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Há meros quinze anos, se você fosse convidado a pintar um gordo típico, teria em mente o sujeito bonachão, cheio de joie de vivre. Parte dessa joie de vivre se traduz em não limitar o prazer da comida: o gordo faz de tudo pelo prato ideal, bota o sabor acima de preocupações com calorias e artérias entupidas. Direito dele, proveito nosso. Ninguém melhor do que um gordo para indicar restaurantes.
Eram evidentes as desvantagens de ser pesadão e há quinze anos ninguém diria que ser gordo é saudável. (Já no tempo da vovó diria, porque fome era um problema). Mas quase tudo na vida tem seus prós e seus contras. Assim como não parece razoável engordar até não conseguir se levantar da cama, tampouco parece razoável comer o estritamente recomendado por nutricionistas rígidos. E assim vivíamos: uns poucos aceitavam pagar o preço físico da engorda para agradar o paladar e esses eram os nossos entendedores de comida.
Cozinheiras magras geravam desconfiança. Promissora era a matrona roliça, que na certa engordara assim por fazer os melhores quindins e cocadas. Se hoje cozinheiras com o físico de uma Rita Lobo são as que inspiram maior confiança, é porque em nossa época os gordos não são mais aqueles poucos indivíduos associados a um excepcional prazer culinário. Gordo, em princípio, é todo mundo, e é preciso uma cozinheira para ensinar a comer.
Em vez de revelar os seus truques especiais, como as antigas matronas, ou caros ingredientes exóticos, como o chef chique da TV, a cozinheira magra vai apresentar ao espectador, como novidades, temperos banais e encontradiços em qualquer feira. (Isso não é uma queixa contra cozinheiras como Rita Lobo. Ao contrário, ela ensina conhecimentos outrora comuns, que deveriam continuar sendo comuns).
O almoço antes do iFood
Nas metrópoles, é cada vez mais normal ser gordo – assim como vão se normalizando a ansiedade e a depressão, duas causas comuns de comilança. A pessoa come, come e come, não por prazer, mas para tentar aplacar o estado espírito. Depois fica gorda, então o próprio fato de ficar gorda causa depressão e ansiedade, o que leva à comilança de novo. É como o alcoólatra que bebe para esquecer que bebe.
É claro que ansiedade e depressão sempre existiram. A novidade é existir tanta comida à disposição para o povo engordar as mágoas à vontade. Para isso, não bastou superarmos a fome. Afinal, cozinhar dá trabalho. Dentro de casa, havia sempre alguém especializado nisso (a mãe de família ou a empregada) e comer na rua era coisa de gente que trabalha no centro.
O costume de almoçar em restaurante era um pequeno luxo de quem trabalha em escritórios no Centro. No Rio de Janeiro, esse costume é ainda bem visível: os advogados saem engravatados sob o sol escaldante e se reúnem nos restaurantes a quilo, naqueles prédios art déco, para almoçar com os amigos. No mesmo Centro, os peões, os mal-remediados e os sovinas levam a marmita, que pode ser preparada em casa ou comprada pronta. Mas o preferível costuma ser o preparo caseiro, pois o preço da quentinha inclui o lucro de quem a preparou e boa parte do seu conteúdo é um montão de arroz.
Na rua ou em casa, almoçar era uma atividade tipicamente social. Na rua, havia a companhia dos colegas; em casa, a da família. Ainda que, na classe média, os horários de almoço do pai, da mãe e dos filhos não coincidissem, todos comiam a mesma comida que estava na geladeira. A comida era requentada no micro-ondas, e foi feita pela mãe, avó ou empregada. Há quinze anos, a classe média tinha empregada doméstica em casa todo dia. Agora o costume é ter diarista que vai poucas vezes na semana: basta um dia para preparar refeições a serem congeladas e outro para fazer uma faxina.
Comer algo de diferente do cotidiano, e mais caro (uma pizza, por exemplo), era um luxo de finais de semana ou jantares especiais. Tudo, sempre, social. E ninguém ia querer levar ninguém à pizzaria mais vagabunda possível só por causa do preço. Afinal, a saciedade do estômago não era tudo o que importava numa ida à pizzaria.
Se eu fosse ditadora, proibiria o iFood
Agora, não. As pessoas compram uma pizza exclusivamente por estar muito barata, para devorarem sozinhas no meio da semana, mais de uma vez por semana.
Com a pandemia, as empresas descobriram que dá para manter os funcionários trabalhando mesmo que não estejam sob os olhos do chefe, de modo que podem cortar os custos do escritório. Há uma campanha para as classes médias urbanas ficarem em casa e a expectativa é a de que muitos continuem passando muito tempo em casa, trabalhando pelo computador. Como eu mesma, que nunca usei iFood.
Então seria de esperar que as pessoas tratassem mais de culinária e que restaurantes a quilo do Centro ficassem desolados, enquanto que as diaristas sorririam ao ver o aumento de trabalho. Correto? Errado. O desdobramento do “fiquimcasa” foi o iFood. Em março do ano passado, quando não tinha sequer baiana de acarajé na rua, eu saía de casa e via uma única aglomeração certa: a dos entregadores de comida de aplicativo. Os ciclistas se sentavam justo numa praça onde ficava uma baiana, uma área aprazível, coberta por árvores e com bancos. Eles pedalavam lépidos, esbanjando saúde sob o sol. E havia também os motociclistas. Na minha rua, quase sou atropelada por um entregador que apostava corrida com o colega. Essa rua é usualmente movimentada, mas estava vazia o bastante para seus dois únicos usuários motorizados – os entregadores de aplicativo – apostarem uma corrida.
No comecinho da pandemia, um jornalista ou outro tentou tirar onda de gourmet no Twitter, mas a gente sabe que gourmet não tem nada a ver com comida de cotidiano. Se os adeptos do confinamento tivessem ido para a cozinha (já que a diarista é vista como potencial portadora de vírus), teríamos visto matérias feitas para ajudar esses recém-chegados. Rita Lobo ia bombar. Em vez disso, vimos dicas e mais dicas de restaurantes.
Os restaurantes das dicas são sempre gourmets, claro, pois ninguém quer passar por comedor de podrão nas redes sociais. Mas, porém, contudo, todavia, a gente sabe que, quando o ser humano tem um celular na palma da mão, uma conta bancária combalida pela pandemia, um paladar estragado por uma infância cheia de biscoito recheado e a maturidade de um problematizador, ele não vai pegar a opção mais adulta do cardápio. Vai pegar o podrão cheio de meleca industrializada entupida de sódio, ou aquela pizza gordurosa que consiste basicamente em queijo vagabundo derretido sobre uma massa que parece papelão (a ser comida com o sódio e o “sabor” do ketchup), ou em bolos confeitadíssimos e cheio de caldas que são açúcar puro.
Nunca ouvi falar de ninguém usando iFood para pedir arroz, feijão e bife. E as barrigas dos confinados estão aí para provar que a alimentação deles não é lá das melhores.
Superstição alimentar
Assim, fica todo mundo gordo e com paladar estragado. Ser gordo não é mais exceção entre os jovens da classe média urbana mais intelectualizada: é regra. Só homens gays se empenham em cuidar do físico nesse nicho; o resto (homens e mulheres) costuma ser tribufu. E não são gordos cheios de joie de vivre e prazer culinário: são gordos (e gordas) que comem um monte de porcaria porque estão ansiosos e deprimidos. Não sabem cozinhar nem têm paladar. Comem por pura compulsão.
Depois, para aliviar a consciência, eles têm dois expedientes. O mais comum, adotado sobretudo por mulheres, é raciocinar com uma cabeça mágica, como se alimentos dotados de propriedades milagrosas pudessem curar os malefícios da porcariada. Pão integral, sal rosa do Himalaia e qualquer coisa com rótulo orgânico ou vegano emagrecem que é uma beleza. E são comidas sem nenhuma pretensão de serem gostosas. Uma espécie de remédio amargo com o qual o penitente expia as guloseimas.
Essa é uma crença que já pulou dos apartamentos de classe média para as favelas das grandes cidades. Você pode encher a cara de pão todo santo dia, mas, se for integral, está tudo certo. Chás “naturais” que causam dor de barriga e reduzem o peso por perda de líquido são uma febre nas classes populares. Digite “chá SB” no buscador ou pergunte a um nutricionista.
A outra mania, essa exclusiva dos letrados maluquinhos, é dizer que não há problema nenhum em ser gordo. Tudo é uma conspiração do capitalismo. O iFood deve ter sido inventado por Che Guevara, mas deixa para lá. O homem nasce bom, achando bonito ser gordo e gorda, mas o capitalismo o corrompe. Corrompe de tal maneira, que os médicos dizem que ser gordo é um problema, porque querem mandar nos corpos e porque Foucault isso, Foucault aquilo, e lá vai. Quem discordar é gordofóbico. E ser gordofóbico é tão ruim quanto ser racista. Criminalizem a gordofobia!! (Leia aqui a matéria do repórter Calsavara, ele próprio dono de lugar de fala bem espaçoso).
Não é só Covid que mata
Graças aos progressistas, médico de gente chique já não tem mais paz para dizer que homem tem pênis e mulher tem vagina, porque isso é transfobia. Quanto tempo será que falta para eles não poderem dizer que gordos são mais propensos a ter graves problemas de saúde?
Naturalmente, esse tipo de gente é o que sai chamando todo mundo de genocida por causa de Covid. Tudo se passa como se a letalidade da Covid fosse altíssima para todo mundo, inclusive os jovens saudáveis. Que eles se perguntem, então, como é mais fácil morrerem antes dos 50: magros com Covid ou infartados cheios de banha?
Mas fechar a boca, controlar impulsos, se educar para cozinhar, tudo isso é coisa que demanda atitude do próprio indivíduo. Não dá para culpar o capitalismo ou o governo por estar jovem, gordo e flácido. (E sabe-se lá com quais disfunções que isso acompanha, no caso dos homens. Quanto às mulheres, é desnecessário comentar o desprezo que as gordonas flácidas têm no mercado amoroso, pois as feministas já fazem isso o tempo todo).
Então o bom mesmo é afetar chiqueza e consciência social, dizendo que está se sacrificando heroicamente ao pedir um monte de esfirras gordurosas no iFood. Se sacrificando, está mesmo: sacrificando a própria juventude e a saúde.