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Bruna Frascolla

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Má ciência

“Eutanásia não-voluntária”: É preocupante que Singer seja tão levado a sério

Peter Singer
O filósofo Peter Singer no evento Fronteiras do Pensamento Porto Alegre, em 2012. (Foto: Divulgação/ Fronteiras do Pensamento)

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O mero fato de Singer ser levado a sério é preocupante. A academia tem suas mil falhas, mas ainda assim Singer está aquém dos seus padrões. Será possível um acadêmico fazer de conta que Noam Chomsky não existe, por exemplo? E se alguém informasse, num paper, que macacos podem aprender Libras, será que a revisão por pares deixaria passar? Pois é isto que Singer faz, e a pretexto de justificar a licitude de matar membros da espécie Homo sapiens em certas situações. Para embasar seu raciocínio, escolhe a autoridade do teólogo protestante Joseph Fletcher. Sabe quem é? Eu também não sabia. É uma figura notável por defender a “eutanásia” para quem tem síndrome de Down sob a alegação de não serem humanos. Depois de dar muita aula de ética cristã em universidade protestante, esse sujeito virou ateu. Está entre os fundadores da Planned Parenthood e Society for the Right to Die.

O argumento de Singer para liberar desde aborto a infanticídio e “eutanásia não-voluntária” gira em torno adoção arbitrária de definições contraintuitivas e má ciência. Comecemos com as definições.

Sai o homem, entra a pessoa

Vimos que, para Singer, a ética deve se basear na igualdade, e a igualdade só pode ser pensada em termos de “igualdade de interesses” – sem nenhuma menção à natureza humana. Segundo ele, “uma pedra não tem interesses, pois não é capaz de sofrer” (p. 67). Os animais têm interesses, pois são capazes de sofrer. Singer é um utilitarista, pensa que o sentido da vida de todos está, ou deve estar, em buscar o prazer e evitar a dor. Assim, fica na posição de planificador dos prazeres e dores não só dos homens, como também dos animais. Perto disso, o comunismo é um poço de humildade, já que se circunscrevia ao material e ao humano.

O resultado óbvio dessa difusão de direitos é a degradação do humano. Singer inventa o conceito de “especismo” como algo análogo ao racismo, isto é, a consideração de que os interesses dos humanos são “superiores” aos dos animais pelo mero fato de pertencerem à espécie humana. Seria algo tão condenável quanto brancos tratarem mal os negros, isto é, desconsiderarem os seus interesses. Por essa comparação, depreende-se que para Singer não há racismo se planejadores planificarem os prazeres dos negros enquanto lhes negam a agência por os considerarem intelectualmente inferiores. De minha parte, sempre achei chocante a desfaçatez com que veganos comparam negros a animais. Parece racismo, e é. Inclusive fica aberta a porta para os planificadores julgarem que a vida dos negros não vale a pena ser vivida e, em nome dos seus interesses, dar-lhes eutanásia.

Pois bem. Para não sermos especistas, não devemos mais considerar que a vida humana tenha valor em si mesma, e seja considerada mais importante do que a de um animal. A sacralidade da vida é interpretada em termos laicos como sacralidade da vida da pessoa. Nem toda pessoa, porém, é humana; e, por outro lado, nem todo ser humano é uma pessoa. Singer entende por homem ou ser humano o “membro da espécie Homo sapiens”; para ser pessoa, porém, é preciso preencher alguns requisitos. Quais? Ele começa a refletir sobre o assunto invocando a autoridade de Joseph Fletcher: “Existe outro uso do termo ‘humano’, este proposto por Joseph Fletcher, teólogo protestante e escritor prolífico sobre questões éticas. Fletcher fez uma relação daquilo que chama de ‘indicadores de humanidade’, dentre os quais encontramos: consciência de si, autocontrole, senso de futuro e passado, capacidade de relacionar-se com os outros, preocupação com os outros, comunicação e curiosidade. Este é o sentido do termo que temos em mente quando, querendo elogiar [sic!!] alguém, dizemos que é ‘um verdadeiro ser humano’ ou que demonstra possuir ‘qualidades verdadeiramente humanas’. Ao fazermos tais afirmações, é evidente que não estamos nos referindo ao fato de a pessoa pertencer à espécie Homo sapiens, o que, enquanto fato biológico, raramente se coloca em dúvida; estamos querendo dizer que, caracteristicamente, os seres humanos possuem determinadas qualidades e que a pessoa em questão as possui em alto grau. Esses dois sentidos de ‘ser humano’ se equivalem, mas não coincidem. O embrião, o feto, a criança com profundas deficiências mentais e o próprio bebê recém nascido são, todos, inquestionáveis da espécie Homo sapiens, mas nenhum deles é autoconsciente, tem senso de futuro ou capacidade de se relacionar com os outros” (p. 96).

Para evitar ambiguidades, Singer propõe então que chamemos de pessoa mais ou menos aquilo que Fletcher chama de “verdadeiro ser humano”, e de ser humano os membros da espécie. Nem todo ser humano é uma pessoa, portanto (a lista de Singer é mais enxuta: pessoa é quem tem autoconsciência e racionalidade). Se não é pessoa, sua vida não tem sacralidade. Nisso, o leitor perguntará por que virar vegetariano, então. É porque a preocupação com o prazer dos seres atualmente existentes deve ser levada em conta, e, na cabeça de Singer, o nosso prazer de comer carne é ínfimo perto do prazer que a galinha teria caso continuasse viva num quintal.

Creio que valha a pena nos policiarmos para voltar a usar “homem” em vez de “pessoa”.

Evidência anedótica de macaco inteligente

De todo modo, um bebê recém nascido vale menos do que uma galinha, porque o bebê não tem autoconsciência e a galinha tem. Mas é difícil dizer que as galinhas sejam racionais. Ainda assim, Singer não desiste de procurar “uma pessoa que não fosse membro de nossa espécie” (p. 97). No capítulo “Tirar a vida: os animais”, vemos um longo anedotário que visa a comprovar que macacos têm capacidade de falar e portanto são racionais. Os gorilas não falariam apenas por não terem um aparelho vocal sofisticado; ou seja, por uma limitação física e não intelectual. Bastaria ensinar língua de sinal e pronto: daria para conversar com um gorila do mesmo jeito que se conversa com surdo-mudo. Ele lista uma série de macacos que aprenderam a língua norte-americana de sinais como um exemplo de que os chimpanzés e gorilas são racionais; basta serem adotados por humanos que os tratem como surdos e ensinem língua de sinal. Uma das macacas citadas é Koko, que, por ter sido uma macaca muito midiática (abraçou Robin Williams e fez um apelo para que o homem parasse de destruir o planeta), acabou sendo também uma fraude notória. Ninguém mais defende que Koko falasse. Tudo o que esses macacos fizeram foi aprender a fazer certos sinais e emitir certos sons quando queriam algo. Eram, noutras palavras, adestrados, não racionais.

Noam Chomsky não alcançou a notoriedade por ficar falando besteira em política. Seu grande feito na ciência linguística é a criação da teoria da gramática universal. Antes dele, a linguística era um parquinho de bahavioristas, que achavam que a linguagem humana surgia por adestramento. Chomsky dizia que o homem tem a capacidade inata para a linguagem; que todos nascemos com as estruturas para compreender gramática. Sem esse traço inato, seria impossível aprender a falar. Ele estudou as línguas para apontar a existência de constantes gramaticais universais. Os behavioristas, a seu turno, passaram a criar macaco como criança. Foram derrotados. Só Singer faz de conta que macaco pode falar e não parece ter tomado ciência dos feitos de Chomsky.

Para Singer, então, Koko é uma pessoa porque tem autoconsciência e racionalidade. Uma galinha tem autoconsciência, mas não tem racionalidade. Um bebê não tem nenhuma das duas. Assim, do trio, só Koko é uma pessoa, e só o bebê pode ser morto.

Seus raciocínios são porcos e arbitrários; suas fontes, sinistras. Resta saber por que esse homem é tão divulgado e ensinado em universidades.

Por que matar?

Uma das principais preocupações dele é a morte. Dos doze capítulos, quatro são sobre o ato de matar: “O que há de errado em matar?”, “Tirar a vida: os animais”, “ Tirar a vida: o embrião e o feto”, “Tirar a vida: os seres humanos”. Pelas palavras dele, toda essa preocupação é movida por altruísmo. Existem vidas que não vale a pena serem vividas, e aí seria o caso de eutanásia. Existe a possibilidade de a eutanásia ser a contragosto? Sim. Cito-o: “Matar alguém que não consentiu em ser morto só pode ser apropriadamente visto como eutanásia quando o motivo da morte [sic – o correto aqui seria ‘assassinato’] é o desejo de impedir um sofrimento intolerável da pessoa morta [sic]. Sem dúvida, é estranho que alguém agindo com essa motivação venha a desprezar os desejos da pessoa em cujo nome e benefício a ação é praticada. Os casos autênticos de eutanásia parecem ser muito raros” (p. 189). É legítimo falar da eutanásia de uma pessoa contra a sua própria vontade. Ou seja, um homem tem o direito de julgar se a vida alheia é intolerável; pode matá-lo em nome do seu próprio bem. É, como venho dizendo, planificação mais intrusiva do que o comunismo.

Note que bebê não pode estar nessa situação, já que não pode consentir. Nesse caso, em vez de “eutanásia involuntária”, seria “eutanásia não-voluntária”. Como ele é menos do que uma galinha, pode matar sem dó. Mas por que tanto interesse em matá-lo? Ora, num artigo da Spectator que costumo citar, Singer menciona que não faz sentido trazer mais vidas para este mundo já superpovoado. E tem quem diga que neomalthusianismo é teoria da conspiração.

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