Aos 24 anos, grávida de quatro meses, feliz e linda, uma carioca morre. Se fosse por doença ou por acidente de carro, o fato seria tristíssimo por si só. Mas foi por bala perdida numa operação policial – o que quer dizer que sua beleza a transforma automaticamente numa garota-propaganda da imprensa antipolícia. Uma imprensa indiscernível do PSOL, que a seu turno é um apologista dos narco-Estados que nos circundam.
Em tempos de normalização do racismo, é bom frisar que a morte de uma jovem grávida radiante numa operação policial seria tristíssima, quer fosse a jovem uma preta retinta, uma ruiva sardenta, uma japa de olhos puxadinhos, uma sertaneja atarracada ou uma mulata bonita. O fato de ser uma mulata a transformou numa garota-propaganda melhor ainda, pois cabe na versão alardeada pelos tarados da raça: a polícia é racista e mata negros por pura maldade. De posse de uma foto, puxam os slogans “Black lives matter” e “Defund the police”.
Casting de vítimas para o jornal
O Rio de Janeiro tem muitos negros desde os tempos do Império. Mas, na década de 1970, a cidade viu chegar levas e mais levas daqueles que os cariocas chamam de “paraíbas”. Assim como “baiano” em São Paulo é um termo genérico para designar nordestinos, no Rio de Janeiro “paraíba” não tem uma correlação necessária com o estado da Paraíba. Eles vêm dos semiárido nordestino e, pelo meu convívio com o Rio das Pedras, chutaria que o grosso dos paraíbas é cearense ou paraibano. São gente do semiárido que escolheu ir para o Rio de Janeiro em vez de migrar para as capitais nordestinas.
Os paraíbas colonizaram a Zona Oeste do Rio. A gente do Rio das Pedras conta com poucos negros: em geral têm cabelo liso ou cacheado (cacheado é diferente de pixaim), têm a pele branca ou acobreada. Os mais velhos são baixos, com o tronco largo e os membros curtos. Os jovens são evangélicos, usam camisas com temas gospel; vaidosos, fazem sobrancelha e penteados com gel. É um estilo de favela bem diferente das representadas em novelas da Globo. Para começo de conversa, o Rio das Pedras é favela plana e eles constroem pequenos prédios em vez de casas. O último prédio que caiu no Rio das Pedras era uma construção familiar bem pobrezinha, sem as cobiçadas varandas de blindex da milícia.
Mas, antes de construírem favelas a seu gosto, os paraíbas ocuparam favelas tradicionais do Rio de Janeiro, da Zona Sul e da Zona Norte, e se misturaram à população mulata preexistente. De modo que não é nenhuma extravagância dizer que há brancos e morenos em todo tipo de favela carioca.
As favelas da Zona Oeste (de paraíbas) são dominadas por milícias organizadas e, por isso, costumam ter poucos confrontos armados. Há pouco anos, havia um notório ponto de tiroteio na Zona Oeste chamado Praça Seca, justo porque uma facção narcotraficante estava tentando tomar o território. Não sei em que deu. Já nas favelas de estilo tradicional, em especial na Zona Norte, costuma ter tiroteio porque o CV, ADA, TCP e a PQP ficam disputando território na bala. Quando a polícia chega, tem mais bala ainda.
Se ouvirmos que a grávida em questão era da Zona Norte, podemos então concluir, com frieza estatística ou mero bom-senso, que a morte dela é previsível. E, dado o histórico de ocupação dessa área, é previsível também que ela fosse mulata. Tanto é previsível que o pai da moça a havia tirado de lá por causa da violência.
Agora, dado o fato de que a violência lá é corriqueira, é de se presumir que morram brancos também, embora seja minoria estatística. E é óbvio também que a polícia não precisa estar presente para que moradores morram de bala perdida ou bala muito bem endereçada. Então ficamos assim: se a vítima for branca, deverá ser escondida para salvar a narrativa, mesmo que a bala tenha vindo da polícia. Se a vítima, branca ou mulata, for morta por facção, convém o silêncio.
Temos um estoque inesgotável de vítimas para as redações fazerem um casting. Nosso país sempre achou as mulatas muito bonitas, então a morte da jovem carioca equivaleu à descoberta de uma Gisele Bündchen nas tétricas redações brasileiras. Por outro lado, o pardo de tez mais clara que queria pôr a filha para dormir e pediu que os traficantes abaixassem o som foi para o caixão sem urubus da imprensa militante.
Lágrimas de crocodilo
Não acredito nem um pouco que os jornalistas militantes estejam tristes com a morte da jovem carioca. Se eles realmente se importassem com as “vidas negras”, se achassem que as “vidas negras” merecem ter Estado de Direito tanto quanto eles, não achariam uma boa ideia deixá-las sob o jugo de facções narcotraficantes. Distinguiriam com clareza o civil do paramilitar. Fariam uma campanha para o estabelecimento do Estado de Direito nas favelas. Em vez disso, o que vimos foi a apologia do narcofeudo do Jacarezinho, que recebeu de fuzil a polícia por detrás de barricadas de concreto.
Se o Brasil tivesse vergonha na cara, a grande questão nacional agora seria a extinção do domínio territorial de organizações paramilitares. Aliás, começaríamos reconhecendo as facções narcotraficantes como organizações paramilitares, em vez de tratá-las como coisas de negros pobres.Se o Brasil tivesse vergonha na cara, reivindicaria embasamento legal para o Exército fazer esse trabalho que foge às capacidades da polícia. Exigiria leis que mantivessem os bandidos na cadeia.
Mas vemos o exato oposto disso. Uma elitezinha chinfrim, moribunda, a quem ninguém dá ouvidos fora da caixa de eco, apoia o ministro Fachin, responsável, junto com o PSB, por manter os morros cariocas sem presença armada do Estado, livres para a atuação dos paramilitares do tráfico. Tudo isso é muito bom para as redações militantes. Mantém o estoque de vítimas cheio para o casting das manchetes.