Tinha resolvido, com meus botões, ler e comentar Olavo de Carvalho depois que a poeira baixasse – o que, acreditava eu, aconteceria somente depois de ele morrer, e olhe lá. A resolução adveio do fato de o fã-clube ser chatíssimo e mais propenso à gritaria do que ao diálogo. Assim, se dava uma olhadela no best seller organizado por Felipe Moura Brasil, logo vinha a gritaria de que não podia comentar aquilo sem ter lido trocentos outros livros ou ouvido todos os milhões de horas do COF. Ou seja: se eu lesse, teria que guardar minhas observações para mim mesma, porque não haveria ninguém com quem conversar.
Mas o curioso é que não foi preciso que Olavo morresse para a poeira baixar. Creio que isso tenha acontecido por volta do Inquérito das Fake News. Em princípio, achei que fosse simplesmente por medo da parte dos olavetes, que passaram a ser perseguidos pelo STF. Porém, o mesmo inquérito foi precedido por uma traição interna ao movimento, que consistiu na entrega, por parte dos adeptos de Luciano Ayan, de nomes da direita ao STF.
Hoje já avento a possibilidade de que a discussão de Olavo tenha sido inviabilizada de propósito por um grupo infiltrado. Faltou perspicácia a Olavo e seus pupilos honestos para perceber que a retórica agressiva levou as ideias de Olavo a serem pregadas somente para convertidos. Afinal, quando a turba olavete obriga o leitor ao culto da personalidade de Olavo, torna-se impossível gente como eu discutir a sua obra.
Por qual obra começar?
Segui Flavio Gordon e considerei que a filosofia de Olavo se condensa na trilogia A Nova Era e a Revolução Cultural (1994), O Imbecil Coletivo (1996) e O Jardim das Aflições (1995). A despeito da cronologia, a ordem lógica é esta. Assim, comecei com A Nova Era e a Revolução Cultural, que traz como subtítulo “Fritjof Capra & Antonio Gramsci”. Se há uma vantagem com os autores mortos, é que eles não mudam de ideia e não vão criar edições novas que tornem as que temos obsoletas. Então tenho a definitiva, que é a “4ª edição, revista e muito aumentada”, da Vide Editorial, lançada em 2014.
Que dizer ao não-leitor de Olavo de Carvalho que só o conhece por causa da gritaria? Que, a julgar por este livro, é um escritor agradável e instigante, bom de ler no final de semana para espairecer e pensar. Olavo de Carvalho é um exímio cultor da língua portuguesa, coisa que vem se rareando entre nós. Além disso, ouso dizer que uma das razões para ele ter caído no gosto popular brasileiro é seu estilo de cronista.
Já comentei neste jornal o curioso fato de que o Brasil é o único país do mundo onde Dalrymple é pop. A explicação que ofereci para isto é seu estilo de cronista. Tipicamente, um escritor brasileiro de sucesso escreve para jornal, e entre nós há o costume de fazer livros com seleção de textos de jornal. É assim com José Guilherme Merquior, com Carlos Drummond de Andrade, com João Ubaldo Ribeiro, com Luís Fernando Veríssimo. Cientistas políticos e poetas, esquerdistas e direitistas, são antes de tudo, entre nós, cronistas. Antes de estourar de vez com a Internet, Olavo estava dentro desse perfil típico de homem de letras brasileiro.
Crônica como forma de organização
O perigo da consagração da crônica como estilo literário favorito é se perder na poeira do tempo. Poderíamos achar que o Brasil está em maus lençóis por isso, mas creio que é justamente o contrário. Afinal, Polzonoff já comentou algumas vezes neste jornal o processo de croniquificação da literatura: em vez de aspirarem à imortalidade com um grande romance, os escritores se dedicam às coisas mais efêmeras. Eu, de minha parte, posso apontar um processo de cronificação das humanidades: é difícil discutir teoria política de uma maneira mais abstrata olhando para clássicos e ampliando o escopo temporal quando somos soterrados por polêmicas e slogans o tempo inteiro.
Creio que a croniquificação seja uma decorrência da própria volatilidade do nosso tempo. A culpa não é da internet, já que na década de 1940, em clima de Segunda Guerra, Bernanos já se queixava da enxurrada de slogans. Aquela época era politicamente atípica e a nossa também. Há em curso uma espécie de bombardeio psicológico que mexe com a nossa percepção do tempo e nos faz pensar apenas em curto prazo. É uma perda muito grande, pois nos impede de enxergar o quadro dos acontecimentos na sua inteireza; é como se tivéssemos só mapas de bairros em vez de mapa múndi.
Se os fatos nos soterram, é natural que façamos umas croniquinhas em vez de partir direto para grandes textos definitivos. As crônicas correm sempre o risco de se perder na poeira do tempo, mas, creio eu, são o único gênero textual com condição de agarrar essa torrente de fatos miúdos. Por conseguinte, se há um jeito de organizá-los em nossas cabeças, esse jeito passa pela crônica.
Olavo, o cronista-filósofo
A Nova Era e a Revolução Cultural traz fatos que poderiam ter ficado perdidos na poeira do tempo. Aprendemos que Fritjof Capra, hoje um notório charlatão quântico, foi recebido como evidente sumidade pela intelectualidade esquerdista brasileira, aí inclusos até figurões teologia da libertação. Eu tinha quatro anos quando isso aconteceu; não há como lembrar.
Não obstante, o cronista Olavo anota o fato, digere-o e expõe os traços ideológicos de Capra que incluem desde a abolição do patriarcado até a guerra contra o uso do petróleo como matriz energética. Nunca me daria ao trabalho de olhar o que escreveu uma figura tão passageira quanto Capra; no entanto, Olavo, o cronista, retém um fato em meio àquela volatilidade toda, e Olavo, o filósofo, pensa-os. Esse pensamento, que domestica os fatos dispersos na poeira do tempo, nos ajuda a enxergar o quadro atual dentro de uma série iniciada em 1994.
Hoje me alonguei. As notas sobre o livro ficam para amanhã.
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