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Terminei o texto de sexta-feira (2) com a intenção de, nesta semana, arriscar e usar um punk velho da Alemanha Oriental para dar uma sondada no estado de espírito do europeu rebelde que não aparece na TV. Mas tive a sorte de receber, no zap-zap, uma manifestação musical europeia bastante bonita e intrigante. No metrô parisiense, uma multidão súbito começa a cantar o refrão, que traduzo sem me importar com rima e métrica:
Nós queremos continuar a dançar
Ver nossos pensamentos enlaçarem nossos corpos
Passar nossas vidas sobre grades de acordes
Os dançarinos rodopiam sobre as marcações sanitárias, ouve-se a voz de canto lírico em meio à multidão e os passageiros do metrô entram na dança. Uma festa elegante, com máscaras no queixo deixando ver sorrisos, com tubas, violinos e acordeão. E a letra é boa. Diz também:
Não sejamos impressionáveis
Por essa gente insensata
Vendedora de medo em abundância
Perturbadora até a indecência
Saibamos dela manter distância
Pela nossa sanidade mental
Social e ambiental
Por nossos sorrisos e nossa inteligência
Não sejamos, sem resistência,
O instrumento de sua demência
Você pode clicar aqui e assistir ao vídeo, que informa se tratar da música Danser Encore, num flashmob ocorrido em 8 de abril deste ano. A frase em francês que aparece no começo significa “O medo da morte não impede de morrer, mas impede de viver”.
Do que se trata?
Surpreendente, não? Isso tem cara de notícia, de coisa que deveria sair na imprensa internacional, mesmo que não fosse a manchete do dia.
Xeretando na Internet, vi que a imprensa francesa cobriu o evento. O importante jornal Le Figaro deu o título “Danser Encore, o hino contra as restrições sanitárias”, com a explicação de que “essa canção de protesto provocou um movimento de mobilizações relâmpago – chamadas de flashmob [o francês não ia deixar um anglicismo passar impune] – através da França e da Europa, durante as quais os participantes cantam e dançam sem respeitar as medidas sanitárias”.
Sempre em matérias em língua francesa, somos informados de que, em dezembro de 2020, o cantor e compositor HK (nome artístico de Kaddour Hadadi, francês filho de argelinos) tinha viajado com sua banda “LesSaltimbanks” para Avignon a fim de fazer um show, quando Macron decretou um mais um lockdown e acabou com o show dele, pois era considerado atividade não-essencial. Lá mesmo, em Avignon, HK et Les Saltimbanks gravaram este vídeo com a música de protesto. Nas matérias, HK se defende dizendo que não faz sentido apinhar o povo no transporte público e proibir as pessoas de dançarem ao ar livre.
HK também diz ter ficado surpreso com o sucesso da música. Ele apenas gravou o protesto e jogou na Internet. De fato, a banda não fica em Paris e eles não estavam no flashmob de 8 de abril. Eles são de Lille, ao norte da França, fronteira com a Bélgica. E HK não é nenhum artista famoso.
Esquerda ou direita?
No Brasil e nos Estados Unidos, a esquerda é pró lockdown infinito e a direita é contra. Mas desde a República o Brasil anda muito mais próximo dos EUA em cultura política do que da Europa. Isso vem de longe: o próprio Império Português era muito mais próximo da Inglaterra do que da França, ao contrário da Espanha.
Lá pelos anos 1970, a esquerda brasileira até tentou ser latino-americana e se filiar à cultura de língua espanhola, ficar lendo Galeano, gritando contra os embargos a Cuba e tal. Mas, desde os anos 1990, ela é a cópia mais alienada da esquerda dos EUA, que nem usa lá o nome de esquerda. Além disso, a nossa direita, ao sair do armário, não busca inspiração no terceiro-mundismo de Geisel nem no nativismo europeu de um Le Pen. Em vez disso, busca fontes do mundo anglófono, um conservadorismo de Burke ou Kirk, com um intercâmbio de ideias pela Fox News e Internet. Daí resulta que, tal como os norte-americanos, perdemos a capacidade de olhar para o mundo sem enquadrá-lo automaticamente nas nossas caixinhas conceituais.
Devo dizer, então, que HK tem em sua carreira só mais uma música conhecida: “On lâche rien”, que em 2014 foi usada, com consentimento do autor, na campanha da Frente de Esquerda pela candidatura do radical Jean-Luc Mélenchon a deputado. Trocando em miúdos, é como se ele fizesse jingle para o Boulos ou o PCO de lá. Consegue imaginar um eleitor de Boulos se manifestando contra o lockdown? Pois então: a Europa é diferente e viver em função da dicotomia direita/esquerda é não entender nada.
Anotemos, então, que pauta woke da esquerda progressista dos EUA em princípio não tem nada a ver com a esquerda europeia continental. Macron, todo bom moço, com aquele jeito de Troudeau da Europa, na França é tido por centro, e não por esquerda. Esquerda é o cara que vai protestar contra o lockdown ou quebrar tudo de colete amarelo contra o ajuste fiscal de Macron.
Faz todo sentido
Até estando no Brasil, devo dizer que é um jeito bastante plausível de encarar as coisas. É um jeito incompleto por desprezar os pequenos comerciantes, que integram um capitalismo sadio e são vítimas do lockdown, mas é um jeito plausível.
A esquerda não costumava ser contra os EUA e contra o capitalismo? Não consigo imaginar culto mais caricato ao capitalismo do que os shoppings abertos e as praças fechadas. Se eu quiser ir a Salvador marcar encontro com amigos, posso ir para uma praça de alimentação num shopping (um espaço fechado e com ar-condicionado), mas não posso entrar no Campo Grande, que está com o gradil fechado.
Uma tristeza: em tempos normais, aquela praça está sempre cheia de corredores, crianças, estudantes e velhos. Quando houve decoração de Natal, a prefeitura criou uma senha na Internet para distribuir ingressos e proibir a lotação. Mas nunca vi capacidade máxima para shopping. Tudo parece feito para manter as pessoas doentes, consumindo em espaços fechados (seja o shopping ou a casa), afastadas de espaços abertos e gratuitos com ar fresco. Sair de casa, só para comprar ou trabalhar.
O maior propagandista do lockdown no mundo ocidental é o Dr. Fauci. Embora os EUA (e também o Brasil), por sua constituição política, tenham sofrido bem menos do que a Europa com o lockdown, é para os EUA que o europeu poderá olhar como propagandista de lockdown.
Some anticapitalismo e antiamericanismo. Isso é componente não só da esquerda europeia, como também da direita nativista de um Le Pen. E essa direita nativista saberá reconhecer que o pequeno comerciante “gaulês” ou “teutão” quebra enquanto o capital estrangeiro (dos chineses, dos EUA, do “judaísmo internacional”) compra tudo barato.
Se dissermos que o europeu médio está furioso com ambas as coisas, não é de se admirar que um empedernido esquerdista francês tenha sido capaz de traduzir sentimentos comuns por toda a Europa. Além disso, a música é bonita e ninguém precisa ser politizado para estar furioso com o lockdown.
Notícias?
A música ganhou versões em espanhol, alemão, inglês, italiano e português. Era para ser notícia na imprensa internacional, mas só encontrei notícias em francês e no blog de um norte-americano monoglota que usava o Google Tradutor para entender o que estava acontecendo na Europa.
Ou seja, é correto dizer que a imprensa internacional abafou algo que deveria ser notícia. Como o inglês é a língua franca do mundo ocidental, basta os veículos ingleses mais influentes não darem que os norte-americanos não replicam e, não replicando, o mundo não descobre. (Nos EUA, e nos fiarmos no referido blogueiro, parece que só Tucker Carlson da Fox News deu a notícia). A única ponte termina por ser a língua espanhola, já que as ex-colônias mantêm relação com a metrópole. E foi assim que o vídeo me chegou: legendado em espanhol, mandado por um sulista, sendo que o Sul tem contato com a Argentina.
Voltamos, então, à vaca fria do texto de sexta, com a França sendo um lugar que esconde menos as coisas na Europa. Antissemitismo existe na Alemanha, mas só na França um negacionista do Holocausto vai longe na política. Do mesmo jeito, os flashmobs aconteceram com intensidade pela Europa, mas, ao que parece, só na França foi notícia em meios de comunicação importantes.
A meu ver, isso significa que, na França, há um distanciamento menor entre as elites e o povo do que no resto da Europa. Assim como há aqui uma imprensa progressista e elitista abafando a opinião do brasileiro comum, há outra no mundo inteiro fazendo a mesma coisa com outros povos. Se nos fiarmos no noticiário da imprensa dominante, acreditaremos que o Brasil é o único país do mundo onde as pessoas estão revoltadas com o lockdown. Do mesmo jeito, o estrangeiro que só se informe do Brasil pelas TV e agências de notícias terá uma impressão bastante errada do nosso país.
O texto foi alterado porque Lille, no norte da França, fica próxima à Bélgica, e não à Espanha, como escrito anteriormente.
Corrigido em 07/07/2021 às 14:26