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Meu primeiro texto sobre um livro anarcocapitalista – Democracia, o deus que falhou, de Hoppe – teve o mérito de fazer com que um aspirante à vereança paulistana, candidato em 2022 pelo PTB a deputado estadual, se declarasse publicamente a favor da escravidão. Trata-se de Paulo Kogos. Vocês podem ver aqui e aqui. Agora ele está filiado ao PRD, partido resultante da fusão entre PTB e o Patriotas. Hoje, portanto, vou tratar do livro O mínimo sobre o anarcocapitalismo (O Mínimo, 2023), do Sr. Kogos. Além de segundo livro anarcocapitalista, este é o segundo livro desse selo que eu resenho, tendo sido o primeiro O mínimo sobre conservadorismo, de Bruno Garschagen.

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O livro é composto por uma Apresentação e três capítulos: “A essência do anarcocapitalismo”, “Economia do anarcocapitalismo”, “Aplicações setoriais do anarcocapitalismo”, “Estratégias para uma contra-revolução anarcocapitalista”.

Já no começo da Apresentação, percebe-se que ele não faz a menor ideia do que é democracia: “Por que você abriu este livro? Os políticos, seus ‘representantes’, já não decidiram por você e por sua família sob qual regime deverão viver?” (p. 8 ) Ora, a ideia de representação numa democracia é justamente a de representação política. Você pode votar num candidato anarcocapitalista, se houver tal candidato. O Brasil já fez um plebiscito para decidir sob qual regime quer viver – se sob uma república presidencialista, uma república parlamentarista ou sob uma monarquia. O mero fato de inexistirem candidatos anarcocapitalistas em todos os estados do Brasil, ou de eles não terem sequer um partido para chamar de seu, mostra que o povo está bem representado pelos seus representantes, pelo menos no que concerne à não adesão ao anarcocapitalismo. Na própria Argentina, a eleição de Milei pode ser melhor explicada pela aversão ao grupo político de Alberto Fernández do que pela adesão consciente e informada ao anarcocapitalismo. Quero ver se Kogos vai fazer campanha contando que a sua defesa da liberdade inclui a volta da escravidão. Por ora, o encanto da direita internacional com Milei está parecendo o da esquerda internacional com Cuba: todo o mundo acha muito bonito no país dos outros, e ninguém se muda para lá. Enquanto a esquerda tem os embargos para explicar eternamente qualquer coisa ruim em Cuba, a direita tem o fantasma do peronismo.

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Continuando: “O seu [i. e., do leitor] interesse por este título já demonstra uma justa rebelião contra aqueles que lhe negam o incentivo para exercitar o discernimento sobre as questões políticas e o direito a aplicar as conclusões à sua própria vida” (p. 8). Já vimos em Hoppe que existe entre os ancaps a prática de adular o alvo de sua propaganda, alegando que ele é muito inteligente, quiçá membro de uma elite, pelo mero fato de simpatizar com o anarcocapitalismo ou virar ancap. Mas vemos também uma profunda incompreensão da democracia, digna de um foucaultiano de DCE. Na democracia, somos todos convidados a pensar sobre a vida social, de aspectos que vão desde a coleta de lixo (municipal) até as preferências macroeconômicas ou ideológicas do chefe do Executivo nacional. Mesmo que a democracia não nos instasse a isso e, digamos, vivêssemos numa próspera e pacífica monarquia, teríamos a nossa vida privada para cuidar. Ao contrário do que dizem os foucaultianos de plantão, nem tudo é político.

Quero ver se Kogos vai fazer campanha contando que a sua defesa da liberdade inclui a volta da escravidão

Sigamos ainda: “Quando as suas escolhas sobre com quem se associar e a quem se submeter são nulificadas pela força bruta de um tirano,” – não deixando a gente virar escravo, por exemplo – “pela esperteza de uma oligarquia ou pela superioridade numérica das massas, resta a única escolha que ninguém pode impedir: não consentir com o status quo. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, atribui ao sábio o conhecimento daquilo que é melhor para si, mas lembra que os políticos costumam se intrometer nisso. É nesse momento que o incentivo à sabedoria acaba, o que o filósofo demonstra logo em seguida ao citar o poeta Eurípides: ‘Mas para que dar-me ao trabalho de ser sábio, se como parte do numeroso exército obteria sem esforço um quinhão igual?’” (p. 8-9).

Aqui é aquele momento em que a gente arqueia as sobrancelhas e se pergunta de onde ele tirou isso. Em minha formação, especializei-me em filosofia moderna, mais precisamente em Hume. De todo modo, tenho cultura geral suficiente para saber que não faz o menor sentido pensar num sábio avesso à política em Atenas, quando a cidadania era um privilégio de poucos e “o político” e “o sábio” tendiam a ser a mesma pessoa (ou no mínimo o sábio era um estrangeiro que dava aula para cidadãos com grandes aspirações políticas). Se fosse Platão, eu até entenderia que tipo de raciocínio Kogos fez, já que Platão queria ser o Rei Filósofo e mandar em todo o mundo, dispensando políticos. Mas Aristóteles? Fiquei intrigada e, como estava sem referência, pedi ao Sr. Rodrigo Pedroso, que fez mestrado sobre o assunto (e transformou a tese num bom livrinho introdutório: A divisão dos regimes políticos em Aristóteles, Instituto Antônio Vieira, 2022), que achasse pra mim a passagem aludida.

Ele achou a passagem e a edição: trata-se do 1142a, Livro VI, capítulo 8 da Ética Nicomaqueia, que saiu no volume IV da Coleção Pensadores de capa azul, com tradução de Gerd Bornheim e Leonel Vallandro, feita a partir da tradução inglesa de Sir David Ross. A citação de Eurípides dessa edição está igualzinha à de Kogos. Nessa tradução, segundo me explicou Rodrigo, φρόνησις (lê-se “frónessis”) nesse trecho virou “sabedoria prática”, ao passo que a tradição romana desde Cícero, passando por São Tomás de Aquino, traduz φρόνησις como prudentia, que em português deu em “prudência”. É preciso lembrar que Aristóteles é mais velho que Jesus Cristo; pegar uma passagem qualquer de uma tradução qualquer e tirar de contexto é uma temeridade – dá até pra concluir que Aristóteles era ancap. Eu não estou querendo dizer que só quem tem formação acadêmica pode ler Aristóteles. Existem autodidatas absolutamente fora de série como Carlos Alberto Nunes (1897 – 1990), o médico maranhense que traduziu Platão inteiro direto do grego. Kogos, porém, não chega aos seus pés.

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Nem dá para culpar Ross pelo erro de Kogos. Esse trecho da obra de Aristóteles contém um raciocínio do filósofo relativamente famoso, a saber: o de que “sabedoria prática” (ou prudência, na tradução hoje menos usada) não se ensina em aulas; é preciso experiência de vida. Um jovem pode estudar para aprender geometria, mas não para aprender a ser prudente e governar a própria vida. E, como disse Rodrigo, “a prudencia é a virtude pela qual o homem governa seus próprios atos, porque é perfectiva da razão pratica. O que Aristóteles quer mostrar aí é que, além da prudencia pura e simples, existem outras especies de prudência, que são a familiar, a legislativa e a politica. A prudencia politica se divide em deliberativa e judicial.” Ou seja, Kogos pegou um breve comentário com um lamento de Eurípides e distorceu tudo.

Pois bem, senhoras e senhores. E isso foi só o começo da Apresentação. Arqueei as minhas sobrancelhas diversas vezes ao longo do livro, pois é tudo assim: segundo fulano, a batatinha quando nasce, se esparrama pelo chão – sem fonte para o leitor entender de onde ele tirou que fulano pensa isso acerca do tubérculo. E o fulano pode ser desde o Rasta do Brasil Paralelo até São Bernardino de Siena, que era ancap também. Cito: “A contribuição de economistas escolásticos como São Bernardino de Siena para a defesa da propriedade privada, dos lucros financeiros e do livre comércio é o que ajuda os pobres e não o discurso demagógico e populista de hereges da atual Teologia da Libertação. O teólogo São Pedro Fabro, que viveu no século XVI, percebeu a íntima relação entre o empreendedorismo e o aumento das oportunidades e do padrão de vida dos pobres. Ele ressaltava a importância da caridade e das esmolas, mas via na liberdade de empreender a solução definitiva para a pobreza” (p. 97).

Exasperada com a imagem de dois santos farialimers, um na Idade Média e outro no albor da modernidade, corri à Wikipédia para ver quais são as obras acessíveis desses santos que Kogos possa ter lido. Por acessíveis eu entendo obras editadas e traduzidas para alguma língua viva, pois esses autores escreviam em latim. O santo medieval ainda é pior, porque quem souber latim (o que eu não creio ser o caso de Kogos) ainda consegue achar edições razoavelmente legíveis da era da imprensa em sites como o Internet Archive, que tem edições digitalizadas de livros antigos que caíram em domínio púbico. Mas pergaminho medieval não dá para ler só sabendo latim, não.

No verbete lusófono de São Bernardino, não encontrei menção a obra editada. Encontrei somente uma edição dos Sermones de evangelio aeterno do século XV digitalizado na Biblioteca Nacional portuguesa. O leitor pode clicar e tentar decifrar. O mesmo verbete relata também que ele tem um livro sobre economia intitulado De contractibus et usuris, Esse é um raro caso em que um verbete lusófono está com documentação superior ao anglófono, no qual não descobriríamos o título latino de sua obra sobre contratos e usura. Bom, mas no verbete em inglês aprendemos que, segundo o anarcocapitalista Murray Rothbard, São Bernardino era super prafrentex no que concerne a juros e propriedade privada. No entanto, todos os verbetes assinalam logo no começo que São Bernardino de Siena era um antissemita virulento que condenava a usura. Vai saber o que Murray Rothbard leu… Ele sabia latim? Procurando na Amazon em inglês, São Bernardino de Siena parece ter sido traduzido mais para o italiano, e a obra sobre usura parece ter sido preterida.

Ou seja, Kogos pegou um breve comentário com um lamento de Eurípides e distorceu tudo

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São Pedro Fabro, jesuíta saboiano, foi canonizado por Francisco em 2013. Há mais informações sobre a obra dele no verbete em francês. Como bom jesuíta, ele escrevia para o memorial da ordem em latim. Há uma tradução para o francês das suas contribuições, publicada em 1959. Se Kogos leu, eu quero ser amiga dele; pois ele, além de saber francês, deve ter uma biblioteca pessoal de respeito, cheia das raridades bibliográficas.

Kogos cita os santos farialimers no capítulo sobre economia. Mas o capítulo sobre a essência do capitalismo, que vem antes, é o mais comprometedor. Nas primeiras páginas (da 16 à 18), Kogos reivindica a autoridade do católico Chesterton, Santo Inácio de Loyola, da “tradição política aristotélico-tomista”, de Santo Agostinho, da Bíblia, de Pseudo-Dionísio Aeropagita, de São Tomás de Aquino e de Murray Rothbard. Todos esses não têm contradição alguma no que concerne à filosofia e à economia. Cito um trecho para dar uma ideia do continuum inventado por Kogos: “Um livre mercado, na concepção anarcocapitalista do termo, é definido moralmente. Ele não existe quando a regra moral de que a propriedade privada seja dirigida ao bem comum, proposta por Santo Tomás de Aquino, passa a ser violada de forma sistêmica e institucionalizada.” Até São Tomás era ancap!!

Kogos se gaba, publicamente, de ser mais católico que o papa, já que se declara um sedevacantista. Os sedevacantistas “normais”, digamos assim (os que existiam antes da internet) costumam considerar que a Sé está vacante desde a morte de Pio XII em 1958. Eu tenho uma imensa curiosidade para saber qual é o último papa legítimo segundo Kogos. Para ele reconhecer a santidade de Pedro Fabro, ele precisa reconhecer a autoridade de Francisco, que o canonizou. Por aí, ele não é um sedevacantista porque Francisco é o papa atual. Mas se ele contraria a Doutrina Social da Igreja (que decididamente não é ancap), então a Sé deve estar vacante há mais que um século. Quiçá a Sé nunca nem teve Papa, e no fim das contas o que Kogos faz é livre exame de fontes católicas: age como um protestante muito doido diante de material católico canônico, seja do papado de Francisco ou dos primeiros dias da Igreja.

Há outro aspecto no qual Kogos parece protestante. Uma típica e elementar confusão de neopentecostal presente no seu texto é a de judeu com cristão. Ora, tanto Rothbard como Von Mises eram judeus não somente do ponto de vista étnico da matrilinearidade, como também da consciência individual. Como é possível querer dizer que alguém é mais católico do que o papa porque segue a autoridade moral e filosófica de economistas judeus do século XX?!

Até falando da própria família, Kogos obscurece as coisas. Os pais dele são figuras públicas; são um casal de médicos muito destacado na comunidade judaica paulista. Kogos é judeu segundo o critério étnico da matriliniearidade, mas omite os pais no livro para falar do avô Hugenneyer como um católico devoto e citar o tio-bisavô Álvaro de Magalhães. Todo converso tende a ser mais espalhafatoso do que aqueles criados numa religião – isso vale até para ateu; as mais chatas entre as Testemunhas de Dawkins amiúde vêm de lares muito religiosos. Mas que o converso calce as sandálias da humildade e não queira saber mais do que todas as autoridades religiosas do novo credo.

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De todo modo, a confusão fundamental de Kogos é a mesma que já descrevi em Hoppe, e que já vi constar também em Rothbard (cuja Ética, que folheei, eu comprei para resenhar), qual seja: chamar de “ordem natural” a competição. Isso é darwinismo e é originário do mundo protestante anglófono. O pouco que sei do judaísmo inclui que a sacralidade da Lei, recebida de Deus e transcrita, é algo central na religião. Lei no singular, e com L maiúsculo. Assim, nada menos judaico do que a seguinte passagem: “a possibilidade resistir à decisão de um juiz depõe contra a eficácia das leis. Ora, o anarcocapitalismo permite a concorrência entre árbitros, instituições e práticas legais reduzindo este risco moral a um mínimo já que a plasticidade das jurisdições serviria justamente para evitar o dilema moral entre a resistência individual e a autoridade de uma decisão ou contrato” (p. 38). Pode-se fazer qualquer tipo de lei maluca, que no final o que der certo é a manifestação da “ordem natural”. Isso é darwinismo social, que não casa com catolicismo, nem com judaísmo. Casa, porém, com calvinismo, que tem uma ideia comparativamente anárquica e individualista de Povo Eleito. (Uma coisa é uma etnia definida dizer-se Povo Eleito. Outra, completamente diferente, é indivíduos dizerem que eles, e não os seus parentes, compõem por vontade própria um Povo Eleito.)

Espero ter mostrado que o livro de Kogos é abaixo de crítica. Espero que essa pessoa confusa consiga se orientar em sua vida privada, e que fique bem longe da vida pública enquanto isso não acontecer.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]