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A bancada evangélica costuma ser saudada como conservadora graças à sua campanha contra o aborto e à ideologia de gênero. A campanha contra o aborto é real. A campanha contra a ideologia de gênero é parcial. Num aspecto muito importante, as líderes políticas evangélicas estão enfaticamente a favor da ideologia de gênero: as pautas misândricas e vitimistas. Ideologia de gênero designa muitas coisas, e os evangélicos mais proeminentes no debate público costumam ser contra as muitas coisas relativas à sopa de letras, desde o casamento gay até mudança de sexo em menores. No entanto, se deixarmos de lado a sopa de letras e focarmos nas mulheres, uma evangélica na política só se distingue de uma feminista por ser contra o aborto.
O governo Bolsonaro é um exemplo disso, já que aprovou a lei 14.164 que leva a “violência contra a mulher” à escola. (Noutros tempos, dir-se-ia “violência doméstica”.) Essa lei é assinada por Bolsonaro, Damares e Milton Ribeiro; quem se destacou no ativismo por ela, porém, foi Damares. Eis como Damares tratava o tema do enfrentamento à violência contra a mulher: “A violência contra a mulher, ela precisa ser encarada, mas nós só vamos trabalhar, nós só vamos ter resultados de fato, com relação à violência contra a mulher, começando lá na escola. Nós entendemos que tem que ir para a sala de aula, falar com o menino e com a menina a partir de quatro anos. O tema vai ter que ser matéria curricular. O tema vai ter que ser discutido todos os dias em sala de aula”. A declaração é anterior à aprovação da lei, que saiu muito menos radical; é apenas uma semana em março para tratar do assunto. Ao meu ver, o que Damares prega nessa declaração é abuso infantil. Por favor, imagine-se tendo que falar de “violência contra a mulher” com um garotinho feliz de quatro anos. Agora imagine-se falando “todo dia” sobre isso com um garotinho de quatro anos, depois continuar quando ele fizer cinco, e assim sucessivamente. Se não fizer isso, Damares não vai ter como trabalhar e as mulheres vão continuar apanhando!
Crianças de lares bons e ruins vão para a escola. Se um garotinho de quatro anos tem um pai que bate na mãe, ele, individualmente, deve receber atenção especializada. Na escola há crianças aflitas por todo tipo de crime; não parece razoável dar aulas “todo dia” sobre diversos tipos de crime. Isso seria abuso infantil. Não é doutrinando meninos de quatro anos que se coíbe a violência doméstica, é punindo os criminosos e incitando mais prudência nas mulheres.
Quando as feministas tratam do assunto, o discurso é o mesmo: a chave é a “educação”, isto é, doutrinação. E o fato de Damares propor uma barbaridade sem causar escândalo é perturbador.
“Gênero nas escolas”, o determinismo social feminista
A origem dessa lei é feminista radical. No começo da década de 2010, quando eu estava na faculdade, existia um slogan que era repetido pelas feministas: “gênero nas escolas”. Supostamente, os grandes vilões que combatiam as feministas eram os evangélicos. (Silas Malafaia era o arquétipo do vilão evangélico.) No início da década, ao menos no Brasil, o “gênero” era muito mais um assunto das feministas do que dos gays. A ideia é que homens e mulheres nascem iguais e a sociedade patriarcal os corrompe, impondo, por meio da educação, diferentes “papéis de gênero” aos seres humanos. O sexismo seria como o racismo: pega um acidente de nascimento e usa-o para criar distinções e hierarquias. No caso do racismo, o acidente de nascimento é a a cor; no sexismo, genitália. No entanto, há uma diferença fundamental entre homens e mulheres proporcionado por esse acidente: os homens são “estupradores potenciais”. Como impedir o estupro? Por meio da “educação”. Seria uma missão das escolas ensinar, desde a mais tenra idade, que homens e mulheres são iguais. Nesse esquema, não há a possibilidade de mudar de sexo em idade adulta: se você foi “socializado como homem”, então é irreversivelmente homem, logo, estuprador potencial.
É um amálgama de determinismo social e misandria. O homem se define por meio de sua educação, e seu diferencial em relação à mulher é a possibilidade de estuprar. As feministas costumam repetir que homens podem ser estuprados, mas só por outros homens.
No início da década de 10, “gênero” era mesmo coisa de feminista. Na UFBA, quem dava o recém-criado “bacharelado em gênero e diversidade” era o velho Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), que ficava no meu campus. Num ambiente muito mais tolerante do que hoje, o NEIM era só era referido em tom jocoso. Um professor gay foucaultiano aludia brincando às “mulheres do NEIM”. Um amigo petista se referia às tabacalibãs (tabaca é um regionalismo que designa vagina). Pois bem: as feministas lésbica-misândricas do NEIM queriam “gênero nas escolas”, pois do contrário os evangélicos imporiam papéis de gênero subalterno às meninas. Segundo a visão conspiratória dessas feministas, homens e mulheres só são diferentes por causa da educação. Todos os homens são “estupradores potenciais” porque “o patriarcado” os socializou assim. É preciso resolver o problema por meio da “educação”.
Feministas perderam para os gays
Tudo é muito confuso. À época, um amigo gay começou a me falar de Judith Butler, a filósofa oficial da ideologia de gênero. Ele gostava muito, os professores dele não conheciam e eu tampouco. Pelo que ele me explicava, eu achava estranha a ideia de alguém poder ser uma mulher em função do papel de gênero, porque o comportamento que ele usava como exemplo era muito estereotipado. Por essa régua, eu não sou mulher e Astolfo Pinto é, ao menos enquanto interpretava Rogéria. Daí ele dizia que o comportamento estereotipado de algumas mulheres trans se devia à necessidade delas de se autoafirmar. Mas o meu amigo se afligia à época porque as suas amigas lésbicas queriam convencê-lo de que ele era um potencial estuprador de mulheres porque é homem. Se tem pênis, foi socializado como homem; se foi socializado como homem, é homem; se é homem, pode estuprar mulheres. Daí ele respondia que não gosta de mulher e as amigas lésbicas diziam que não importa, pois “sexo é relação de poder”. Por aí vocês veem como é leve e aprazível a vida de militante. As lésbicas ficavam obcecadas por pênis e estupro, chamando gays e travestis de estupradores potenciais; os gays e travestis ficavam furiosos e inventaram um nome científico para xingar as mocreias: “transfóbicas”. E se eu já ficava incomodada com aquela descrição estereotipada do que é uma mulher, imaginem as lésbicas.
No frigir dos ovos, o que aconteceu foi que as organizações gays se transformaram em associações de sopa de letras e ganharam das feministas lésbicas essa briga. Com o casamento gay legalizado na maior parte do Ocidente, a nova frente tornou-se direitos trans. E aí, senhoras e senhores, é que houve o grande cisma no progressismo que baniu as tabacalibãs: a feminista acha que pessoas barbadas de vestido não devem frequentar espaços femininos passou a ser xingada como TERF, sigla de trans-exclusionary radical feminist, ou “feminista radical que exclui trans”. Como a celeuma foi muito mais forte em inglês, vem-me à mente o bordão “Trans women are women”, “Mulheres trans são mulheres”. E se você nega isso, você é conservador.
Moral da história: o feminismo radical virou conservadorismo, frente à ideologia da moda.
As evangélicas absorvem o discurso
Como pouca gente suporta a pecha de radical, a maioria das mulheres de esquerda aceitou que mulheres trans são mulheres. A postura, creio eu, também tem muito a ver com a orientação sexual. Se a esquerdista for heterossexual, seu feminismo consistirá em reclamar do namorado/ficante/ex/marido etc. “Os homens são todos iguais!”, diz a bisneta feminista da bisavó carola que dizia a mesma coisa. Mas se a esquerdista for lésbica e aceitar as teorias de Judith Butler, ela pode concluir que na verdade é um homem preso no corpo de uma mulher, fazer uma jornada de transição de gênero e, no final, fazer parte da nata das minorias oprimidas na prestigiosa condição de homem trans.
Se há um assunto capaz de unir mulheres frívolas, é falar mal de homem. Mulheres frívolas há em todos os credos e opiniões políticas, e a política com certeza obrigou feministas e evangélicas a conversarem. Um resultado é esse aí, o do “gênero nas escolas”. Como vimos, a educação é um substitutivo à punição.
Tal como as feministas, Damares também é contra o “punitivismo”. Em entrevista a esta Gazeta, ela alega que há tantos casos de agressão à mulher, que não haveria cadeia bastante para os agressores. Além disso, as mulheres tendem a voltar para eles. Assim, em vez de julgar a vítima e punir o agressor, cabe à turma do Direito punir com umas rodas de conversa aí, para o cara repensar a vida, porque no fim das contas ele estava reproduzindo a violência do lar no qual fora criado (ou socializado, diria a feminista). Em vez de prestar serviços à comunidade, o agressor poderia ter como pena um sermão desses. E nesse sentido aparece também a infame lei que criminaliza a suposta “violência psicológica” contra a mulher, sancionada por Bolsonaro. (Critiquei-a aqui.) A mulher, explica Damares, só aceitava aquela condição por ser uma vítima de violência. Aí precisa condenar o homem a ouvir blá-blá-blá após transformá-lo juridicamente num criminoso.
Problema comum entre evangélicas
Por que as evangélicas em específico? A especificidade é relativa tanto ao sexo quanto à religião. Comecemos com o sexo: segundo uma síntese muito sagaz de Jordan Peterson, as mulheres têm a sua jornada do herói ao domar a fera, como em A bela e a fera. Quanto mais medonha a fera, maior o desafio; quanto maior o desafio, maior a vitória. Logo, uma mulher vaidosa que queira se sentir poderosa vai pegar o homem mais complicado possível com o fito de transformá-lo num príncipe. Isso pode ter um lado bom, que é o fato de ela insistir em um homem em vez de tratá-lo como descartável. Mas pode também ser uma grande cilada para ela, caso não saiba medir as próprias forças e avaliar o perigo com o qual está lidando. (Já escrevi sobre as feministas que não sabem lidar com o perigo também, aqui.)
Quanto ao fato religioso, é comum entre evangélicos aumentar muito a própria desgraça na fase pré-conversão. Quanto mais criminoso e degradado, maior o milagre operado por Deus ao dar-lhe a graça. Vão dizer até que são ex-aidéticos. (Eu creio que haja influência barroca nisso, e já escrevi sobre. Todo evangélico ex-tudo seria um pouco como Gregório de Mattos.) Por tabela, quanto mais desgraçado o homem que a evangélica achar, mais divina será a sua conquista.
Juntando uma coisa e outra, isto é, a vaidade feminina à valorização da última das ovelhas, a evangélica tem um duplo incentivo para arranjar um homem horrível e sofrer na mão dele. E quando seus planos derem errado, ela vai querer a mão do Estado para botar o seu homem nos eixos.
Ao cabo, no que depender do pseudoconservadorismo das evangélicas, o Estado deve tomar conta dos maridos -- o que bem se parece com o que Foucault temia. O meu professor foucaultiano estava certo. "As mulheres do NEIM" são mesmo um caso sério.