O Direito não surgiu dentro de um Estado onde todos eram cidadãos. O paterfamilias romano era o árbitro e senhor da sua casa, que compreendia os servos, a mulher e os próprios filhos. Ele era uma espécie de monarca dentro de sua propriedade e, fora dela, um cidadão sujeito à autoridade da República ou do Império. O Brasil herdou algo disso, seja nos costumes ou na legislação.
Onde o poder privado reina, o Estado não bole. E para se ter uma boa ideia de como era o interior brasileiro, tomemos nota de que no Segundo Reinado não havia mapa do Semiárido brasileiro, embora essa seja uma região ocupada por lusófonos desde pelo menos o século XVII. Os mapas foram encomendados por D. Pedro II ao polímata Theodoro Sampaio, e seriam de grande valia à República para debelar Canudos. Se o Estado nem sabia os caminhos das brenhas do Semiárido, tem-se uma ideia do poder que um coronel estava habituado a exercer em sua propriedade privada.
Ao menos até o século XX, entendia-se que modernização implicava o crescimento do Estado sobre esses enclaves privados. Com a universalização da cidadania, são iguais, perante o Estado, o coronel e seu cortador de cana analfabeto. Ambos estão sob a autoridade estatal, e o coronel não é livre para açoitá-lo num tronco ou vendê-lo.
No entanto, a modernização fez com que o exercício do poder privado sobre cidadãos teoricamente livres chegasse às cidades. À figura rural do coronel, somou-se a figura urbana no dono do morro. Mas ainda assim os políticos e os intelectuais dirão que tal estado de coisas não é o ideal. E, por mais que haja uma bandidolatria da parte dos intelectuais, muita tinta já correu para tratar do “Estado paralelo”. A apologia do tráfico é algo envergonhada e disfarçada. O jeito de elevar o tráfico é rebaixar o Estado legítimo, dizendo que é racista etc., sem dizer palavra sobre as barbaridades do tráfico. Quanto ao seu financiamento, tampouco esperem uma campanha pela conscientização do custo humano do uso de drogas ilícitas: mais fácil se preocuparem com baleia do que com favelado. Há campanha para parar de comer carne e salvar animaizinhos, mas parar de usar droga, nem pensar!
Assim sendo, a mobilização de políticos para que entes privados exerçam seu poder discricionário sobre a população deverá ser recebido com muita surpresa. E era exatamente o que os governos vinham fazendo com as Big Techs.
Donos de morro digitais
Vejam bem: o Estado brasileiro não pede para coronéis e donos de morro criarem códigos de conduta privados e aplicarem aos cidadãos brasileiros que adentrem seus territórios. Ninguém diz: “Seu Traficante, Allan dos Santos entrou no seu morro e transitou livremente! Você não tem um código que pune discurso de ódio com micro-ondas? Como você não o executou? Se ele pisar aí mais uma vez e escapar impune, vou mandar a polícia tomar conta do seu morro e acabar com o seu negócio!”. Mas no Judiciário, no Legislativo e na academia, muitos dizem que as Big Techs têm que punir quem faça isso e aquilo.
O Estado Democrático do Brasil tem leis que punem calúnia, injúria e difamação. Não existe nenhuma lei focada nessa coisa vaga chamada de “discurso de ódio”, mas existem limitações legais à liberdade de expressão. Ninguém pode defender a superioridade de uma raça, por exemplo. Tampouco se pode fazer apologia de crimes. Assim, o Estado brasileiro deveria se modernizar para fazer valer suas leis na internet. Como não temos censura prévia, a internet deveria acarretar apenas uma explosão de crimes de calúnia e difamação, que sobrecarregaria o Judiciário. Problema de gestão, não de surgimento de crimes novos.
No entanto, a corporação jornalística vinha nos oferecido um senso comum artificial segundo o qual Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram e WhatsApp), Jack Dorsey (Twitter) e Pavel Durov (Telegram) tinham que aplicar em seus respectivos morros digitais um código censor que os progressistas tiraram da cabeça deles e que não foi sancionada por lei nenhuma no Brasil. Agora, com a compra do Twitter por Elon Musk, a coisa parece mudar de figura. A burocrata não-eleita Jen Psaki já veio a público falar de regulação de redes sociais nos Estados Unidos. A União Europeia, idem, através de um tal Thierry Breton, outro burocrata não-eleito.
Elon Musk foi claro e sucinto em seu tuíte a respeito do assunto: “Por ‘liberdade de expressão’ entendo simplesmente o que condiz com a lei. Sou contra a censura que vai além da lei. Se as pessoas quiserem menos liberdade de expressão, vão pedir ao governo que passem leis com esse efeito. Portanto, ir além da lei é ir contra a vontade do povo.” Na mosca.
Preocupação com a salvaguarda de dogmas
Eu posso encontrar com facilidade no Twitter violações à liberdade de expressão que deveriam preocupar as autoridades brasileiras. Uma delas foi coberta pela Gazeta: a propaganda explícita do Comando Vermelho. Logo após a matéria, as contas foram apagadas. Mas voltou a haver um monte de contas do Comando Vermelho e ninguém reclama. Isso não tira o sono dos ministros do Supremo, nem de jornalistas esclarecidos. Perigoso mesmo é Allan dos Santos.
Na verdade, o curioso é que todo mundo sabe qual é a lei de censura não escrita. Isso ficou bem claro no primeiro dia após a compra do Twitter: uma chuva de tuítes com a expressão “testando” violava a censura. Tuitavam que homem é homem e mulher é mulher, ou que ivermectina é bom. Resumidamente, ficou muito claro que os dogmas do identitarismo e da “seita da vacina” (para usar a expressão de Guilherme Fiuza) se converteram numa ortodoxia capaz de punir hereges.
Os CEOs eram donos de morros digitais que agiam a mando de governantes. Governantes estes que traíram os seus povos e adoraram ter censores intermediários. Vamos ver agora se a União Europeia e os Estados Unidos dispõem de randolfes para dar um jeito na situação.
Guerra de bilionários
Assim como um cidadão esclarecido dos anos 40, nós não temos como saber agora o que está acontecendo no mundo. Dada a informação disponível, podemos considerar que o vago corpo doutrinário ESG está afinado com o corpo censório abolido no Twitter. O ESG, sigla de Governança Ambiental e Social, reúne identitarismo e ambientalismo neomaltusiano. Por mera observação, vemos também que todo identitário é da seita da vacina (embora nem todo fiel da vacina seja identitário), de modo que ambas as coisas devem estar conectadas. E sabemos ainda que Bill Gates e Klaus Schwab são os principais difusores do ESG mundo afora.
O ESG é feito para regular empresas e pessoas a partir de rankings identitários de “inclusão” e de créditos de carbono. São critérios que não estão claros para ninguém – exceto, talvez, para Bill Gates. Elon Musk tem postado contra ele no Twitter, e até vazou uma conversa privada entre ambos, com ele cobrando de Bill Gates satisfação por investir na queda da Tesla. Ao que parece, a Tesla, de Musk, apesar de produzir carros elétricos (que são propagandeados como “energia verde”) teria uma nota ESG baixa, e por isso Bill Gates se preparava para a desvalorização da empresa. Musk também usou o Twitter para chamar o ESG de “demônio encarnado”. No mais descobrimos também que ele é contra o neomaltusianismo de Bill Gates, já que lastima a queda da natalidade na pandemia e acha que a humanidade tem que evoluir para ficar de luto pelos não-nascidos.
Aí vem briga de cachorro grande, e é provável que só daqui a alguns anos entendamos o que está se passando agora.
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