Se eu quisesse fazer demagogia e posar de escritora do povo, poderia dizer com frequência que uma das descrições sociais mais sagazes que já ouvi foi numa lotação em Itaparica. Um velho, torcedor do Vitória, chorava as pitangas assim para o outro passageiro: “Hoje em dia está tudo mudado. Um homem pode mudar de mulher, pode mudar de religião… Pode mudar até de sexo!! Mas não pode mudar de time. Por quê?” De fato, o velho nascera antes do governo Geisel, que liberou o divórcio. Viveu o suficiente para pegar a ascensão dos evangélicos no Brasil, depois da qual as pessoas pulam de religião em religião como de galho em galho. E nos dias de hoje, o credo laico oficial diz que homens podem virar mulheres e vice-versa. E ai de quem discordar! Em meio a tudo isso, porém, uma coisa persistia: o futebol. O sujeito poderia largar a esposa, trocar de religião, virar mulher e casar de novo, mas o time não mudava. Por isso um velho torcedor do Vitória estava fadado ao sofrimento.
Não sei se essa estabilidade futebolística foi passada adiante, e creio que não. Quem foi que predestinou o vascaíno ao sofrimento? Quase sempre o pai dele, e na infância. O próprio pai é vascaíno porque o pai dele, já finado, o iniciou no Vasco. E assim sucessivamente, até a geração de brasileiros que começou a gostar de futebol lá pelos anos 40 ou 50 (o Brasil ganhou a primeira copa em 58). Os times mais tradicionais costumam ser do final do século XIX, mas nessa época o ludopédio (ou football) ainda era um esporte de elite.
Muitas alterações ocorreram de lá para cá. Um deles foi no futebol mundial, com os clubes ricos da Europa absorvendo jogadores do mundo. O Brasil hoje tem orgulho e tradição bastantes para que os jogadores não se naturalizem e joguem por seleções europeias, como os africanos que às vezes enfrentam as seleções do próprio país natal. Mas sem dúvida um campeonato inglês cheio de jogadores brasileiros tem um futebol mais animado do que os campeonatos brasileiros. Outra mudança é tecnológica. Mesmo que tenham pai em casa, as crianças ficam muito tempo defronte de telas, comungando de uma cultura diferente da dos seus pais. Assim, na melhor das hipóteses, a quarta ou quinta geração de vascaínos terá um torcedor do Vasco e do Barcelona. Ao menos o pobre poderá aliviar o coração.
Derrotismo até em 58
Para tentar pegar essa cronologia, o que me ocorre é o artigo “Complexo de Vira-Latas”, de Nelson Rodrigues, escrito às vésperas do início da Copa de 58. Segundo conta, os brasileiros estavam derrotistas graças à copa de 50, quando o Brasil perdeu do Uruguai na final por 2 a 1, em casa, de virada. Ou seja: os brasileiros passaram a Copa seguinte com o rabo entre as pernas e em 58 ainda faziam questão de dizer que o Brasil ia perder. “Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética”, dizia ele. “Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - ‘O Brasil não vai nem se classificar!’. E, aqui, eu pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?”
De fato, em meio a qualquer crise de nervos referente ao país, seja na seara esportiva ou política, sempre tem quem corra para jogar a toalha e dizer: “Este país não vai para frente mesmo!” Se de direita, ainda vai reclamar que a direita brasileira não vai para lugar nenhum. Mas entre uma proclamação de fracasso e outra, compartilha esperançoso um boato sobre a mais nova movimentação dos militares, ou sobre uma declaração bombástica. Para mim, está muito claro que viralatismo é como relação aberta: o sujeito que tem medo de chifres inventa um modelo de relação que impossibilita conceitualmente o chifre. O vira-lata complexado faz questão de crer que o Brasil vai dar errado, de modo que é impossível ter uma amarga frustração. Seríamos um povo ansioso?
O Maracanaço e o 7 a 1
Seria chover no molhado afirmar que ansiedade é ruim e põe as coisas a perder. De todo modo, nosso estado de espírito futebolístico está melhor em 2022 do que em 58, apesar de o 7 a 1 de 2014, em casa, ter sido pior do que o Maracanaço de 50. Levamos uma Copa para recuperar o moral e voltar a torcer efusivamente. Ganharemos? O começo foi auspicioso: uma vitória sobre a Sérvia com um lindo gol de bicicleta. Foram dois gols, mas se fosse só um, lindo, já bastava. Por outro lado, se fossem os sete gols da Espanha, não nos comoveríamos tanto. Queremos quantidade bastante para ganhar, mas não nos satisfazemos com isso. O futebol brasileiro, que quer não só a vitória, como a beleza, está de volta.
Tentando derrotar o derrotismo, Nelson Rodrigues começava apelando para o patriotismo: “Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo.” (Escrete é como chamavam a seleção na época.) Muito bem, estou com ele. Patriotismo é dever; frustração é inerente à vida, sobretudo a adulta. No entanto, cabe avaliar o que temos, a fim de aplacar a ansiedade e moderar as expectativas. Continua ele: “Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.”
Dos nomes à política
Os nomes variam, mas o brasileiro segue tendo-os na ponta da língua. Da ponta da língua vai para o registro civil, com o pai entusiasmado batizando o filho com nome de artistas da bola. Vejam vocês que esse Jair da Copa de 70, nascido em 44, já devia ser Jair por causa do Jair da Copa de 50, nascido em 21, que nos anos 40 e 50 foi ídolo de times paulistas e fluminenses. Esse Jair pode ter inspirado o pai de um jogador da primeira seleção brasileira campeã, e sabidamente inspirou o pai de um presidente da República.
O resultado involuntário é uma manobra similar à dos cangaceiros, que adotavam o nome do morto para simular imortalidade. Um jogador morre ou aposenta, aparece outro com o mesmo nome. Mas o caso dos Richarlisons é diferente. O Richarlyson com Y, nascido em 82 no Rio Grande do Norte, foi confundido com Richarlison com I, nascido em 97 no Espírito Santo. O primeiro ainda era jogador juvenil quando o segundo nasceu, então não pode ter sido homenagem.
A confusão foi importantíssima porque o Richarlyson com Y se declarou bissexual. Uma colunista do Uol foi rápida em comemorar que um “LGBT antibolsonarista” tenha salvado o jogo. “Assim até torço pelo Brasil. Viva Richarlison!”, complementou, antes de apagar o tuíte.
Não demorou muito para a internet descobrir que havia dois Richarlisons e que o LGBT estava aposentado. No entanto, a ideia de um antibolsonarista fazendo gol de bicicleta era boa demais para ser largada. A situação dos progressistas foi resumida pela youtuber Débora Luciano: “Richarlison (com i) é de esquerda ou de direita? Confira a difícil questão da militância progressista para decidir se apoia o jogador ou se deseja sua morte.”
Futebol individual
Senhoras e senhores, muito se fala da desagregação familiar e da ruptura social, mas ninguém poderia imaginar a desagregação futebolística. Como o senhor itaparicano bem percebeu, o futebol é a derradeira instituição sólida deste país. É mais sólido do que o casamento e a religiosidade. Agora, porém, os progressistas, em sua sanha desagregadora, conseguiram inventar a torcida individual. Não dá mais para torcer pelo Brasil, mas somente para Richarlison, mediante suas supostas credenciais LGBT e antibolsonaristas. E a colunista do Uol não é caso isolado. Alguns veículos de imprensa noticiaram que a equipe de transição comemorou três vezes durante a partida: nos dois gols e na saída de Neymar, contundido.
Essas bestas quadradas não sabem o que é um time. Simplesmente não é possível torcer apenas para um indivíduo num time, ou contra um indivíduo num time. Futebol não é uma disputa de pênaltis. Torcer por um único atleta de um único time, contra outro membro do mesmo time, é como ir ao concerto de uma orquestra sinfônica para ouvir só um violino e torcer que um oboé desafine. É como dizer que gosta de cozido, mas do cozido só prestam as batatas e o resto é dispensável.
Quando a pessoa está tão obcecada pelo individualismo e pela uniformização, o resultado é esse. Fica incapaz de conceber a sincronia que é requisito para qualquer atividade conjunta. Um time de futebol é mais que um somatório de indivíduos. Thatcher dizia que não existe sociedade, existem somente indivíduos. Esses esquerdistas anglófilos levam Thatcher muito a sério e acreditam que tudo é somatório de indivíduos, até futebol. Basta tirar Neymar e substituir por outro indivíduo, que tudo vai funcionar tão bem quanto antes. Não vai. Um time é um time, uma sinfonia é uma sinfonia, um cozido é um cozido. Um conjunto é mais que um somatório de itens.
A despeito dos progressistas, a seleção jogou coesa. Como um jogo é mais que um somatório de gols, cabe frisar que nosso país voltou ao campo em grande estilo, com um gol cuja beleza não cabe em cálculos. E como patriotismo é dever, tenhamos fé na força moral da seleção sobre o nosso povo, que é muito superior a esses mentecaptos que ora ocupam o CCBB.
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