| Foto: Reprodução/Twitter do senador Marcos Rogério
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A votação do marco temporal trouxe algumas surpresas. A primeira delas, positiva, é que o Senado finalmente ousou peitar o STF. O Senado, ao contrário da Câmara, não leva em conta a demografia dos estados, e cada unidade federativa tem 3 representantes. Seria o caso, portanto, de temer que os eleitores das Alagoas valessem tanto quanto os de São Paulo; e que a quantidade de estados da região Nordeste (9, um terço das unidades federativas) desse um peso colossal ao governismo.

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Por isso a maior surpresa, ao meu ver, foi o fato de que o Rio de Janeiro e São Paulo não deram nenhum voto em favor do marco temporal. Ao contrário: do total de seis senadores, 5 faltaram, e o único que compareceu, Romário, do Rio, votou contra. Todos os senadores de São Paulo foram comprar cigarros e nunca mais voltaram.

No que concerne aos interesses objetivos dos estados, o caso de São Paulo é bem mais grave que o do Rio porque o estado sede dos bandeirantes está integrado à potência agrícola do Centro-Oeste; e é, ele próprio, um estado com produção rural muito relevante. Se o marco temporal cair, o prejuízo para o Rio será pequeno em comparação ao dos paulistas. No entanto, se partirmos para considerações políticas, o Rio de Janeiro choca mais por ser o domicílio eleitoral de Jair Bolsonaro, tendo entre os seus senadores ninguém menos que Flávio Bolsonaro. Os bolsonaristas poderão alegar que Romário só se elegeu porque o TSE barrou Daniel Silveira, mas São Paulo também não os ajuda: o Astronauta Marcos Pontes foi o candidato de Bolsonaro no estado, e tampouco ajudou.

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Vamos a um giro regional, então. Conforme às expectativas naturais, o Centro-Oeste só teve um voto contra o marco temporal, que foi o de Leila Barros do PDT, senadora pelo Distrito Federal – a única unidade federativa não-agrícola da região. Goiás e Mato Grosso entregaram 100% dos votos; no Mato Grosso do Sul, Nelsinho Trad (PSD) não compareceu. Damares, candidata dos bolsonaristas no Distrito Federal, não frustrou os seus eleitores.

Todos os senadores de São Paulo foram comprar cigarros e nunca mais voltaram

O Sul é outra região muito ligada ao agronegócio no Centro-Oeste, que foi desbravado também por agricultores gaúchos e paranaenses. O Paraná entregou todos os votos; Santa Catarina, dois (Ivete da Silveira, do MBD, faltou, e o partido recomendara votar contra); o Rio Grande do Sul, apenas um, sendo que o petista Paulo Paim ainda votou contra.

No Norte, temos um cenário diverso: os dois maiores e mais antigos estados, Pará e Amazonas, elegeram Lula no segundo turno, junto com o Tocantins; já os estados menores, os ex-territórios (Acre, Roraima, Rondônia e Amapá), votaram em Bolsonaro. Desde a Raposa Serra do Sol, fruto de uma conjunção entre PT, STF e ONGs estrangeiras, Roraima é um estado ferrenhamente antipetista. Outros estados do Norte também sofrem muito com o ambientalismo que, ao menos da boca pra fora, é defendido pelo PT e atacado pelo bolsonarismo. Ainda assim, nenhum estado do Norte entregou todos os três votos para o marco. Entregaram dois votos o Acre, Roraima, Tocantins, Amapá e Rondônia, isto é, todos os ex-territórios, mais o ex-Goiás. Os três primeiros não tiveram nenhum voto contra; os dois últimos tiveram o de Randolfe e um emedebista que obedeceu à orientação partidária. No caso do Tocantins, que integra a nova fronteira agrícola do “Matopiba”, é possível que o agronegócio tenha conseguido fazer valer os seus interesses na política. Já nos estados velhos, Pará e Amazonas, o marco temporal perdeu: votaram em seu favor somente o amazonense Plínio Valério e Zequinha Marinho do Pará. O resto era petista ou emedebista votando contra ou faltando.

E na região par excellence das oligarquias antigas convertidas ao petismo? Uma bagunça na qual o marco ganhou por um voto. Destaco como opostas as Alagoas e a Bahia. A terra de Renan Calheiros foi uma das quatro unidades federativas a entregar os três votos (ou seja: foram Alagoas, Goiás, Mato Grosso e Paraná), e a única na qual dois senadores do MDB desobedeceram frontalmente à orientação partidária (em Pernambuco há um, e o Nordeste foi a única região onde emedebistas votaram pelo marco e contra o MDB). Na ponta oposta, a Bahia deu dois votos contra e nenhum a favor, tendo sido o pior estado da federação. Mas a Bahia é o único estado do Nordeste que não deu nenhum voto pelo marco. No país inteiro, só três estados fizeram isso: Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. A Bahia, porém, foi o estado com a pior votação, porque não só não deu nenhum a favor, como deu dois contra (o Rio deu um contra e São Paulo nenhum).

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Nos demais estados nordestinos, a briga foi boa. O marco venceu na Paraíba por dois a zero e no Rio Grande do Norte por dois a um. Em Pernambuco empatou por um a um. Perdeu por dois a um no Ceará, Maranhão, Piauí e Sergipe. Vale frisar que não podemos explicar os votos contrários por orientação partidária, já que: (1) só dois partidos mandaram votar contra o marco, o PT e o MDB; (2) no caso do MBD nordestino, a orientação pouco valeu; e (3) no Nordeste há poucos senadores petistas. Dentre os 27 senadores da região, só há quatro petistas, cada qual no seguinte estado: Bahia, Ceará, Pernambuco e Sergipe (os demais senadores petistas, que são três, estão no Pará, Espírito Santo e Rio Grande do Sul).

É possível atribuirmos à votação das Alagoas a razoabilidade de Renan Calheiros de não querer dividir o poder sobre a terra com o STF e ongueiros internacionais. Quanto à Bahia, a primeira coisa que me vem à mente é que o Extremo-Oeste baiano, que integra o Matopiba, não consegue fazer valer os seus interesses por meio da política. Além disso, é digno de nota que os três senadores da Bahia são grandes proprietários de terra no estado (Jaques Wagner era um sindicalista carioca em Camaçari, mas adquiriu fazendas; Otto e Coronel, que não compareceu, são de famílias proprietárias rurais e ex-aliados do ACM velho). A única explicação plausível que eu encontro, sobretudo para os senadores de tradição rural, é uma grande confiança no domínio de facto sobre os seus territórios e homens, capaz de dispensar a segurança dada pelo Estado. Domínio esse que os novatos do Extremo-Oeste baiano talvez não tenham, e que precisem obter beijando mãos.

Faltam agora os outros dois estados da região Sudeste. O placar da região deu 4 a 2, vitória do marco temporal. Quem fez companhia a Romário foi Contarato, petista do Espírito Santo, e os quatro votos são dois de Minas e dois do Espírito Santo. Como Rodrigo Pacheco relatava, não votou. Todos os senadores de Minas que puderam votar em favor do marco, votaram. Creio que o Espírito Santo, de todos os estados federativos, seja o único em que as diferenças eleitoreiras tenham feito sentido: dois bolsonaristas votaram a favor do marco (Magno Malta e Marcos do Val) e o petista votou contra. Só. No resto não é possível delinear diferenças nítidas entre bolsonaristas e petistas: há poucos petistas no Senado, e os bolsonaristas (a começar pelo próprio primogênito do ex-presidente) não manifestaram coesão na votação. Antipetistas avulsos, tais como Plínio Valério (AM), Moro (PR), Girão (CE) e Soraya Thronicke (GO) mostraram mais firmeza nessa votação do que os principais senadores do bolsonarismo.

Em todas as regiões, o marco temporal venceu. No Sudeste por 4 a 2; no Nordeste, por 14 a 13; no Sul, 6 a 1; no Centro-Oeste, por 9 a 1; no Norte, por 11 a 4. Assim, no somatório, as duas regiões de agronegócio forte (Centro-Oeste e Sul) e a região mais atacada pelo ambientalismo deram as maiores diferenças. O placar nacional foi de 43 a 21, uma lavada.

Na normalidade democrática, o marco temporal jamais deveria ir a votação; o Senado (e menos ainda o STF) não deveria ter o poder de, virtualmente, permitir o roubo da propriedade privada por invasores organizados. Porque é disto que trata a derrubada do marco temporal: a permissão da invasão por grupos políticos organizados, já que todos sabemos (e o senador Plínio Valério tem batido muito nessa tecla na CPI das ONGs) que há uma pressão pela inflação de índios no censo. Quem quiser virar massa de manobra de ONG e de “movimentos sociais” como o MST pode ser facilmente reconhecido como índio ou quilombola, e ter assim não só licença, como estímulos para invadir. É um jeito de levar o país a uma guerra civil e, por conseguinte, a um despovoamento.

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O fim do marco temporal seria, na expressão de Lorenzo Carrasco (veja aqui mesmo, nesta Gazeta), a “africanização do Brasil”. Esse projeto não vem da China nem da Rússia, mas das elites ocidentais. Lembro que Tabata Amaral defende expressamente que Ruanda (Ruanda!) é um modelo exemplar no qual o Brasil deveria se inspirar, inclusive pela baixa participação política da diminuta população masculina sobrevivente do genocídio, e ela aprendeu isso em Harvard. Lembro também que uma figura como Eduardo Moreira, ligada ao MST e a Felipe Neto, não se tornou relevante por meio da China ou da Rússia, mas pela Rainha da Inglaterra, esposa do fundador da ONG malthusiana WWF, que não é russa nem chinesa. Só as viúvas de Olavo de Carvalho ficam semeando a histeria anti-russa e a subserviência aos EUA, a despeito de a análise da conjuntura internacional feita por Olavo (registrada em debate com Dugin) ter se revelado um fiasco com o passar dos anos.

Outra coisa que se vê por aí é que o Brasil é muito mais complexo do que pretendem os simplórios do separatismo. Os ex-territórios do Norte são muito mais sólidos na defesa de uma pauta “bolsonarista” do que Rio e São Paulo. Se o Nordeste fosse tão petista quanto se imagina, teria dado os 27 votos para derrubar o marco, mas o Nordeste votou com o resto do Brasil.

Disso tudo, uma coisa é certa: de Norte a Sul, os políticos do Brasil estão insatisfeitos com a política do Supremo.