Prometi falar de Kabengele Munanga (pronuncia-se Kabenguelê), o professor congolês da USP que, desde a morte de Abdias do Nascimento, ocupa o posto de ideólogo oficial do movimento negro. Kabengele é forte na academia; Djamila é mais do universo pop e empresarial.
Como já vimos, Florestan Fernandes, sociólogo branco da USP e fundador do PT, inventou a tese de que o Brasil é terrivelmente racista, pior até do que os Estados Unidos e a África do Sul segregacionistas, porque eles eram racistas abertos, enquanto que nós seríamos racistas insidiosos que desmobilizam os negros. Abdias do Nascimento (1914 – 2011) era um aspone integralista alçado a intelectual negro pela turma uspiana na década de 70, e acrescentou à tese de Florestan a ideia de que o Brasil é um país genocida porque acaba com os negros por meio da miscigenação. Depois dele, veio Kabengele Munanga, o pensador oficial do identitarismo negro que despontou na década de 1990.
Li então o seu “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil”, publicado pela primeira vez em 1999 e reeditado ano passado com um capítulo extra, dedicado a responder aos seus críticos – a saber, os antirracistas Demétrio Magnoli, Peter Fry e Antonio Risério. Yvonne Maggie é citada como autoridade, embora seja uma grande antirracista e coautora com Peter Fry de um livro contra as cotas.
O resumo da ópera é: os não-brancos têm a obrigação moral de se assumir politicamente como negros em solidariedade aos negros e construir um Brasil dividido em duas raças para exigir carguinho e cotinha para os “negros”. Mestiçagem só não é ruim se servir para inflar o número de negros. Os brancos estão liberados para cuidar da vida, enquanto que os pardos têm a obrigação moral de carregar os males do racismo nas costas, mesmo que não sejam vítimas do racismo. Os países europeus e africanos estão livres para pregar união nacional, enquanto que o Brasil tem a obrigação de se cindir em dois e atribuir aos negros uma cultura não ocidental.
Na verdade, Kabengele e demais uspianos querem que indivíduos não valham nada e que se raciocine somente em termos de coletividades raciais ou, já que lastimavelmente somos mestiços, coletividades fenotípicas.
Parte do livro é quase acadêmica
Junto de Abdias do Nascimento, Kabengele Munanga parece um acadêmico de mão cheia, já que traz uma historiografia detalhada e diversa no que concerne ao pensamento racial da época do Iluminismo. Pude aprender sobre as controvérsias acerca da mestiçagem entre Buffon, Voltaire e Kant, e me inteirar da legislação racista dos franceses no atual Haiti, outrora São Domingos.
De fato, a ruína da autoridade católica na era das Luzes implicou, fora da Península Ibérica, o ataque ao dogma de que todos os homens descendem de Adão e Eva. Desse ataque vem a chamada teoria da poligenia humana, ou seja, a ideia de que a humanidade teve várias origens diferentes no mundo. E dessa teoria vem o racismo, uma ideologia pseudocientífica surgida no século XIX e popularizada no século XX, segundo a qual surgiram do seio da natureza raças humanas distintas, sem parentesco entre si, de modo que a mestiçagem era algo antinatural.
Entendia-se ainda que a raça ariana era a raça superior, e que é capaz de se degenerar por razões várias, inclusive a miscigenação. A história da humanidade torna-se a história da decadência; a era de ouro está no passado, quando os arianos não tinham se degenerado. A queda do Império Romano é explicada por Gobineau como consequência da degeneração causada pela miscigenação. Desse tipo de mentalidade vem a paranoia de pureza racial dos nazistas e Hitler, segundo o seu biógrafo Joachim Fest, pretendia aniquilar os alemães ao se descobrir perdedor da guerra, por entender que a derrota ariana para a desprezível raça eslava era sintoma da degeneração da raça alemã.
Mas Kabengele não dá muita bola para a paranoia degenerativa dos nazistas. Da França e do Haiti, ele corta para o Brasil republicano, ou seja, quando o racismo já tinha sido inventado e se disseminado pelo Ocidente. Uma coisa importante que Kabengele não conta é que, enquanto as Luzes colocavam a autoridade da Igreja em xeque, Portugal não admitia sequer a física newtoniana, que dirá a poligenia humana. Antes de o Marquês de Pombal expulsar os jesuítas (1759), o Brasil não conhecia outra filosofia senão a escolástica. Para o bem e para o mal, estávamos presos à Idade Média. A escolástica mal sabia o que era um negro; negro era personagem de história sacra. (Não só com a figura de Cam, mas também com as de Santa Ifigênia e São Elesbão; lembremos que a Etiópia é cristã antes da Europa). A escolástica sequer admitia a possibilidade de haver vida nos trópicos, porque os antigos achavam que do Egito para baixo tudo era como o Saara.
Para o bem e para o mal, o Brasil ficou preso na Idade Média até Pombal. O embrião do racismo, contido na iconoclastia caótica do Iluminismo, foi um mal que não nos afetou na época do Império. Nessa época, o conselheiro Bonifácio (1763 – 1838), omitido por Kabengele, forjava a ideia de Brasil como um amálgama dos três povos: português, índio e negro. O próprio português nunca foi entendido pelos racistas como povo branco, uma vez que era miscigenado com mouros (outrora conquistadores) e judeus (os “cristãos novos”). Na América, o português seguiu a que rotina que já praticava na Europa, a da miscigenação e assimilação sincrética das culturas.
A parte historiográfica do livro de Kabengele é quase acadêmica, porque pinça partes espaço-temporais da história para construir uma história de racismo brasileiro. Tudo se passa como se o português tivesse chegado branco e racista à América lá pelo século XVIII (e não no fim da Idade Média, quando o racismo nem sonhava nascer), tivesse adotado aqui as ideias francesas ou inglesas já no XVIII (quando éramos jesuíticos, medievais e analfabetos) e, enfim, pegassem Oliveira Vianna (1883 – 1951) para inventar um racismo à brasileira na República (início do XX).
Esse racismo à brasileira é muito interessante. Vou confessar que só conheço Oliveira Vianna indiretamente, de modo que não posso dizer se o resumo de Kabengele foi impreciso. (Devo dizer ao leitor que acabei de encomendar duas obras de Oliveira Vianna para sanar o problema). Se for tal como descrito por Kabengele, Oliveira Vianna, o arianista do Brasil, inventou uma gambiarra para tentar ser um racista miscigenado.
A ideia dele é abandonar a noção de raça pura e se apegar a fenótipo: o branco brasileiro seria um mestiço que deu certo, e a inferioridade do negro se revelaria na mera incapacidade de passar seus fenótipos adiante, não na incapacidade de se reproduzir muito. Em vez de analisar as mucosas e as proporções cranianas de um homem claro para descobrir se sua raça é pura, o arianista brasileiro considera os fenótipos o signo da pureza. Tudo é aparência, não há essência racial.
Isso se encaixa no estilo medieval dos preconceitos brasileiros. Já vimos como Thales de Azevedo explicou os nossos preconceitos por termos raízes numa sociedade de status, na qual o que conta é o berço. Se o negro é espezinhado, é porque sua cor indica o “pé na cozinha”. Brasileiro não sabe o que é raça. Na Idade Média, nobre andava com roupa de nobre, plebeu andava com roupa de plebeu, e membro do clero andava com roupa de membro do clero. Você era alguém na sociedade em função não de sua individualidade ou de sua riqueza, mas sim em função do grupo social ao qual você pertencia, no mais das vezes, por mero nascimento. Digo “no mais das vezes” porque o clero é exceção. Ninguém nascia padre; os religiosos vinham da nobreza e da plebe.
Ser negro, entre os nossos preconceituosos, é como trajar uma roupa de plebe, de gentinha, de falta de berço. Uma roupa impossível de tirar. Entre nós (e sobretudo na Salvador descrita por Thales de Azevedo), os mecanismos de ascensão do negro e do mulato foram a Igreja (tal como fazia a plebe na Idade Média) e o diploma. O diploma nobilitava, permitia casamento com brancas e a prole ia clareando, de modo a apagar a mancha plebeia após umas três gerações. O quadro “A redenção de Cam” mostra isso. (Alguém poderia ter pintado também uma “perdição de Jafer”, já que não poucos brancos pobres tinham netos negros).
Agora compare essa situação com a de um bebê judeu nascido em Auschwitz, que ia direto da enfermaria para o crematório. Ali, onde há o racismo verdadeiro, inventado no XIX, não há redenção possível: o bebê é uma praga, um parasita sub-humano a ser eliminado tal qual um carrapato. A aparência, o fenótipo dele, é irrelevante. Como brasileiro tem dificuldade para entender isso, vou pedir que foque sempre num recém-nascido de Auschwitz quando pensar em racismo. Para o racista, algumas pessoas nascem irremediavelmente erradas. O mínimo que se pode fazer é impedir que se reproduzam e esperar que morram. O máximo é exterminá-las de uma vez.
Um descendente de português não pode ser racista sem pular da ponte. Embora admita a superioridade ariana, o máximo que Oliveira Vianna pôde fazer (a acreditarmos na leitura de Kabengele) foi dar um verniz racial aos preconceitos arcaicos brasileiros, colocando como superiores os loirinhos de olhos azuis, mesmo que esses loirinhos tenham um pé na cozinha ou origem judaica. Se me for permitido um neologismo, eu diria que Oliveira Vianna inventou um fenotipismo para fazer as vezes de racismo neste Brasil vira-lata.
Mais uma coisa a registrar sobre ele: eu nunca tinha entendido de onde os militantes tiraram essa história de que os capitães do mato eram mulatos desajustados que perseguiam negros. A crer em Kabengele, quem falou isso pela primeira vez foi Oliveira Vianna. Ou seja: no fim das contas, tomaram um adepto do racismo como autoridade histórica para difamar mulatos.
História ruim
Insistamos na noção de um Brasil da Idade Média, agora sob o aspecto econômico. Quantas pessoas tinham condições materiais confortáveis na Idade Média? A existência da classe média é um fenômeno ligado à origem do capitalismo. Os burgueses, precursores do capitalismo, tinham dinheiro, mas não tinham status, e eram apenas uma parcela urbana de um mundo majoritariamente rural. Na Idade Média, era quase todo mundo pobre.
No Brasil colonial, idem. O senhor de engenho era como que um nobre, a vasta escravaria era como que plebeia; a figura do mascate era superior à do escravo, mas estava a anos luz da do senhor. Kabengele reconhece que, nessa época, o filho mulato do senhor de engenho alçava condições razoáveis e que o amor dos pais, no Brasil, era superior a considerações de cor. O que ele não menciona é que ser um mulato de posses nessa sociedade era ser parte de uma ínfima minoria abastada.
Depois, por alguma mágica, é como se para Kabengele o mero surgimento de Oliveira Vianna, ou a importação de italianos, tivesse causado o empobrecimento dos mulatos. O Brasil era pobre. Sempre houve aqui mulatos endinheirados, sempre houve mulatos pobres e sempre houve brancos pobres (não era todo mundo senhor de engenho, não). O fenômeno da ascensão dos descendentes de imigrantes aconteceu ao mesmo tempo em que o Brasil passava de país rural a país urbano. Não faz sentido dizer que um mulato tinha maiores chances de ascensão social na época da escravidão do que no Brasil urbano.
A História de Kabengele é sem pé nem cabeça. Uma hora, ele diz que os mulatos foram exitosos e que os fracassados se extinguiram. (Digo “mulato”, porque ele chama de mestiço sempre o mestiço de negro e branco, deixando de fora o índio). A consequência lógica seria que todo mulato é rico. Cito-o: “Resumindo: os mestiços ‘superiores’ conseguiram, por meio do casamento e pela posse de terra nos novos núcleos, incorporar-se à classe superior, à nobreza territorial, usando a sua identificação com a aristocracia rural pela similitude de caráter, de conduta e, principalmente [sic], de cor. Os mestiços ‘inferiores’, os menos dissimulados [sic], os facilmente reconhecíveis, os estigmatizados, os cabras… esses foram implacavelmente eliminados [sic].” (p. 71) De onde surgiram os negros pobres, então?
O salto para a normatividade
No entanto, todo valor historiográfico ou acadêmico que o livro possa ter fica desconectado da sequência: o imperativo de que nós, brasileiros, alteremos o conceito de negro para incluir todos os não-brancos e para sair criando cota racial. Embora Kabengele, ao pé da letra, divirja de Florestan, por dizer que todo racismo é igualmente horrível, em vez de dizer que o brasileiro é o pior de todos, a moral da história é a mesma de Florestan: nos Estados Unidos é que é bom, porque divide a sociedade claramente entre negros e brancos, e aí dá pra botar os dois pra brigar. Tudo se passa, como de costume, como se não houvesse índios.
O prefaciador do livro, o sociólogo branco da USP Teófilo de Queiroz Jr., é mais explícito: “faltou sempre aos homens brasileiros de saber e de poder o reconhecimento dos prejuízos que a mestiçagem vem causando ao negro no Brasil. Cultivada e proclamada por décadas, a falácia de nossa ‘democracia racial’ vem sendo reforçada pela ausência de conflitos entre brancos e negros”. Mais sutil, Kabengele diz: “Do nosso ponto de vista, não resta dúvida de que esses mecanismos seletivos [i. e., posse de diplomas e terras, que permitiam ascensão social de mulatos] quebraram a unidade entre os próprios mulatos, dificultando a formação da identidade comum do seu bloco” (p. 72).
Assim, o movimento negro brasileiro está certo ao aderir à classificação racial dos Estados Unidos da one drop rule (segundo a qual negro é quem tem o sangue infecto por uma gota de sangue negro): “No Brasil, a classificação racial dá ao mestiço uma posição e um lugar que nada têm a ver com as classificações norte-americana e sul-africana. Em primeiro lugar, trata-se de uma classificação racial cromática, ou seja, baseada na marca e na cor da pele, e não na origem ou no sangue, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Dependendo do grau de miscigenação, o mestiço brasileiro pode atravessar a linha ou a fronteira de cor e se reclassificar ou ser reclassificado na categoria ‘branca’. Jamais poderá ser rebaixado ou classificado como negro, salvo raras exceções, devido notadamente à escolha individual [sic] por posicionamento ideológico. Seria o caso dos poucos e raros mestiços politicamente mobilizados e que se consideram negros para forjar a solidariedade e a identidade política de todos os oprimidos. É preciso deixar claro que estamos nos posicionando no plano ideológico [sic] coletivo [sic] e não no periférico das relações individuais”. É uma decisão ideológica adotada por alguns indivíduos, mas deve ser adotada pelo Estado no plano coletivo. Que tal esse Estado-ideólogo?
Ele termina defendendo as cotas raciais com tribunais raciais, nas quais serão considerados negros os mestiços de “traços morfológicos que remetem à negritude”. Os caboclos que se explodam. Volta a exigência de “boa aparência”, bem como a discriminação por fenótipo. Uma foi legitimada por Oliveira Vianna, outra por Kabengele Munanga.
Ficou faltando vermos as tentativas dele de responder ao trio de antirracistas (Demétrio Magnoli, Peter Fry e Antonio Risério), que foi certeiro ao denunciar seu projeto antibrasileiro de uma sociedade de guildas raciais, sem indivíduos de consciência livre.