| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Como vimos, os supostos campeões da democracia que se opõem ao fantasma do regime militar (ora encarnado em Bolsonaro) repetem-no ao pretenderem prender supostos golpistas. Afinal, prender conspiradores que querem implementar uma ditadura é exatamente o que os militares faziam com os comunistas – mas a beautiful people não achava isso nada bonito.

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As semelhanças não param por aí. Há pelo menos dois outros traços autoritários defendidos pela elite midiática que também repetem o regime militar: a oposição controlada e as eleições indiretas.

A versão caricatural da história do Brasil, tão difundida em sala de aula, impede que os brasileiros vejam hoje tais semelhanças. Segundo a caricatura, no regime havia um ditador e todos obedeciam. Isso é verdadeiro no Estado Novo, mas falso no período militar.

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Eleições indiretas ontem

Não é verdade que os militares simplesmente pegaram tanques e assumiram o comando do país. Como o próprio Bolsonaro gosta de insistir, a tomada do poder em 64 foi contou com o auxílio do Parlamento, que declarou vacante o cargo de presidente da República. A Constituição de 46 permitia a destituição do presidente caso ele saísse do país sem a autorização do Congresso. Como Jango transitava entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul, não era difícil alegar que ele saíra do país quando o povo e a imprensa clamavam por um golpe militar.

Com essa manobra parlamentar – um golpe branco –, assumiu a presidência da república Ranieri Mazzili, presidente da Câmara e deputado por São Paulo filiado ao Partido Social Democrático (é o único descendente da grande imigração europeia a ocupar o cargo antes de Bolsonaro). Com sua anuência, sim, instaurou-se o arbítrio militar. O “Comando Supremo da Revolução”, um triunvirato integrado pelo futuro presidente Costa e Silva, passou a governar o país de fato, e com uma retórica revolucionária (portanto, de ruptura). O triunvirato publicou o Ato Institucional nº 1 em 9 de abril de 64 ,em que afirmava a validade da Constituição de 46 com suas emendas, mas acrescia alterações provisórias. Destas, vale destacar: a instituição da eleição indireta para presidente (o Congresso elegeria o presidente, em vez do povo) e as prerrogativas do triunvirato (os “Comandantes-em-chefe”) de suspender direitos políticos de alguns indivíduos e cassarem mandatos que der na telha.

A primeira eleição indireta seria dois dias depois, e o mandato seria curto. Novas eleições indiretas estavam previstas para 65.

O militar liberal Castello Branco, sem partido, fora eleito presidente pelo Congresso. Seus concorrentes eram Juarez Távora, do Partido Democrata Cristão, e Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático. Ambos também eram militares.

Eleições indiretas hoje

Eleição indireta do principal mandatário da nação está longe de ser um problema em si mesmo, ou uma equivalência de regime ditatorial. No parlamentarismo é assim que funciona: o povo elege diretamente os congressistas, e estes elegem indiretamente o primeiro-ministro. É o sistema de governo predileto da intelectualidade uspiana, dos jornalistas da grande imprensa e da beautiful people em geral. Era, inclusive, o regime predileto de parte dos constituintes na redemocratização. Nossa Constituição atual foi feita com essa possibilidade em vista, já que em 1993 os brasileiros foram ouvidos para determinar se seríamos uma república ou monarquia, parlamentaristas ou presidencialistas. A propaganda vendia o parlamentarismo como técnico, democrático, claro e rápido, além de racional. O jingle dizia: “Meu partido é a razão”. O presidencialismo, por outro lado, seria o regime de corruptos que fazem conchavos e loteiam cargos para se eleger.

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Naturalmente, há um abismo entre a eleição indireta em uma democracia parlamentar e a eleição indireta no regime de 64: a oposição controlada. No entanto, não deixa de ser curioso que, durante as campanhas das “Diretas já”, a eleição direta para presidente fosse considerada um equivalente de democracia, um passo essencial para alcançá-la. Pouco tempo depois os mesmos que pediam as diretas pediam pelas indiretas, isto é, pelo parlamentarismo.

A elite uspiana tem um certo fetiche com o aparato legislativo e institucional da Alemanha. Esta, a seu turno, conseguiu mandar na Europa por meio da União Europeia, que tem um Parlamento Europeu. Será que o modelo parlamentarista é mais afeito à burocratização e ao controle da democracia, na medida em que aumenta os poderes do Legislativo? É um caso para os entendidos em ciência política.

De todo modo, as eleições indiretas no Brasil serviram, expressamente, para forças golpistas controlarem a presidência. Os militares só o lograram com o Congresso. Nos dias de hoje, Bolsonaro suscita o mesmo ímpeto golpista de controle. Não à toa, surge a conversa de semipresidencialismo, no qual o povo votaria diretamente para presidente, mas o presidente deixaria de ser o principal mandatário do país. Não se trata de catapultar Bolsonaro da presidência, mas sim de esvaziar a presidência. Como mostrou esta Gazeta, o fito seria imitar o semipresidencialismo português, no qual o presidente manda pouco e o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso, manda muito.

A novidade dos dias de hoje, também mostrada pela matéria, é que o Judiciário é muito ativo ao dar sugestões e antagonizar com a Presidência. Saiu o Exército, entrou o Judiciário. Mas o resto é coisa velha: uma aliança entre mídia e parte do Congresso para deter a Presidência.

Oposição controlada ontem

O controle da oposição no regime militar se iniciou já com o AI-1, uma vez que os comandantes-em-chefe tinham poder para cassar mandatos antes de fazer as eleições indiretas. O próprio AI-5, o mais famoso de todos, perseguiu-a de forma mais agressiva. No entanto, para caracterizar o controle da oposição, o mais importante é o AI-2, de 65, assinado por Castello Branco. Ali se extinguiram todos os partidos políticos e, na prática, encerrou-se o pluripartidarismo por meio de uma lei nova que dificultava muito a abertura dos partidos. Os golpistas (ou revolucionários) então criaram a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) no mesmo ano; no ano seguinte, a oposição conseguiu criar o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

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Entre sufocar a oposição e controlá-la há uma distância. Não é verdade que o MDB era uma oposição postiça ao regime militar. Em geral isso é conversa dos que pretendem dizer que a guerrilha foi eficaz na derrubada do regime e no estabelecimento da democracia – uma falsidade ululante, haja vista que: (1) os guerrilheiros (ou terroristas) não queriam democracia e (2) o efeito do terrorismo foi o recrudescimento do regime (o AI-5 foi resposta ao atentado no aeroporto de Guararapes). O MDB recebeu oposicionistas de todos os matizes, e foi por meio desse partido que a abertura se articulou.

No entanto, não é necessária muita imaginação para pensar na dificuldade de operacionalização num partido que incluía desde comunistas não terroristas (a turma de Prestes, do PCB, não pegou em armas e virou gramsciana) até os egressos da UDN (anticomunistas que apoiaram o golpe no começo e se arrependeram).

Em 1971, Médici revoga aquela lei que dificultava a criação de partidos e cria outra que ainda mantém a criação inviável. Em 1979, Geisel a modifica e o pluripartidarismo volta a ser liberado no Brasil. O MDB começa a se desmembrar ato contínuo.

Oposição controlada hoje

Nos dias de hoje, o cerco à oposição é muito mais exitoso. Em primeiro lugar, é muito difícil criar partidos – essa dificuldade foi o expediente usado pelos militares. Depois, é muito difícil financiar partidos; e, uma vez que o partido consiga financiamento, terá ainda de (pela primeira vez, neste ano) distribuir o dinheiro conforme quotas de gênero e raça. Tudo isso foi imposição do Judiciário, como já escrevi em detalhe aqui.

Quanto à perda de mandato e de direitos políticos, a agência saiu dos comandantes-em-chefe das Forças Armadas e passou para o Judiciário. Os casos Francischini e Daniel Silveira falam por si.

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Mas talvez a novidade mais importante de nossa era seja a legitimação filosófica da ideia de que a democracia só admite uma variação muito pequena de ideias. Todos têm que ser progressistas para serem legítimos; do contrário, são extremistas e merecem ser limitados. Também já escrevi sobre isto em mais detalhe noutro texto.

As semelhanças procedimentais entre ontem e hoje são muito grandes. No entanto, parece que o Judiciário tem menos apoio do Congresso de hoje do que os militares tinham então.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]