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Theodore Dalrymple tem um livro memorável chamado Viagens aos confins do comunismo (É Realizações, 2017). Nos estertores do comunismo soviético, o médico inglês viajou para países da Cortina de Ferro, bem como para Cuba e para a Coreia do Norte, e escreveu o livro com suas observações pessoais. Se a Coreia do Norte é o lugar mais bizarro (com as inesquecíveis guardas de trânsito ainda sem trânsito de Pionguiangue), a Romênia, porém, tem uma passagem que lembra muito os dias atuais no suposto “mundo livre”: “sempre que eu entrava numa casa”, conta Dalrymple, “a conversa era adiada até que o telefone fosse removido da sala, pois presumia-se não só que os telefones costumavam ser grampeados, mas que havia um microfone dentro de cada aparelho para monitorar opiniões privadas expressas em casa. Uma das pessoas que visitei, que se julgava constantemente vigiada, fechou todas as cortinas e ligou o rádio antes de indicar que falar comigo era seguro” (p. 117).
O estado de ânimo entre nós é diferente, claro. Além disso, o governo (pelo menos o brasileiro) não pode nos obrigar a aceitar escutas em nossas casas. Todavia, muitos de nós desembolsamos, inclusive por necessidades profissionais, somas não raro superiores a um salário mínimo para comprar um dispositivo utilíssimo que, entre outras coisas, tem a capacidade de funcionar como escuta, e por isso carregamo-lo conosco para cima e para baixo de bom grado. Pior ainda: quando as pessoas notam que há uma coincidência entre conversar oralmente sobre uma coisa e essa coisa começar a aparecer em anúncios no celular, elas “resolvem” o problema desabafando em rede social.
Espionagem é um problema político; a solução, política, teria de ser alguma lei que proibisse as fabricantes dos celulares e as desenvolvedoras dos aplicativos de operar dessa forma.
As pessoas que notam isso não estão malucas. Na verdade, maluco é quem põe dispositivos com comando de voz dentro de casa (como o aparelho Alexa ou o Assistente Google do Android); já que o comando, logicamente, só vai funcionar se o dispositivo já estiver te ouvindo antes do uso. A matéria do Uol intitulada “Seu celular escuta suas conversas para mostrar anúncios? Não é bem assim...”, buscou tranquilizar as pessoas informando que “ao contrário do que muitos pensam, essas empresas [i. e., Google, Facebook e outras big techs] não usam estratégias não autorizadas para captar informações, como ouvir as conversas offline sem consentimento. É o oposto: muitas vezes, os próprios usuários dão permissão para que aplicativos e outros serviços conectados acessem a câmera, o microfone, a lista de contatos ou o GPS do smartphone.” A primeira informação, como o leitor pode ver na matéria desta Gazeta intitulada “Multas milionárias: Google rastreou usuários pelo GPS e TikTok expôs crianças”, é falsa.
Mas voltemos à matéria do Uol para ver o tipo de consentimento que o usuário dá: “Em alguns casos, a autorização é necessária para que certas funcionalidades das aplicações sejam executadas corretamente. Por exemplo: se você não autorizar o Instagram a usar o microfone, os vídeos captados pelo app saem sem áudio. Pronto: ele ganhou acesso ao seu microfone, mesmo em outras situações.” Ou seja, no atual estado de coisas, um aplicativo pode exigir que o usuário aceite ser espionado para poder ser usado. Não seria esse um contrato abusivo, que nenhum Estado deveria permitir? O Brasil tem normas que mandam o fabricante de doce pôr um aviso bem grande informando que o produto contém adição de açúcar. No mínimo, o cidadão deveria ter muita clareza de que os aplicativos ganham acesso ao microfone do celular mesmo quando ele não está sendo usado.
“E para que o Instagram quer ouvir a Cleide 24 horas por dia?”, perguntará o leitor. Respondo que ouvir e gravar são coisas diferentes. Não creio que haja um supercomuputador (vulgo “nuvem”) no hemisfério norte armazenando de madrugada os roncos da Cleide, que usa o Instagram para ver vídeo de gatinho e postar as capas de almofadas que ela borda para vender. O Instagram provavelmente apenas ouve sem gravar e tem uma inteligência artificial capaz de reconhecer termos de coisas que possam ser vendidas. Cleide diz à vizinha: “Meu liquidificador quebrou!”, o celular ouviu, o Instagram entendeu e o anúncio de liquidificador apareceu. Obviamente, Cleide não sabia dessa possibilidade nem quando comprou o celular, nem quando o deixou usar o microfone. Provavelmente, nem o leitor sabia disso e está descobrindo agora – mas ainda assim vai reclamar na caixa de comentários se eu disser, como venho dizendo, que a sociedade baseada em “livre contrato” é uma farsa autoritária de plutocratas, os anarcocapitalistas.
Mas calma, que piora. Digamos que você não é a Cleide, mas um dissidente político que emigrou do próprio país e mantém uma rede de contatos nesse tempo tão digitalizado. Nesse caso, o governo do seu país tem o interesse em acompanhar os seus passos de perto. Ele conseguirá? Depende. Se for um Estado não alinhado com os centros produtores de tecnologia, como o da Coreia do Norte, o governo provavelmente precisará de espionagem à moda antiga, botando um agente secreto na sua cola, como nos tempos da Guerra Fria. Mas se for um governo alinhado com os Estados Unidos, poderá encomendar um software espião chamado Pegasus, feito por uma empresa privada israelense, que clona o celular alheio remotamente sem precisar que a vítima clique em nada. Et voilà: foi o que aconteceu no mínimo com os celulares dos amigos do dissidente saudita Jamal Khashoggi, e provavelmente com o dele mesmo (já que o celular não foi encontrado). O governo saudita, alinhado com os Estados Unidos e Israel, teve acesso à tecnologia israelense e utilizou-a para dar um fim no dissidente. Depois a história caiu nas costas de Trump, mesmo com a aliança entre EUA, Israel e Arábia Saudita sendo mais longeva que a sua presidência.
O governo de Israel puniu a empresa? Não. A empresa é "autorregulada" e, portanto, responsável pela apuração dos seus próprios malfeitos (ou ao menos era na época de Khashoggi). Ainda assim, o Ministério da Defesa israelense supervisiona para quem a empresa vende o software e usa-o como moeda diplomática, segundo lemos nesta Gazeta. É como se os EUA não se envergonhassem da Blackwater e ainda oferecessem formalmente os seus mercenários aos aliados políticos.
A quem queira se informar mais sobre a produção de armas cibernéticas em Israel em aliança com os EUA, recomendo as entrevistas de Snowden à MSNBC e a de Antony Loewenstein a Chris Hedges, além da matéria deste jornal intitulada "Pegasus: sondada pela Polícia Federal, arma cibernética é mais invasiva que a usada pela Abin".
Os EUA invadem países soberanos por causa de falsas denúncias de armas químicas. No entanto, os capitalistas ocidentais podem pintar e bordar em Israel, produzindo e usando todo tipo de arma, sem que possam ser criticados – do contrário, é antissemitismo. Desde antes de sua fundação (como mostrei aqui), o Estado sionista é pensado como uma sociedade acionária na qual manda quem tem mais dinheiro, ou seja, uma plutocracia.
Quanto ao Pegasus, a matéria da Gazeta do Povo, já mostrou em outubro que a PF está encantada pela arma. É bem possível que ela esteja sendo usado para pegar bolsonarista trouxa que anda agarrado com bandeirinha de Israel e que idolatra o capitalismo desregulados dos EUA. Mas quando o Pegasus for usado contra ele, vai dizer que é culpa do comunismo. Segundo as apurações do Uol, Bolsonaro tentou trazer o Pegasus e não conseguiu. Se a PF virar uma cópia/sucursal do FBI e acabar com a ABIN, historicamente ocupada por militares, os olavetes, que tanto gostaram de detratar militares, vão ficar muito confortáveis no colo da PF e com tecnologia israelense em seus celulares.
Não é possível existir democracia nem soberania com um poder estrangeiro capaz de violar a correspondência do mundo inteiro em tempo real, e nos escutar e filmar em casa. Hoje sabemos, graças a Snowden, que os EUA praticam vigilância de massa sistematicamente desde Obama – não à toa, um grande repetidor do clichê “Israel tem o direito de se defender”. Logo, não há democracia no Ocidente: há uma tirania plutocrática capitaneada pelos EUA e Israel, escondido sob uma casca oca do finado Estado democrático de Direito, que faz mais propaganda e exerce mais vigilância do que qualquer regime comunista jamais sonhou. Se os EUA levassem a democracia a sério, Israel é quem estaria tomando bomba por causa da sua espionagem global.