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O mal de nossa época, que vem de longa data, é a aplicação da objetividade das ciências naturais às questões humanas e a consequente adoção de um fatalismo. Um primatologista e um químico observam o comportamento do bonobo e as reações de um composto químico. Ambos anotam em seus cadernos coisas que não poderiam ser de outro modo. Um composto químico não tem vontade; reage de maneira pré-determinada pelas leis da química. Um bonobo é um animal irracional cujas ações são primariamente ditadas por instintos. Podemos tentar adestrar um bonobo, mas não podemos nos sentar para observar seu comportamento e dizer: “Hoje ele toma jeito.” Bonobos não têm nenhuma perspectiva na vida. Não têm uma cultura. A vida de um bonobo antes de Cristo é idêntica à de um bonobo do século XXI. Ortega y Gasset dizia que “o tigre de hoje é idêntico ao de seis mil anos atrás, porque cada tigre tem que começar de novo a ser tigre, como se nunca houvera um tigre antes. O homem, por outro lado, graças ao seu poder de recordar, acumula seu próprio passado, possui-o e aproveita-o. O homem nunca é um primeiro homem: começa desde já a existir sobre certa altura de pretérito amontoado. Este é o tesouro único do homem, seu privilégio e seu signo.” (La rebelión de las masas, “Prólogo para franceses”, IV)
O homem é um bicho que nasce numa cultura e num lar, bem como com uma personalidade própria. É interessante analisar várias culturas para buscar tendências universais. No entanto, o que se faz nas ciências sociais é o contrário: pega-se um estado de coisas particular, observa-se, documenta-se e decreta-se provado cientificamente que as coisas são assim e não assado. Daí vem o fatalismo de nossa era. Está cientificamente provado que as mulheres abortam aos montes. Está cientificamente provado que jovens usam drogas. Logo, é obscurantismo querer mudar esse estado de coisas. Leis contra aborto e uso de drogas não refletem escolha moral, mas mera ignorância. Agora que os cientistas já apareceram e nos revelaram a Verdade, podemos legislar. Está cientificamente comprovado que negros se saem pior em provas escolares do que brancos, que homens não gostam de assumir filhos nem de se casar, que mulheres sofrem assédio sexual toda hora, que pobres são criminosos…
Fatalismo cem anos atrás
Chesterton se queixava bastante desse fatalismo, sobretudo quando propunha a sua alternativa ao capitalismo. Era 1926, ainda não havia proteção social ao trabalhador, e o povo inglês, recém saído da Revolução Industrial, comera o pão que o diabo amassou na mão dos grandes capitalistas. Chesterton lança então Um esboço da sanidade, onde propunha que se valorizasse a propriedade e se recriasse uma classe camponesa na Inglaterra. Explicava que se valorizava demais a iniciativa privada, sem se perceber que a iniciativa privada pode ser inimiga da propriedade privada – vide a iniciativa do batedor de carteiras. Assim, os capitalistas ingleses estavam açambarcando a propriedade e lançando os ingleses a casas empilhadas. Eles nos conta que as favelas onde os pobres criavam galinhas foram desmanchadas pelas autoridades, e os pobres foram postos contra a vontade dentro de apartamentos, onde não podiam ter nenhum hobby ligado à vida do campo. Ele diz não ser nenhum grande planificador; apenas reconhecia a urgente necessidade de desfazer monopólios e dizia que qualquer tentativa de descentralizar a propriedade seria reconhecida como distributista. Dizia que trustes e cartéis deveriam ser tratados como caso de polícia, e que se essa tendência não fosse refreada, chegar-se-ia a um estágio indiscernível do socialismo, no qual o povo não tem propriedade.
As críticas, a julgar pelas respostas, eram enfastiantes. Ora se dizia que nenhum trabalhador gostaria de deixar a cidade, onde há cinema, para se tornar um camponês atrasado. (Daí Chesterton falar dos favelados que gostavam de criar galinhas.) Ora se dizia, também, que a concentração da propriedade era inexorável, provada por leis econômicas. Assim, qualquer tentativa de descentralizar a propriedade era anticientífica e impossível. No entanto, dizia Chesterton, é como se após a descoberta das leis de Newton os homens começassem a dizer que não é possível construir arcos romanos, porque pedras não podem ficar suspensas no ar. Fato é que arcos existem. Olhar para o passado sempre nos abre horizontes e mostra possibilidades. É possível voltar a construir arcos romanos; é possível voltar a ter uma sociedade de proprietários.
Redução ao absurdo cem anos atrás
De fato, ao menos num aspecto Chesterton saiu vitorioso perante os seus contemporâneos: trustes e cartéis passaram a ser considerados caso de polícia. Por mais que sigamos nos batendo com problemas advindos da concentração de renda – e até em modelos novos, como o da BlackRock –, hoje lemos Chesterton e vemos como datada a crença na legitimidade e na inexorabilidade dos monopólios. Houve, nesse quesito, um aprimoramento moral entre a época dele e a nossa.
No entanto, como o progresso linear é uma ficção (e uma ficção dos fatalistas), o que salta aos olhos é a redução ao absurdo que Chesterton usa para convencer os seus contemporâneos da dimensão moral da propriedade. Ele faz um paralelo com o casamento. Cito-o: “É como se disséssemos que, porque alguns homens são mais atraentes às mulheres do que outros, seguir-se-ia que os habitantes de Balham [um bairro londrino] sob a Rainha Vitória [morta em 1901] jamais poderiam ter conseguido um modelo monogâmico, com um homem e uma mulher. Mais cedo ou mais tarde, dir-se-ia, todas as donzelas estarão se apinhando ao redor de uns poucos tipos fascinantes, e nada menos do que a solteirice haveria de ser o destino dos muitos pouco atraentes. Dentro em pouco, todo o subúrbio consistirá de cem eremitérios e três haréns. Mas esse não é o caso. Não é o caso no presente, seja lá o que possa ocorrer, caso a tradição moral do casamento venha a se perder em Balham. Enquanto essa tradição moral estiver viva, enquanto se desaprovar o roubo da mulher alheia ou se admirar a fidelidade duradoura à mulher, impor-se-ão limites ao distúrbio que o mais selvagem dos libertinos poderia causar no equilíbrio dos sexos.” (Um esboço da sanidade, p. 21)
A revolução sexual ocorreu. A infidelidade masculina dava mais asas à imaginação de Chesterton, mas a infidelidade feminina foi a mais propagandeada pela contracultura surgida no fim da década de 60. Assim, as gerações mais novas de homens foram se acostumando à ideia de que mulheres são infiéis, de modo que nenhum esforço próprio de fidelidade vale a pena. E como a ciência continua a ser convocada para decidir questões morais, a psicologia evolutiva – que descreve comportamentos humanos de uma perspectiva darwinista – não tardou a ser vulgarizada e popularizada. Concomitantemente, termos de primatologia, como macho alfa e macho beta, logo tomaram a internet e passaram a ser usados para descrever homens. Os jovens criaram gírias para descrever o próprio comportamento, como “betar” (agir como um beta). Usar termo de primatologia para se autodescrever mostra bem a conta em que o jovem se tem.
Fatalismo chifrudo
Ao cabo, o homem bem informado do tempo sabe olhar para os próprios chifres e concluir, cientificamente, que era inexorável. As mulheres, segundo a Ciência (escolha o cientista), estão fadadas a copular com homens diferentes conforme o período do ciclo menstrual. Se o homem não ganhou chifres, é por mera questão de tempo até a fêmea trair. Mas se o homem não tiver tomado chifres por falta de mulher que os perpetrasse, isso quer dizer que ele é um beta. O homem bem sucedido seria um alfa que açambarca todas as mulheres, e todas as mulheres vão querer viver num harém. Como mostra a ciência, as mulheres evoluíram para gostar de homens poderosos e com recursos.
Ao cabo, o sujeito vai mesmo ficar sozinho ou com chifres. Esse final apenas corroborará a sua visão animalesca do mundo. Mas, porém, contudo, todavia, esse final é uma decorrência da sua visão de mundo. Porque o passado do Homem mostra as possibilidades do Homem. E nós estamos sentados “sobre uma montanha de pretérito amontoado”. Cabe a nós vasculhá-la. Porque com certeza o passado nos mostra possibilidades melhores do que o atual estado de coisas.