Pouca gente é tão preocupada com o “primeiro mundo” quanto a esquerda. Tão logo um país nórdico faz alguma maluquice, o mero fato de um país nórdico ter tomado a medida é apresentado como prova inequívoca de que a medida é boa, coisa de primeiro mundo. Na verdade, eu até acho que é uma inversão dizer que a esquerda tem mania de primeiro mundo, pois é a mania de primeiro mundo que faz alguém ser de esquerda. Defender “políticas públicas” para isso e aquilo, “Estado de bem-estar social”, burocratas iluminados, implica no mais das vezes adotar o jargão político que domina a Europa desde o século XX. As questões-chave do progressismo (aborto, drogas e casamento gay) emergem primeiro na Europa para só depois irem a países mais cheios de imigração europeia recente do continente americano: Argentina, Uruguai e Estados Unidos.
O que pouco vem à memória, porém, é que a Europa do século XX é uma porcaria. O meio preguiçoso mais seguro, talvez até infalível, de saber se uma ideia é ruim, é ver se a Argentina adotou uma moda intelectual ou legislativa de primeiro mundo. Se a Argentina adotou entusiasticamente, não tem como ser bom.
Se o mundo soubesse disso, Karl Popper não precisaria escrever alguns livros para mostrar que psicanálise é pseudociência. Bastava olhar para a Argentina. Do mesmo jeito, a prova retumbante de que lockdown não é uma boa ideia é sua adoção pela Argentina.
Lockdown vira-latas graças a Deus
A discussão acerca do lockdown amiúde dá voltas em torno da crença inabalável em sua eficácia. Se não funcionou no Brasil, é porque não foi bem feito, pois somos uma gentinha vira-latas incapaz de fazer algo sério, como os europeus. De fato, o lockdown na Europa é a implementação de um Estado policial onde o direito de ir e vir inexiste. E se fomos incapazes de imitar tal coisa, só me ocorre que meu avô europeu estava coberto de razão ao temer ser expulso do Brasil e mandado de volta para aquele buraco.
Na TV, a gente só vê números da Europa, sem ter nenhuma ideia do clima que impera por lá. Durante o lockdown maravilhoso, um amigo que estava no primeiro mundo se lamentava comigo no telefone: ele quase queria ir preso para passar a noite com companhia na cadeia. Afinal, morando sozinho, não podia ver vivalma. Não podia visitar amigos nem família. As saídas dos cidadãos eram autorizadas somente para atividades essenciais, tais como ir ao mercado. Ouvindo isso, proponho que ele combine com os amigos de irem ao mercado juntos. Daí ele me explica que não pode, pois os amigos moram em bairros diferentes e o policial para os cidadãos na rua para saber aonde vão. A polícia tem também um mapa com os mercados mais próximos e não há justificativas para gente de outros bairros ir para o mesmo mercado que o meu amigo.
Chegando ao mercado, só a compra de itens essenciais é permitida. Algum burocrata fixou o que é essencial e o que não é, e meu amigo ficou aliviado por se ter decidido que vinho era essencial. Reclamava, porém, que se um eletrodoméstico dele quebrasse, ele tinha que ficar com o eletrodoméstico quebrado. Porque primeiro fecharam as lojas de eletrodomésticos como não-essenciais, e depois, para evitar concorrência desleal, os supermercados foram proibidos de vender eletrodomésticos.
Perante essa situação, parece bom mesmo passar uma noite na cadeia com outros violadores das normas sanitárias. Mas como parece bom para muita gente, ir para a cadeia é o último recurso. Antes de prender, o policial multa. E o bolso é, junto com a cabeça, um dos órgão mais combalidos nessa pandemia. Então, de certa forma, ir para a cadeia é um luxo para quem pode pagar algumas multas antes de ser enviado para lá como incorrigível.
O meu amigo, que estava em Portugal, relatava ainda o óbvio: lá estavam todos desesperados, sem saber como iam manter os próprios negócios. Esse amigo, que tem vários amigos esquerdistas deslumbrados com a Europa, costuma alertar que em Portugal há muita pobreza, muita burocracia, e que a fila do sopão de batatas no inverno é um final possível. Melhor ficar no Brasil, onde não há inverno rigoroso, há mais oportunidade de trabalho e menos burocracia.
Araraquara de primeiro mundo
Saiu na Jovem Pan um áudio de WhatsApp de uma moradora de Araraquara que chorava muito, relatava a própria fome e a dos vizinhos, dando como exemplo máximo o caso de uma mulher que comeu o gato desesperada. As leis para o deslocamento, similares às descritas pelo meu amigo, complicavam inclusive a entrega de cestas básicas. O prefeito Edinho, do PT, alega que o áudio é fake news. Sua prefeitura inventou uma coisa chamada “nota de repúdio a áudio".
Mostro a notícia do gato a um amigo cuja família é de Araraquara e ele acha muito plausível, pois recebe notícias da cidade por parentes que ajudam a igreja na distribuição de cestas básicas. Segundo ele, o número de 200 mil cestas básicas distribuídas até então é alarmante, dado que Araraquara é (ou era) uma cidade rica. Se há tanta demanda por cesta básica, houve um empobrecimento rápido da população.
No mais, outro problema de que ele soube foi logístico. Comprar coisas pela internet tornou-se um hábito necessário. Em Araraquara, tornou-se obrigatório comprar até comida crua por delivery, já que às vezes (como nos dias 20 a 22 deste mês) supermercados, mercearias e açougues são obrigados a funcionar somente nessa modalidade. Ora, muita gente — sobretudo idosos — não sabe fazer isso com o celular, ou não tem cartão de crédito. Assim, mesmo que a pessoa tenha o seu dinheirinho pra se manter, a súbita alteração da maneira de comprar as coisas tem um custo.
Não vem notícia de pobreza da Europa
O cenário que o meu amigo contou é bastante plausível. Não é todo velho que sabe fazer as coisas pela internet, não é todo velho que entende as regras de primeira. Quem trabalha em banco tem a noção da confusão que velho é capaz de fazer com coisas que são simples para os mais jovens.
O Brasil é um país bem mais jovem do que a Europa, de modo que podemos supor que haja uma proporção pequena de velhos sozinhos. Além disso, temos a cultura de morar junto com os nossos velhos. Agora imaginem a Europa, onde basicamente só tem velho e imigrante. O velho de lá não tem um netinho que senta no colo com o smartphone para mostrar as novidades. Em vez disso, frequenta só os seus coetâneos.
Impedido de comprar as coisas pela internet, o velho europeu vai até o mercadinho da esquina. Se estiver caro, não pode procurar outro, porque o guardinha do lockdown não deixa circular pela cidade. Assim, se houver inflação nos mercadinhos, os velhos verão um bom naco de sua pensão ir embora.
A fonte de renda do velho será uma pensão legada pelo estado de bem-estar social. Os países do PIGS, isto é, Portugal, Itália, Grécia e Espanha, vêm procurando meios de cortar os gastos, e ao menos em Portugal isso recai também sobre os velhos. Lá as TVs são estatais e, com a mudança de umas leis da União Europeia, o sinal analógico que funcionava foi substituído por um sinal digital que não funciona, de modo que, no frigir dos ovos, torna-se necessário fazer uma assinatura da RTP para conseguir ver. Trocando em miúdos, é como se o governo desse um jeito de fazer os velhos pagarem para ver TV. Existem mil meios de comer as pensões dos velhos sem dar muito na vista, e o brasileiro só vai saber dessas coisas se tiver um conhecido honesto por lá. (Friso que honesto, porque há os deslumbrados que se acham o máximo por morar na Europa lavando privada e vão fazer de tudo para parecerem que estão na melhor.)
Se os lockdowns matarem de fome os velhos da Europa, esta será uma ótima notícia para a União Europeia e seus países endividados. Ninguém vai chorar por esses velhos sozinhos, sem família, que esperam cuidados apenas materiais de imigrantes pagos para isso pelo Estado de bem estar.
Mas se nós já temos dificuldade em saber o que se passa em Araraquara, como vamos saber o que está acontecendo na Europa? Nada que mostre a pobreza material de lá (como a existência de favelas imigrantes onde o Estado não pode entrar, por exemplo) chega aqui. Somos doutrinados para achar que só riqueza material importa, e que a Europa é o lugar onde todo mundo é rico.