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A despeito do tamanho dos respectivos fã-clubes acadêmicos, não é Heidegger nem Wittgenstein o maior filósofo do século XX: é Karl Popper. Ele triunfou em searas tão distintas quanto a filosofia da ciência e a teoria política. Por mais que se levantem objeções à filosofia popperiana da ciência, fato é que ninguém sequer pensa em abandonar o seu critério da falseabilidade para determinar se uma teoria é científica ou não. A ciência moderna vagava incompreendida desde os tempos de Galileu, e Popper afinal soube explicar por que Einstein era um cientista e os marxistas não eram. O diferencial da ciência moderna é a sua abertura ao erro. Se a ciência clássica tinha que explicar as coisas pretéritas, a ciência moderna tinha que se mostrar capaz de prever fenômenos futuros. Toda previsão tem que se embasar numa explicação, mas nem toda explicação consegue dar origem a experimentos nos quais as previsões do cientista possam ser cumpridas ou dar errado.
Já na política o sucesso de Popper é similar ao sucesso de Marx: muita gente gostou do que ele escreveu e o usou para embasar seus próprios projetos de poder, apesar de ele estar errado.
Popper trouxe duas grandes vantagens à elite ocidental do século XX. Primeiro, ele lastreia a legitimidade democrática na única coisa que é vista como legítima e imparcial desde a Reforma: a racionalidade científica. Segundo, ele legitima uma união mais ou menos estável que foi celebrada nos Estados Unidos e vendida como óbvia: o casamento entre o liberalismo e a democracia. Como vimos, essa união não é das mais felizes, porque o liberalismo tem um forte veio tecnocrático. Ela só ocorreu porque os EUA tinham um povo de cultura democrática e uma elite liberal republicana.
Na política o sucesso de Popper é similar ao sucesso de Marx: muita gente gostou do que ele escreveu e o usou para embasar seus próprios projetos de poder, apesar de ele estar errado.
Popper pensa a política à luz da ciência. Em A sociedade aberta e seus inimigos (1945), no calor da II Guerra, ele opõe uma democracia liberal ideal às sociedades fechadas ditatoriais. Enquanto estas últimas se pautariam num irracionalismo romântico (como os nazistas, cheios de pieguices e afetações místicas), a sociedade aberta seria pautada por aquilo que Popper chama de “racionalismo”, a saber, “uma atitude que procura resolver tantos problemas quanto for possível por meio de um apelo à razão, isto é, ao claro pensamento e à experiência, em vez de apelar para emoções e paixões. […] uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender da experiência. É fundamentalmente a atitude de admitir que eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, podemos nos aproximar da verdade. É uma atitude que não abandona facilmente a esperança de que por meios tais como a argumentação e a observação cuidadosa se possa alcançar algum acordo sobre muitos problemas de importância, e que, mesmo onde as exigências e os interesses se chocam, é muitas vezes possível discutir a respeito das diversas exigências e propostas e alcançar – talvez por arbitramento – um entendimento que, em consequência de sua equidade, seja aceitável para a sua maioria, se não para todos” (v. 2, p. 232). Isto que Popper diz é trivial na ciência, mas não é nada bom em política.
A política é primariamente o âmbito dos valores, e não da verdade. A verdade deve subsidiar os tomadores de decisão, mas só pode ter utilidade para determinar os fins caso diga algo como: “tal desejo é irrealizável”. Vejamos, por exemplo, os casos do aborto e do infanticídio. Se um cientista social disser que “devemos descriminalizar ambos, pois assim a violência urbana cai”, uma bofetada é uma resposta mais adequada do que um anódino “eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, podemos nos aproximar da verdade”. A verdade não vem ao caso. Os economistas do Freakonomics podem exaltar o aborto provando, por a mais b, que a liberação da prática reduziu a violência urbana. O filósofo bioeticista Peter Singer pode defender que até x meses um bebê não tem consciência e sente tanto a morte quanto, digamos, um peixe. Os economistas poderiam continuar sua linha argumentativa e defender que mães dispostas a entregar os seus bebês para eutanásia deveriam fazer isso, pois as chances de criarem criminosos seriam grandes. Ora, para a maioria do povo, a discussão do aborto não está no campo do verdadeiro e do falso; logo, não há estatística e inferência que possa ser discutida como quer Popper.
Se é verdade que o esquema popperiano impede a ditadura de um só, ele escancara as portas para os desmandos de uma comunidade tecnocrática que domina o pensamento científico
Mas há algo mais grave no deslocamento das questões políticas para o âmbito da ciência: só uma parcela diminuta da população raciocina em termos científicos. Popper faz uma apaixonada defesa da razão como algo social; ele aponta que Robinson Crusoé, em sua ilha, jamais faria descobertas sem ter com quem conversar, por mais inteligente que fosse. É verdade que a ciência funciona em comunidade. O bom cientista é membro de uma comunidade de homens de letras, e não um iluminado que mora numa torre de marfim e desce para anunciar as verdade à plebe. Até aí, tudo bem. No entanto, se é verdade que o esquema popperiano impede a ditadura de um só, ele escancara as portas para os desmandos de uma comunidade tecnocrática que domina o pensamento científico. Popper achava que o principal problema intelectual do autoritarismo era a linguagem oracular e obscura de tipos como Hegel e Heidegger. Mas além de a ciência ser naturalmente propensa à criação de jargão, o fato é que a maioria da população não é apta à adoção de cosmovisão racionalista. Em qualquer sociedade, o cético é minoria. O grande guia humano, em qualquer sociedade, são os costumes, que são por natureza irrefletidos. E os sentimentos, tão desprezados por Popper, são cruciais na manutenção de costumes e tabus.
Popper era erudito demais para ignorar o problema clássico do ser e do dever ser. “No caso da teoria científica”, diz ele, “nossa decisão depende dos resultados da experiência. Se esta confirma a teoria, poderemos aceitá-la até encontrar outra melhor. Se contradiz a teoria, rejeitamo-la. Mas no caso de uma teoria moral, apenas podemos confrontar suas consequências com a nossa consciência. E ao passo que o veredito das experiências não depende de nós, o veredito da nossa consciência depende” (p. 241). Ele não conta, então, com a possibilidade de a consciência aprovar as piores barbaridades? Mais ou menos. Ele reconhece que “a algumas pessoas desagrada ver seus semelhantes arderem numa fogueira; a outras, não” (p. 240) – exemplo bem típico da propaganda protestante, segundo a qual hordas católicas em pânico queimavam bruxas à vontade, quando na verdade quem fazia isso eram os calvinistas na América. E o remédio do problema é bem conforme à falsa história protestante, pois ele propõe a fria análise das consequências e o exercício da imaginação para afastar a cegueira induzida pelos sentimentos. Tudo se passa como se as pessoas só quisessem ver os outros na fogueira por serem movidas por um obscurantismo fanático que excita más paixões. Para Popper, é como se a barbárie nunca fosse chancelada por cientistas desapaixonados.
Do alto do século XXI, podemos dizer que a experiência desmentiu Popper. Como exemplo disso, cito o artigo de Peter Singer intitulado “Killing Babies Isn’t Always Wrong” [Nem sempre é errado matar bebês]. Não se trata de uma peça inflamada, mas sim de um paper em tom anódino que argumenta racionalmente em defesa do assassinato de bebês. E Peter Singer não é um doido isolado, é uma referência em bioética e líder de movimentos políticos autodeclarados éticos. Karl Popper não estava preparado para isso, e lhe chocaria ainda mais saber que Singer é filho de conterrâneos seus que também emigraram para a Oceania para não morrerem em campo de concentração. Popper era de família cristã nova (luterana) e fugiu da Áustria para a Nova Zelândia depois da Anexação. Os pais de Singer eram judeus que fugiram da Áustria para a Austrália depois da Anexação.
Implementado, o projeto popperiano termina por criar uma tecnocracia cuja política consiste em fazer cada vez mais experimentos. Assim, não tem tecido social que aguente
Assim, além de Popper ter confinado a discussão política ao restrito âmbito da comunidade científica ou acadêmica, ele reprimiu a resposta natural das pessoas às ideias imorais. Não sobrou nenhuma resposta “legítima” às propostas de Peter Singer. Só quem pode enfrentá-lo é alguém disposto a refutar ponto a ponto os seus argumentos, que não raro são de ordem biológica. Ou seja, um acadêmico.
E um efeito colateral de deslocar a política para a academia é a incessante experimentação em humanos. Afinal, experimentação social também é experimentação em humanos. E se a ciência popperiana é essencialmente provisória e está sempre prestes a ser abandonada, a comunidade científica que implementa políticas está fazendo experimentações sem cessar. Implementado, o projeto popperiano termina por criar uma tecnocracia cuja política consiste em fazer cada vez mais experimentos. Assim, não tem tecido social que aguente, já que as pessoas precisam de estabilidade em suas relações familiares, pessoais e profissionais. Os próprios cientistas precisam disso, então não estou aqui defendendo a existência de dois tipos humanos fundamentalmente distintos.
Não é preciso ser um gênio para concluir que Popper era muito ruim em política. É um excelente crítico de teorias psico-sociais em geral (e, curiosamente, dos vícios da comunidade acadêmica), mas não muito mais que isso. Por isso, o relevante é que tenha sido escolhido pelas elites ocidentais como um grande filósofo político.
Há dois fatores que contribuem com isso. O mais simples é que ele transforma a democracia num regime racionalista, abrindo espaço para o veio tecnocrático do liberalismo. De repente, não é que tal povo tenha decidido tal coisa com base na sua vontade; em vez disso, a Razão presente nos indivíduos daquele povo se revelou de tal modo. As decisões democráticas são uma emanação da Razão; e, como a Razão é universal, pode ir sendo progressivamente fundida num organismo global.
Mas o fator mais pesado é o uso da Ciência como fonte de legitimidade. É revelador que o filósofo da ciência tenha sido aclamado como filósofo da política. De fato, desde a fragmentação da cristandade promovida pela dita Reforma, a Ciência vem sendo encarada pelo Ocidente como a fonte neutra da Verdade. Ser contra a religião não é mau, é assunto de foro íntimo. Ser contra a “Ciência”, porém, é dar atestado de mau sujeito, ou, na melhor das hipóteses, de ser um sujeito simplório que não deve ser levado a sério. Aquilo que se chama de Ciência não é mais que o consenso científico da vez, mas a fé moderna na Ciência crê que desta vez o consenso finalmente esteja certo.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima