Pôster do filme “Nem Tudo Se Desfaz”, do cineasta Josias Teófilo| Foto: Divulgação
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Josias Teófilo é um cineasta tão livresco quanto possível. Seus filmes têm a estrutura de um ensaio: há uma tese, e a tese é amparada por citações e fatos. Se um ensaísta abre um livro e aspeia a fala de um estudioso, esse cineasta põe o estudioso diante da câmera e pede que fale sobre um determinado assunto para, em seguida, pegar a citação. E se um ensaísta usa recortes de jornal para se referir a eventos passados, Josias Teófilo usa gravações com imagem e som. Em “O Jardim das Aflições”, essa estrutura parece estar diretamente subordinada ao livro homônimo de Olavo de Carvalho. (Digo “parece” porque não li o livro.) Olavo tem uma teoria filosófica sobre a maneira ideal de conduzir a vida, e Josias, ao tempo que recolhe as falas explicativas de Olavo, mostra-o vivendo de acordo com as próprias concepções.

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O Olavo sóbrio e estoico desse filme tem uma face completamente distinta do Olavo barraqueiro e descontrolado que mobilizava uma legião de trolls nas redes sociais. Não quero dizer com isso que o documentário seja uma falsificação da realidade; afinal, é plausível que o filósofo pregue uma coisa que ele próprio não consiga cumprir.

Um documentarista que mostrasse o quotidiano de Jean-Jacques Rousseau como preceptor para ilustrar a filosofia contida em “Émile, ou de l’éducation” faria uma obra fidedigna, desde que tivéssemos às claras o fato de que o objeto é uma obra filosófica e não a realidade ou a pessoa do filósofo. Jean-Jacques Rousseau continuaria sendo um pai que entregou cinco filhos para a adoção, independentemente da qualidade de sua obra ou de seu trabalho como preceptor. Aponto somente que aquele não é um filme sobre a pessoa de Olavo, mas sobre a cosmovisão de Olavo.

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O objeto político

No novo filme, “Nem Tudo se Desfaz”, o objeto de Josias Teófilo é a realidade política e social do Brasil entre 2013 e 2018. Olavo deixa de ser a sua referência única, e, ao contrário de documentaristas de esquerda, ele se empenha em ouvir gente de todo tipo de opinião diferente. São ouvidos notórios esquerdistas, como Idelber Avelar e João Cezar Castro Rocha. Olavo e olavetes que não aderiram ao antibolsonarismo, como Pedro Sette-Câmara e Francisco Escorsim, também são ouvidos. Constam os filhos de Bolsonaro e até Steve Bannon. Há ainda jornalistas que não pertencem a nenhum movimento específico, como Augusto Nunes. Com tanta gente diferente diante de sua câmera, Josias reúne uma série de citações para defender uma teoria: em 2013 iniciou-se uma Revolução no Brasil da qual Bolsonaro foi o beneficiário em 2018.

O autor que aparece por mais tempo no filme é João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura da UERJ. Ele aponta o caráter inédito das manifestações de direita, que não foram convocadas por partidos, nem sindicatos, nem organizações classistas. No entanto, em suas breves aparições, Olavo de Carvalho é o único a usar a expressão “Revolução” para descrever o evento.

A controvérsia pode ter muito de lexical; afinal, a aceitação ou rejeição da tese de um processo revolucionário foi iniciado em 2013 depende do conceito de revolução que tenhamos. De minha parte, eu a aceito se adotarmos o significado lato de Revolução como um processo de subversão da ordem política vigente. O documentário tem inegável valor historiográfico ao mostrar como fato inequívoco que as manifestações de massa como mecanismo de pressão são uma novidade na política brasileira surgida em junho de 2013.

Mas como as massas verde-amarelas estão sendo cada vez mais desrespeitadas pelo status quo ante, devemos ter aberta também a possibilidade de uma Revolução nos moldes nada ambíguos que incluem derramamento de sangue, por menos compatível que isto seja com a índole brasileira.

Não estou ciente de Olavo de Carvalho ter escrito um texto sobre sua teoria da Revolução Brasileira, ou se é tudo telefone sem fio e ruído de rede social. Se ele não tiver redigido sua teoria, o documentário de Josias ganha ainda mais valor histórico. Sobretudo porque temos visto essa tese se disseminar pela direita, para além dos ambientes de formação olavete. Tenho em mente Rodrigo Constantino e Ana Paula Henkel, que adotaram a tese da Revolução. Em 2013 nenhum dos dois tinha nada a ver com olavismo; Constantino, em particular, é de uma corrente política cuja existência desmente os olavetes mais exaltados que reduzem a direita ao olavismo.

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Recordações

Creio que, assistindo ao filme, todo mundo se lembre do ambiente que frequentava durante a eclosão dos protestos. Num documentário como o de Petra Costa, em que a cineasta fica falando de si própria, isso não acontece. Particularmente, o que mais me chamou a atenção, na olhada em retrospecto, foi o caráter efêmero e artificial das lideranças do MPL (Movimento Passe Livre), rival do MBL. Olhando agora, me parece evidente que se tratou de uma tentativa desesperada do PT de dizer que a esquerda era a dona dos protestos. No fim, era um endosso da tese de Lula, segundo a qual o povo, depois de ganhar o pão, queria que o governo desse também a manteiga.

Como o meu ambiente de então era o universitário; em particular, de uma corrente já extinta que poderia ser descrita como esquerda democrática que torcia o nariz para o identitarismo e adorava falar mal dos "pedabobos" (isto é, os freireanos), creio que valha anotar uma coisa que pode passar despercebida para quem estava na direita e não conhece a esquerda. Essa coisa é: do fato de a esquerda admitir que as manifestações não foram convocadas por partidos políticos e entidades de classe não se segue que a esquerda admita que as manifestações foram espontâneas.

No calor do momento, a esquerda batizou o fenômeno como Jornadas de Junho e adotou a tese de Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp. Ele rodou as federais brasileiras divulgando a sua interpretação segundo a qual não havia crise no sistema democrático, mas sim uma revolta contra uma força imobilizadora à qual ele chamou de “peemedebismo”. É uma teoria mais factível do que as teorias petistas que vieram depois – mas é conciliável com o petismo em si mesmo. E isso explica por que ganhou aceitação inicial das federais: bastava dizer que o povo tinha um problema com o PMDB, não com o PT. O problema era que o PT não era progressista o suficiente e se prendia a forças do atraso. Essas forças, no frigir dos ovos, eram facilmente identificáveis com o Congresso; e desse período até 2016 era normal a esquerda reclamar muito do Congresso sem que fosse tachada de antidemocrática por isso.

Na época do impeachment, eu me lembro de o colega petista estar furioso com os black blocs e com o PSOL usando o seguinte raciocínio: se não fossem aqueles burguesinhos dos black blocs, não teria junho de 2013; e, se não fosse junho de 2013, não tinha impeachment. A acompanharmos a tese defendida por Josias Teófilo, o meu colega petista tinha razão.

Esse pensamento foi difundido pela esquerda e se tornou geral, encontradiça dentro e fora do PT. Hoje, black bloc faz mea culpa por 2013. Mas de lá pra cá esse pensamento foi ganhando um elemento conspiratório: os burguesinhos eram, na verdade, teleguiados pela CIA. Depois viraram teleguiados pelo gênio do Steve Bannon etc. Foi o jeito que eles encontraram para dizer a si mesmos que não tinham perdido o amor do povo: era tudo culpa dos EUA. A última teoria dessa estirpe é a de que Bolsonaro deu um golpe em 2018 via WhatsApp com Steve Bannon e por isso as eleições não foram legítimas. É ridículo? É. Mas é isso mesmo; a esquerda foi para o mundo da lua em 2015 e não voltou mais.

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Por isso é que é fácil pegar professores de esquerda dispostos a admitir que as manifestações de junho são inéditas: eles acreditam que dá pra fazer feitiçaria com a internet e teleguiar as pessoas para irem às ruas. Assim, temos, confundidas no documentário de Josias, duas teorias parecidas porém opostas sobre junho de 2013: a esquerdista, que não crê na espontaneidade das massas, e a olavista, que crê. Esta é uma discordância que segue viva em 2021, já que a esquerda acredita sinceramente que a censura da internet é capaz de acabar com a “feitiçaria” da direita. A teoria que começou petista ganhou o status quo e a teoria que começou olavista ganhou a direita não-olavista.