclusão que o liberal Popper, pai intelectual de George Soros: ‘O Novo Conservadorismo, desnudado de seus fingimentos, nada mais é, infelizmente, que outro disfarce para o espírito coletivista da época.’ Para o libertário, Kirk era indistinguível de Marx e Stalin. O reducionismo liberal de má-fé continua firme e forte até hoje.
“Por que esse abandono da ‘política da ordem’ é importante? Como gostamos de dizer no Postliberal Order: olhe em volta. A resposta é óbvia.
“Estamos rodeados – na verdade, quase dessensibilizados – pela desordem difusa. A desordem política é agora a norma. Nossa abordagem da educação e suas finalidades são definidas pela desordem. As escolas produzem jovens desordenados. Nossas cidades, outrora lindas, e fontes de orgulho para os americanos, estão conspurcadas pela desordem. Nosso entendimento do sexo e da sexualidade é profundamente desordenado, talvez até o ponto de originar tantas formas de desordem social que afeta a família, a comunidade, a igreja, a nação e o globo.
“Dever-se-ia pensar que um conservadorismo digno do nome poderia nomear prontamente o nosso mal e inspirar oposição com uma visão alternativa.
“Longe disso. O movimento conservador é incapaz de diagnosticar a natureza de nossa doença, muito menos abordá-la, porque incompreende-lhe a natureza e colabora cegamente com seu agravamento. O próprio conservadorismo está ‘desordenado’ porque desdenhou da prioridade da ordem.
“Como a ‘missão’ de tantas das suas organizações sugere, bem como os principais argumentos repetidos pelos seus líderes, segundo o conservadorismo contemporâneo, o mundo moderno está sofrendo de um excesso de opressão. Carente de qualquer outro vocabulário, recorre ao pressuposto batido de que todo problema pode ser entendido por meio da dicotomia liberdade X opressão. Os hábitos entranhados levam à conclusão, já em morte cerebral, de que nos deparamos agora com uma renovação da opressão comunista. Quase todo conservador bestseller alega que a ameaça surge de um totalitarismo marxista renovado – agora descrito como ‘marxismo cultural’. Tentativas de silenciar palestrantes em campi, cancelamento, controle sobre transações financeiras e confinamentos e o policiamento dos pronomes são todos vistos como evidência da corrosão totalitária das nossas liberdades.
“Há alguma verdade nessa percepção, mas uma verdade parcial, e, no frigir dos ovos, enganosa, por causa da sua parcialidade. A maior parte do que é experimentado como opressão é, na verdade, a imposição policiada da desordem, acompanhada pela supressão dos defensores da ordem. Isto é, a privação da liberdade é, numa maneira teleológica, secundária na tarefa de impor a desordem.”
Deneen escreveu isto, e é melhor pararmos por aqui.
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