A primeira coisa que um leitor de A Nova Era e a Revolução Cultural há de notar é a atribuição, por parte de Olavo de Carvalho, de um papel vital da esquerda para uma democracia. Em 1994, lastimava-se assim: “Durante algum tempo, nutri a insensata esperança de que o PT expeliria de si o veneno gramsciano e se transformaria no grande partido socialista, ou trabalhista, de que o Brasil precisa para compensar, na defesa do interesse dos pequenos, o avanço neoliberal aparentemente irreversível no mundo e propiciar, pelo sadio jogo de forças, o movimento regular e harmônico da rotatividade do poder que é a pulsação normal do organismo democrático”. (p. 24)
Essa rotatividade, claro está, dava-se entre esquerda e direita: Olavo, “se fosse lícito sonhar”, sonharia “com uma reforma moral do próprio PT, que, renunciando ao propósito revolucionário de ‘tomar o poder’ […], poderia transformar-se no grande partido socialista que, numa futura e ideal democracia brasileira, se alternaria no poder com um partido direitista, cada qual compensando e corrigindo os erros do outro. Se há algo que a história das democracias ensina, é isto: é bom que haja uma esquerda, é bom que haja uma direita, e não é bom que uma das duas afaste a outra do poder definitivamente.” (p. 122) Em 1994, para Olavo, ser de esquerda não era algo inerentemente ruim. Tampouco era ruim ou antidemocrático ser socialista. Ruim era o gramscismo em particular.
Que Olavo tenha mudado de ideia, vê-se logo no começo. A quarta edição seguiu o costume de colocar as notas prévias em ordem cronológica inversa: primeiro vem uma introdução geral à trilogia, redigida em 1996, depois uma nota à segunda edição, feita em junho 1994 (de onde tirei a primeira citação), e depois a nota prévia da primeira edição, feita em janeiro de 1994. O editor, Sílvio Grimaldo, acrescentou como posfácio uma entrevista feita por ele com Olavo de Carvalho em 2014, isto é, vinte anos após o lançamento do livro.
Giro de 180º em dois anos
O leitor começa então o livro em 1996, quando Olavo explicava o desenho de William Blake usado na capa do livro, com Beemote sob a direção de Deus, subjugando Leviatã. Para Olavo, em 1996, a direita era Beemote, a besta obediente a Deus e por ele auxiliada, incumbida de subjugar a esquerda, que era o Leviatã.
Cito as páginas 12 e 13, para ninguém dizer que estou inventando: “Para Blake, embora Beemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. No entanto não é ao homem, nem a Beemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais, ou infranatuais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário exterior da História. É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se vida espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da Providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente. No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.”
Houve em apenas dois anos um giro de 180º na perspectiva política de Olavo de Carvalho. De simples elementos essenciais à democracia que deveriam se alternar no poder, esquerda e direita tornaram-se forças cósmicas antagônicas, devendo uma delas ser combatida pelo próprio Cristo. Baita mudança!
A mudança resta inexplicada. No posfácio de 2014, Olavo comenta a sua atitude ingênua em relação a Lula. Disse que mudou radicalmente de ideia após saber do Foro de São Paulo “no final da década de 90, graças ao dr. José Carlos Graça Wagner, que tinha um acervo enorme de documentos sobre a organização”. Considerando-se que 96 está mais pra meio do que para final, houve uma mudança filosófica profunda entre 94 e 96 que parece ter passado despercebida por seu leitorado e pelo próprio.
Uma coisa se manteve
O resto, porém, parece ter se mantido bastante estável – o que não deixa de ser impressionante, já que o livro, com todos os elementos transitórios de cronista, amarra todos os fatos numa história consistente, emoldurada na visão da política como uma batalha espiritual iniciada em foro íntimo. Este é um traço bastante relevante na filosofia, já que é uma cosmovisão oposta ao economicismo.
O mais famoso filósofo economicista é Marx, para quem o mundo social se explica por meio de relações econômicas. A mais famosa crítica a essa visão talvez seja A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Segundo ele, não é verdade que a matéria determine a sociedade capitalista, mas sim, como diz já desde o título, algo tão etéreo como o espírito. Embora os marxistas brasileiros tenham lido Weber, eles não entenderam nada, e escolheram entre falar mal do Tio Sam por ser protestante, logo, capitalista, ou fazer lamúrias viralatistas contra o Brasil, que não vai virar capitalista antes de as leis inexoráveis da História o impelirem para o protestantismo.
A maneira de Olavo explicar o mundo, então, está a mil léguas de Marx e se aproxima da de Weber, cujo herdeiro intelectual, Voegelin, ele divulgou no Brasil.
Encerremos por hoje com um exemplo concreto e elementar disso. Olavo crê que há uma revolução gramscista em andamento que consiste em alterar a cultura e adestrar o homem para agir conforme uma nova moralidade. Nos longínquos anos 90, o PT dizia-se partido da Ética, e baseava toda a sua superioridade moral na suposta ausência de corrupção no seu partido. Um puritanismo anticorrupção o autorizava a pôr o dedo na cara dos outros.
Ao mesmo tempo, os crimes de sangue eram considerados como materialmente determinados, esvaziados de seu conteúdo moral. Nasceu pobre, é ladrão que mata pra roubar. Matou para roubar? É porque nasceu pobre. Por que nasceu pobre? Por culpa da sociedade. E lá pelos no 90 havia já essa prática de tratar o assassino como vítima e o corrupto como algoz. O juiz Lalau e PC Farias eram retratados na imprensa de uma maneira muito mais sombria do que Fernandinho Beira-Mar e William Professor do CV. A propósito, à época, segundo registra o cronista, a imprensa e a intelectualidade não tinham vergonha de tratá-lo como um herói injustiçado.
No frigir dos ovos, passa-se a considerar crime contra o patrimônio do Estado (que é a corrupção) uma coisa mais grave do que um crime contra a vida. É uma subversão da moralidade ocidental que a aproxima da URSS, onde corrupção dava pena capital e homicídio dava uns anos de cadeia.
O ídolo do PT ético passou. Mas permanece o alerta contra os falsos Profetas da Ética que fazem da bandeira anticorrupção o grande assunto do país. Por trás deles se oculta uma moral totalitária.