Um tema já muito insistido é a deturpação do conceito de liberalismo que o converte em progressismo. Grosso modo, liberalismo seria destravar as potencialidades individuais, então caberia ao Estado libertar a humanidade dando-lhe educação, saúde e… modess. Daí o pseudoliberal progressista dirá que é liberal, sim, porque não defende a criação da estatal Modessbrás; em vez disso, defende a iniciativa privada, que é mais eficiente que o Estado, e está pronta para pegar os fundos da viuvinha para comprar modess. No momento, temos progressistas usando um “estudo” da Always para mostrar que coisas terríveis acontecem se as meninas não ganharem modess do governo. Elas enfiariam miolo de pão e ficariam sem ir à escola.
Alguns diriam que isso não é liberalismo por causa do papel do Estado na oferta de serviços e produtos. Eu já penso que o crucial a ser observado aí é o equilíbrio de poder. Empresas transacionais como a P&G (dona da Always) têm mais dinheiro do que muitos países – que aliás costumam estar endividados. Quando o Estado passa a comprar coisas e serviços dessas transacionais, transfere ainda mais dinheiro e poder para elas.
Nessas horas, um simplório dirá algo como: “E daí? Essas empresas são grandes porque são eficientes”. Isso presume uma visão utópica de como funciona o mundo. É a utopia do darwinismo social, que merece ser destrinchada noutro texto. Mas ainda que acreditemos que as empresas sempre são grandes por serem boas (o que é uma baita ingenuidade), disso não se segue que, uma vez que domine o mercado, a empresa continue ofertando bons produtos, já que o público foi cativado.
O caso dos modess da Dona Tábata é uma negligência esquerdista do problema da formação de monopólios privados. Mas o esquecimento é ambidestro.
Versão de direita
Se sairmos da esquerda para a direita, encontraremos a entusiasmada defesa do “voucher” – isto é, do vale – de educação. A solução para os problemas do ensino básico, ora capturado pelas corporações de funcionários públicos e prejudicado pela má gestão, estaria na introdução da concorrência por meio de vales.
Os vales nada mais são que a versão do Prouni para o ensino básico. O Prouni é um programa de bolsas do governo federal criado por Haddad em 2005, no governo Lula I. Em vez de gastar com as federais, o Estado dá bolsas integrais a jovens pobres em instituições de ensino superior privadas. Haddad foi também o ministro que criou o Reuni, o programa que transformou as universidades federais em escolões identitários, multiplicando as vagas na marra e diminuindo o gasto per capita com o alunado. A maior greve da história das federais no governo Dilma aconteceu em plena vigência do Reuni.
Olhando em retrospecto, podemos dizer que o Reuni (cujo documento pode ser lido aqui) já tinha a digital ESG. Incluía, por exemplo, cotas raciais (“ações afirmativas”) nos vestibulares – prática racista que deveria ser considerada ilegal e inconstitucional, mas a qual o STF liberou em 2012.
Voltemos para a relação de poderes. Todo brasileiro de cidades grandes e médias que tivesse uma faculdade privada decente viu-a ser comprada por alguma multinacional e se transformar numa pagou-passou. A criação de um programa federal de “voucher” (ou bolsa) mexeu com o mercado e atraiu grandes “investidores” (ou predadores) internacionais.
Durante a pandemia, Lemann passou a ser dono de um dos maiores conglomerados de ensino básico do mundo, quando a sua empresa Eleva comprou o grupo Cogna. Se Tabata Amaral está falando só de modess, é porque a direita já tem uma porção de simplórios defendendo os interesses de Lemann.
Daí vocês já sabem: se a direita conseguir driblar o lobby dos servidores e passar um Prouni do ensino básico, poderemos descobrir que no fundo do poço da educação brasileira há um alçapão. Dá para vislumbrar o professor com camisa de Che Guevara sendo substituído por um tablet fuleiro, alugado, onde o aluno deve assistir a aulas gravadas sobre gênero e raça e tirar dúvidas num serviço de atendimento ao cliente.
Lei antitruste, outrora símbolo do livre mercado
No Brasil, a sossegada compra da Cogna pela Eleva serve muito bem para mostrar o declínio no discernimento do público e da imprensa. Quando Lemann fundiu Antarctica e Brahma, em 2000, criando assim a Ambev, a preocupação com a formação de monopólio jogou o assunto nos holofotes. Havia o suspense quanto à possibilidade do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) liberar a fusão ou não. Hoje ninguém fala mais de CADE, o que quer dizer que ou ele deve servir só para dar emprego, ou para atrapalhar a vida dos pequenos e médios. Se incomodasse um monopolista, viraria manchete.
Escrevendo sobre isso em jornal ou em rede social, descobri que virou senso comum na direita – até mesmo a autodeclarada conservadora – que a intervenção estatal é ruim. Vivemos agora um anarcocapitalismo cultural. Agora, se você defende que o Estado deve ter o poder de dividir monopólios, isso faz de você um comunista.
Felizmente, para constatar que não estou louca, encontrei um vídeo de Fernão Lara Mesquita tratando da Lei Antitruste como pedra angular da democracia e do livre mercado dos EUA. Fernão Lara Mesquita é um liberal descendente dos Mesquitas, donos do Estadão, jornal notoriamente liberal desde a sua fundação (quanto ao Estadão dos dias de hoje, vale frisar que não está mais nas mãos da família Mesquita).
Vocês podem ouvi-lo aqui. Segundo conta, a inovação tecnológica que foram a grandes ferrovias a ligar aquele país continental teve como consequência o aumento do poder dos donos de ferrovias. Cada território conectado era um território sob o seu jugo. Assim, empresários podiam subornar o dono da ferrovia para monopolizar o acesso a novos mercados, tirando os concorrentes do páreo. Os norte-americanos iam ficando cada vez mais desiguais, com a classe média diminuindo e a pobreza aumentando, ao passo que a renda se concentrava nas mãos dos poucos monopolistas. Para impedir isso, Theodore Roosevelt, que só chegou à presidência por um golpe do acaso, fez valer a Lei Antitruste, segundo a qual nenhuma empresa pode dominar mais que um terço de um setor.
Há não muito tempo, livre mercado presumia livre concorrência. Há não muito tempo, pessoas escolarizadas sabiam o que era dumping, cartel, monopólio, e sabiam que eram crimes. Onde há a noção de crime, aí está a noção de lei. Não vejo muita gente disposta a assumir que quer justiça privada, mas vejo muita gente disposta a tratar o Estado como um mal em si mesmo. Isso quer dizer que são anarcocapitalistas sem saber.
Só o Estado se legitima no povo
Fernão Lara Mesquita acusa o Ocidente de ter desistido da democracia ao aceitar os monopólios. Quanto a mim, no último texto preferi tratar do fim da lei antitruste como uma mostra de que os EUA são, ou pelo menos convivem com, uma ditadura do judiciário. A legislação antitruste é bem anterior a Roosevelt, e, ao meu ver, sua aplicação se deve a um momento efêmero de Executivo forte. Pode até ter havido uma decisão da elite política dos EUA – sempre muito bem financiada por monopolistas – de conviver com monopólios. (O marco dessa decisão talvez seja a Microsoft, do hiper-vacinador e gênio da epidemiologia Bill Gates.) Mas o fato é que, para mudar os rumos do país, não foi necessário passar pelo Congresso. A Nova Escola de Chicago convenceu os juízes da Suprema Corte de que o gigantismo era inexorável (um papo velho o bastante para Chesterton ter combatido). Com a Suprema Corte, resolve-se tudo. Procurando bem, eles encontram desde segregação racial até direito ao aborto na Constituição. Esta, a seu turno, começa com “We the people”, “nós, o povo”.
Nesse regime judiciário, o poder está no intérprete, não no povo. E aos simplórios que amam falar mal do Estado nacional, é bom pedir que ponderem o seguinte: que instituição fundamenta a própria existência nos interesses do brasileiro? Não há nenhum embasamento moral para eu dizer à P&G que sua existência não faz sentido, porque lesa os meus interesses ao me pedir que subsidie modess. A finalidade da P&G é o lucro. A da Microsoft também. Eu não sou acionista da P&G e não tenho autoridade para dizer o que ela deveria fazer. Por outro lado, o Estado, até mesmo quando autoritário, fundamenta a sua existência no bem do povo. Maduro pode estar matando o seu povo de fome, mas nem vai passar pela cabeça dele dizer que não está ali para servir ao povo. É mais fácil usar propaganda e mentir. Quando o Estado é democrático, o povo (em tese) tem não só autoridade moral sobre ele, mas também poder, já que elege os seus representantes. Seja autoritário ou democrático, o Estado é o único gigante que legitima a sua existência no meu bem. Mesmo que fôssemos mendigos e não pagássemos impostos, o Estado estaria obrigado a nos levar em conta, porque somos cidadãos natos. Na verdade, podemos até observar que o progressismo vem corrompendo essa ideia, fazendo crer que as pessoas (e não os cidadãos) merecem algo somente como forma de reparação por danos coletivos (cotas para categorias “estruturalmente oprimidas”). É um pensamento de feições jurídicas que nega os direitos do cidadão e do homem.
Nós não votamos nas empresas do Lemann, nem pretendemos ter legitimidade para reger a Microsoft. Como pode parecer uma boa ideia jogar fora o Estado e ficar na mão de monopólio? O Estado precisa de conserto. E isso não será possível sem o combate aos monopólios.