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Saiu já este ano, pela E.D.A., O Livro Proibido: Totalitarismo, Intolerância e Pensamento Único na Universidade, organizado por Gabriel Giannattasio, professor de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) desde a década de 90. O livro tem um formato de dossiê e dá mil voltas em torno da perseguição sofrida por ele e seus alunos na UEL. Embora seja especializado na UEL, qualquer pessoa preocupada com a radicalização das universidades há de concordar que o clima da universidade paranaense é uma amostra regular do clima das universidades públicas país afora.
Vamos ao primeiro estopim do livro: era uma vez esse professor de história que lecionava havia décadas na UEL, entre amigos e sem problemas. Nunca fora notadamente conservador ou careta: ao contrário, seus autores prediletos eram Sade e Nietzsche. Realizava orientações, participava de bancas e dava aulas. Um belo dia, porém, seu orientando de mestrado Guilherme Cantieri entregara um trabalho numa disciplina da pós-graduação em que citava Olavo de Carvalho. A docente que ministrava a disciplina de pós-graduação escreveu a Giannattasio uma cartinha manifestando preocupação com o futuro do aluno por causa do tal trabalho. Giannattasio não conhecia a obra de Olavo de Carvalho, mas leu o trabalho, não viu nada de mais e ficou ao lado do aluno. Contra este, moveu-se um processo interno por “falta de urbanidade”. Cantieri foi reprovado na matéria com nota 4. Isso aconteceu em 2009.
Na coletânea, inclui-se um relato de Cantieri sobre sua vivência na universidade. Devo dizer que a minha percepção é idêntica à dele, a saber: a universidade era um ambiente de partidarismo sutil, que não impedia as relações humanas e intelectuais dos professores esquerdistas radicais com os alunos de direita, e que isso mudou com as redes sociais. Os professores passaram a vigiar as postagens dos alunos no Facebook, seja no interior do Paraná ou na capital da Bahia. Ou seja, essa tolerância dos radicais se baseava numa confiança ilusória na “boa índole” do alunado. Quando os professores viram o que os alunos postavam (e quem adicionava normalmente era o aluno, que também acreditava na boa índole do professor), começaram a mexer os pauzinhos dentro da universidade para promover a caça aos hereges.
O segundo estopim, por assim dizer, foi em 2016, com a indicação do então vereador Filipe Barros (hoje deputado federal) pela câmara de vereadores de Londrina para compor um Conselho da UEL. O departamento de História pressionava todos os professores a assinarem um manifesto contra a indicação do vereador de direita. Giannattasio e mais um colega foram contra, alegando que o vereador fora eleito e a indicação fora legítima. Depois disso, ele e o colega foram processados internamente por falta de urbanidade e falta de decoro.
O projeto de extensão
Para enfrentar o problema, Giannattasio cria o projeto de extensão “UEL: A casa da tolerância”. A universidade pública brasileira é orientada pelo tripé “ensino, pesquisa e extensão”; isto é, deve dar aulas, produzir conhecimento e atender o público externo. Como é institucional, todo projeto de extensão tem de passar pela burocracia interna da universidade.
O projeto começou no final de 2017. O início foi marcado pela exibição do filme O Jardim das Aflições, de Josias Teófilo. Nisso, a UEL parecia estar muito acima das federais do Brasil, já que a liberação do cineasta para a exibição não-comercial desse filme em universidades desencadeou um surto de pancadaria pelas federais do Brasil (o mais famoso foi o da UFPE, mas houve em outras também. Na UFBA, a reitoria negou de última hora a sala aos olavetes alegando que queria evitar violência. Resultado: apanharam do PCO na exibição ao ar livre).
Além de exibições de filmes, o projeto tinha debates públicos sobre temas polêmicos. Mas os debates tiveram de ser convertidos em palestras de direita, porque os esquerdistas recusaram os convites para debater. Os intolerantes já se moviam contra o projeto. Um professor de Sociologia não foi autorizado pelo seu departamento a dar uma palestra e os cartazes eram arrancados cartazes. Após se colocar uma câmera, descobriu-se que era uma professora que saía arrancando os cartazes do projeto.
A coisa explodiu, porém, com uma exibição cinematográfica. Em 2019, o Brasil Paralelo lançou o documentário 1964: O Brasil Entre Armas e Livros. Uma pré-estreia seria feita na UEL pelo projeto Casa da Tolerância. Como era uma pré-estreia, ninguém tinha visto o filme ainda. Mas, na cabeça dos fanáticos, se o filme era “de direita”, só poderia ser favorável à tortura. Então juntaram-se algumas centenas de estudantes em torno da sala de cinema para ficar gritando e xingando. Uma senhora de idade que acompanhava o padre precisou ir ao banheiro e levou uma cusparada na cara. Com medo, a plateia ligou para a polícia. A polícia chegou, o silêncio reinou por um breve período, mas foi mandada embora. Quando o filme acabou, a plateia, integrada por cidadãos londrinenses comuns, deparou-se com um corredor formado por dois cordões humanos, em que membros da administração e alunos estavam de mãos dadas. O corredor levava a plateia a uma saída pelo barranco. Padre e senhorinhas entrevadas tiveram de sair da sala rumo ao barranco indicado, sob gritos e xingamentos de um corredor polonês.
Difícil pensar numa cena tão dantesca.
Corrupção da burocracia
Essa foi a cereja do bolo. Ao longo do livro, aprendemos que processos internos, tais como “falta de urbanidade”, são mecanismos de intimidação, feitos anonimamente; que coletivos estudantis agem em perfeita sinergia com a administração; que são sempre dois pesos e duas medidas (por exemplo: os calouros de História foram recebidos com uma convocação para socar fascistas, mas a administração falou que era “só um meme”; um professor promoveu uma exposição de fotos com genitálias à mostra, e o mesmo conseguiu mudar o nome do projeto de extensão alegando que chamava as universitárias de prostitutas). A burocracia vetou a continuidade do projeto e, antes disso, impedira Gabriel Giannattasio de dar uma disciplina obrigatória, acolhendo as acusações dos coletivos.
O caso mais ilustrativo da corrupção moral do professorado talvez seja o da professora que mandou áudios por WhatsApp a uma aluna assim: “Você chegou ao limite de defender essas coisas que o Gabriel fala. O Gabriel está perdido, você não entendeu, menina? E você vai se foder [sic], porque ele não vai te levar a lugar nenhum, querida”. Isso é uma professora se dirigindo a uma aluna de graduação que começara a iniciação científica com ela e estava prestes a defender o trabalho de conclusão. A ameaça velada é a de sabotagem futura. Concursos para professor não é marcando x; seleção para pós-graduação não é impessoal. Numa área como História, muitos querem virar pesquisadores e acadêmicos. Vida acadêmica na universidade pública é uma eterna briga de facção competindo por recursos (já escrevi sobre isto aqui e aqui).
O próprio Gabriel Giannattasio virou um pária. Deixou de ser convidado para bancas e dificilmente algum programa de pós aprovaria o ingresso de um aluno seu. Estudar com ele torna-se a certeza de uma carreira acadêmica sabotada. Assim, na primeira vez em que o impediram de dar disciplina obrigatória, criaram duas turmas, de modo que quem não quisesse ser aluno dele tivesse a opção de fazer a matéria com um colega dele de esquerda. Qualquer aluno que escolhesse cursar a disciplina com ele estaria, naturalmente, cancelado, e sem perspectiva de ter uma carreira. O temor do cancelamento era também um desestímulo à participação no projeto de extensão.
Depois disso, deixaram-no só com disciplinas optativas. Os alunos não pegam as optativas por medo e Giannattasio está, na prática, mais ou menos como FHC durante o regime militar: precocemente aposentado das sala de aula por razões políticas.
Que fazer?
O livro é organizado por Giannattasio, composto em sua maioria por textos dos envolvidos: ele próprio, alguns alunos, Paulo Briguet (o jornalista local que dava ciência dos fatos a Londrina e depois participou do projeto de extensão), participantes do projeto… No começo, há um pequeno texto do pesquisador Pedro Franco, que estuda o problema da intolerância nas universidades. Ele “não tem a pretensão de sugerir uma solução”, mas “um caminho para que essas soluções possam surgir de dentro da universidade.” Esse “caminho” seria o da Heterodox Academy, fundada por Jonathan Haidt nos EUA. Uma Academia Heterodoxa brasileira deveria formar uma rede de pesquisadores com três objetivos: “conscientizar a comunidade acadêmica […] sobre os desafios [leia-se: problemas] que a polarização ideológica e a falta de diversidade política no meio acadêmico oferecem para a educação superior”; “realizar pesquisas e levantar dados sobre como esses problemas afetam a educação superior e a produção acadêmica”; “desenvolver ferramentas teóricas e práticas para a comunidade acadêmica despolarizar o campus universitário”. Quanto ao primeiro tópico, é óbvio que o fanatismo é um inimigo da qualidade da pesquisa. Creio que uma professora que arranque cartazes e persiga alunos não faça isso por estar preocupada com a qualidade acadêmica da instituição. E creio que o termo “polarização” não cabe, já que só há fanatismo organizado de um lado. Quanto ao segundo tópico, os problemas relatados por Giannattasio no livro serão reconhecidos por qualquer egresso da academia em sua própria universidade. Não precisamos levantar dados para saber como é o problema – e o próprio levantamento pormenorizado é impossível sem a colaboração das instituições, ou com o clima de terror sobre os alunos. Quanto ao terceiro tópico, considero-o vago demais para discuti-lo.
Pedro Franco diz que “se tivermos qualquer esperança de um debate produtivo dessa questão no Brasil, aqui também precisaremos cobrar e apoiar o engajamento de nossa comunidade científica”. No mesmo livro, aprendemos que a UEL acha bonito cuspir na cara da senhorinha que foi à universidade participar de um projeto de extensão. Então é bom Pedro Franco perder as esperanças. De minha parte, eu não perco, porque acho que podemos ter fora da universidade debates produtivos. Qualquer solução para a universidade pública de agora terá que vir de fora. É preciso mudar a política de contratação de docentes, descartelizar a Capes e o CNPq, acabar com eleição para reitor e deixar a polícia entrar no campus normalmente.
A própria conduta de Giannattasio mostrou que recorrer à comunidade interna não leva a lugar algum. É um erro pensar que a universidade se move por teoria e pensamento. A universidade é parte da sociedade; e, se tiver sido privatizada por um bando de fanáticos, não é um movimento interno que irá dar um jeito nela.