O Sudeste e o Sul têm uma grande classe média, a classe média é tipicamente ideologizada, e por isso a gente vê um monte de análise chinfrim que quer reduzir tudo a direita e esquerda, ou a comunismo e conservadorismo. O exemplo mais constante disso é dizer que o Nordeste é de esquerda, como se fosse minimamente factível que camponeses analfabetos esposassem uma ideologia radical de gente letrada. Ademais, recuando no tempo, é muito fácil ver que o Nordeste durante o regime militar era “de direita”. Ele não era de direita, nem é de esquerda hoje. Para entender o Nordeste, é preciso entender a política local. Entender a política local, no caso do Nordeste, passa por entender coronelismo.
No entanto, esse mesmo erro que se comete com o Nordeste – de considerar tudo sob uma chave ideológica e ignorar a política local – é generalizado. Não é porque São Paulo tem muita classe média que o eleitor paulista vota por ideologia. Compreender o papel do tucanato na política paulista é algo completamente diferente de pegar um manual de social-democracia. Política não se faz só com ideologia; quem gosta de ideologia é a classe média urbana. Como a quase totalidade dos comentaristas políticos é de classe média e alta dos centros urbanos mais ricos…
Só assim para entender que não tenham mencionado o elefante da sala desta eleição, que é São Paulo. O comentarista ideologizado vai olhar para Tarcísio e dizer: “Nenhuma novidade, pois São Paulo, o estado, nunca elegeu a esquerda!” Ora bolas, pela primeira vez na História da República o estado de São Paulo está em vias de eleger um outsider indicado por Brasília. Pensem nas últimas eleições. Qual era a relevância dos governadores de São Paulo e prefeitos da capital, e o que aconteceu nesta eleição com todos eles?
Para dimensionar a mudança por que São Paulo passa, recuemos na história da República.
A República é estabelecida por São Paulo
O peso da elite de São Paulo na política nacional se confunde com a derrubada do Império, sediado no Rio de Janeiro, e a instauração da República.
A presidência da República começou com dois militares alagoanos, Deodoro da Fonseca (1889 - 1891) e o sanguinário Floriano Peixoto (1891 - 1894). Nenhum dos dois foi eleito. O primeiro presidente eleito foi do Brasil foi Prudente de Morais (1894 – 1898), civil, que era político do interior de São Paulo desde os tempos do Império. Quando o Marechal Deodoro deu o golpe, foram nomeadas juntas governativas para substituir os governadores das “províncias” do Império, que passaram a se chamar “estados”, como hoje. Pois bem: Prudente de Morais, o primeiro presidente eleito do Brasil, foi o primeiro governador republicano de São Paulo, apontado pelo Marechal Deodoro. Como é fato pouco disputado que a elite cafeeira paulista e escravocrata era a principal força econômica contrária ao Império, podemos ter uma ideia da dimensão política que o grupo político de Prudente de Morais teve na fundação da República.
Assim, temos que o primeiro presidente eleito do Brasil já era um ex-governador de São Paulo. A Prudente de Morais seguiram-se (listo os presidentes eleitos em ordem cronológica): Campos Sales, paulista, Rodrigues Alves, paulista, e Afonso Pena, mineiro, que morre no cargo. Todos esses paulistas pertenciam ao PRP, Partido Republicano Paulista, e o mineiro pertencia ao Partido Republicano Mineiro. Todos eram ex-governadores dos seus estados. Rodrigues Alves, inclusive, era um ex-governador dos tempos do Império. Para os contemporâneos, deve ter sido fácil enxergar a República como a tomada do poder pela elite paulista.
Os demais políticos o período
Tal como na época de Jânio/Jango, as eleições para presidente e vice eram avulsas. Vale notar que os primeiros vice-presidentes eleitos eram um baiano e um pernambucano. O baiano, Manuel Vitorino era um opositor de Prudente de Morais que tomava medidas opostas quando ocupava a presidência. Enturmado com o Marechal de Ferro, enviou para Canudos o mesmo militar que ganhara em Florianópolis o apelido de Treme-Terra, em função dos fuzilamentos. Comprou o Palácio do Catete e decidiu que ali seria a sede da presidência. Quando Prudente de Morais sofreu um atentado – um outro homem de sobrenome Bispo tentara esfaqueá-lo –, a carreira de Manuel Vitorino afundou.
A figura de Vitorino é interessante por ser exemplar de um certo civil de mão de ferro que apoiava os militares. Esta era a real oposição à política do Café com Leite puxada por São Paulo. Outros segundos colocados nessas eleições presidenciais foram Lauro Sodré, militar paraense que ficou em segundo lugar duas vezes (contra Campos Sales e Afonso Pena), e Quintino Bocaiuva, um civil fluminense muito próximo dos militares. A única exceção a esse perfil entre os segundos colocados até aqui é Afonso Pena: o primeiro pleito no Brasil fora entre ele e Prudente. Ao cabo, ambos tornaram-se aliados.
Além de segundo colocado em 1894, Afonso Pena foi eleito vice-presidente junto com o veterano Rodrigues Alves em 1902. Terminado o mandato deste, o próprio Afonso enfim se elege em 1906. Mas morre – e aí a ordem centrada em São Paulo leva uma sacudida, pois o seu vice era um político do Rio de Janeiro.
Uma primeira sacudida
Morre o mineiro Afonso Pena, entra o primeiro presidente do Rio. Nilo Peçanha, do Partido Republicano Fluminense, um advogado mulato natural de Campos, fez um governo muito popular e apoiou para a sua sucessão um militar: Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro, natural do Rio Grande do Sul (seu pai alagoano fora para lá por causa da Guerra do Paraguai). Seu partido era o PRC, Partido Republicano Conservador. Diferentemente do PRP ou do PRM, era um partido de pretensões nacionais. Tinha expressão no Rio Grande do Sul e em Pernambuco. O próprio Hermes estudara na Praia Vermelha, no Rio.
Hermes da Fonseca contou com o apoio amplo, mas com a oposição de São Paulo. Desta vez, a oligarquia não tentara eleger um membro seu. Associara-se ao baiano Ruy Barbosa e tentara emplacar o intelectual civil contra o marechal. A eleição de 1910 foi a primeira com uma disputa real. Em meio a muitas acusações de fraude, e contra a vontade do Café com Leite, elegeu-se Hermes da Fonseca.
A presidência de Hermes da Fonseca (1910 - 1914) foi bastante centralizadora e entrou em conflito com as oligarquias estaduais (na Bahia, o Forte São Marcelo chegou a bombardear o palácio do Governo, onde estava a Biblioteca Pública, e o aliado de Ruy Barbosa transferiu a capital para Jequié, no sertão).
Depois de Hermes da Fonseca, porém, o Brasil voltou à política do Café com Leite. Elegeu, nesta ordem: um presidente do PRM (Venceslau Brás), um do PRP (Rodrigues Alves, morto antes de assumir), dois do PRM (Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes) e dois do PRP (Washington Luís e Júlio Prestes). Todos eram ex-governadores de São Paulo ou de Minas, exceto Epitácio Pessoa, que era paraibano e tinha boas relações com ambas as oligarquias. Sua carreira política prévia incluía a chefia da delegação brasileira no Tratado de Versalhes. (Washington Luís, embora fluminense, fizera carreira política em São Paulo e governou o estado.)
Júlio Prestes, como se sabe, não chegou a assumir porque Getúlio Vargas saiu do Rio Grande do Sul e deu um golpe de Estado. Entre o fim da presidência de Hermes e o golpe de Getúlio passaram-se 16 anos. Foram anos conturbados, com as revoltas militares do Tenentismo (sendo as mais famosas a Revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana e a Coluna Prestes), bem como com muito sangue derramado pelo Cangaço e com muito temor de uma revolução comunista. Ainda assim, foi um período em que São Paulo esteve no coração do poder no Brasil.
Na próxima, continuamos com a cronologia.