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Um item essencial ao neoesquerdismo é a vontade de ser moralmente superior aos cristãos. E como eles provam isso? Adotando uma moral materialista e proletária tirada de algum marxista? Não, pois são nova esquerda, e a nova esquerda não lê Marx. O modo como eles provam isso é pinçando falas de Jesus na Bíblia, ou então soltando frases açucaradas sobre amor supostamente cristão, de modo que todo o mundo que não for um abraçador de árvores fofinho é um mau cristão. Vejam bem, o cristianismo surgiu na Antiguidade, reinou na Idade Média, então é altamente improvável que o entendimento do cristão como um fofinho que distribui abraços tenha tido validade histórica. Um mártir da Antiguidade, por sua disposição a morrer pelo cristianismo, na certa passaria por um extremista e um teocrata radical. Um cruzado medieval, por sua beligerância, logo seria enquadrado como fascista. Essa concepção de cristianismo como fofura e pieguice deve vir de alguma seita protestante dos EUA que nunca enfrentou guerra religiosa. Hillary Clinton era uma fervorosa devota da Igreja Metodista Unida e, a acreditarmos em Jonah Goldberg, seu comunitarismo piegas é uma versão laica da religião que professava. Como nos trópicos tudo se copia, a nova esquerda, e até a esquerda católica, resolveram que ser cristão é ser um bleeding-heart liberal – algo como “progressista de coração sangrando”, que é como os norte-americanos chamam a esquerda piegas lá deles. As táticas argumentativas são pouco discerníveis de chantagem emocional. Você é contra a distribuição de modess grátis? Então as meninas pobres não vão ter dignidade (sic) para menstruar. Vão ter que usar miolo de pão (sic!). Vão deixar de ir à escola. Você é contra quotas raciais? Um bilhão de negros morrem a cada minuto no Brasil por causa do racismo estrutural. Suas mãos estão sujas de sangue! Você é contra o aborto seguro e legal? O aborto é uma questão de saúde pública! Trilhões de mulheres morrem a casa segundo no Brasil enfiando miolo de pão, aliás, cabide e até fuligem de fogão, como eu ouvi em Jaguaquara na Bahia. As ricas fazem aborto e viram CEOs. As pobres morrem. Assassino! Não adianta tentar usar a razão. Se você fizer isso, é frio e insensível. A única reação aceitável é ir aos prantos e se arrepender da opinião prévia, aceitando logo todas as leis que se queira passar.
A Igreja católica de não muito tempo atrás
A Igreja católica sempre foi percebida pelo mundo protestante e rico como atrasada, obscurantista, rudimentar – mais ou menos como o universitário progressista vê os religiosos como um todo hoje, por mais que estudados. Parte desse atraso, obscurantismo e rudeza consistiram, durante o séc. XX, na recusa de pautas progressistas, tais como: a contracepção, o aborto, a eutanásia, a esterilização compulsória e eugênica, a proibição eugênica de casamentos interraciais, o racismo científico. Uso a expressão “progressista” por mera precisão histórica, pois a era presidida por esse movimento de elites se chamou Era Progressista, nos EUA, um país de formação protestante, no qual catolicismo era coisa dos pobretões irlandeses e italianos. A mesma ideologia reapareceu no final do século XX com rebatizando-se de “liberalismo”, mas o próprio nome “progressismo” nunca foi abandonado.
A própria oposição entre ser um adepto da Ciência e da Religião é uma decorrência de um particularismo dos EUA, onde o literalismo bíblico obriga ao criacionismo, por exemplo. A Igreja desde a Idade Média aderia à “ciência”, que era o aristotelismo. O problema do geocentrismo não decorria de literalismo bíblico, mas sim do fato de a Igreja ter adotado o pagão Aristóteles como autoridade máxima em questões filosóficas. A própria universidade é uma criação católica e medieval.
Outra diferença que vale ser pontuada entre o catolicismo e o protestantismo é que este último, uma vez que se partiu numa miríade de seitas, não tem uma opinião uniforme. O protestantismo é “homofóbico”? O universitário jura que sim, mas a Igreja Anglicana dos EUA, protestante, já se converteu num puxadinho do movimento LGBTQ. Silas Malafaia é protestante, a Igreja Anglicana é protestante, a Bola de Neve Church é protestante. Nos EUA, a luta contra o aborto conta com grande mobilização protestantes evangélicos – mas há protestantes favoráveis também. A Igreja Católica Apostólica Romana, não. Nela, não vale a autoridade de trechos bíblicos citados isoladamente; vale a autoridade do Papa, que, a seu turno, está sentado sobre uma ortodoxia construída através de vários séculos. Importa notar que o Papa não é considerado infalível 24h por dia, mas somente quando está falado ex cathedra. E por mais que Bergoglio seja propenso a afetações progressistas, fato é que o Papa nunca liberou o aborto.
Católicos progressistas enganam o eleitorado?
Recentemente estourou o conflito entre a cúpula e a base da Igreja católica no Brasil. Como mostrou esta coluna, os leigos do Centro Dom Bosco, apoiadores entusiasmados do católico Bolsonaro, já traziam o bispo do Cazaquistão para o Rio de Janeiro por não se sentirem representados pelos bispos da CNBB. A organização é contra o aborto, contra a legalização das drogas e contra o comunismo – acredita na Profecia de Cimbres, uma espécie de versão brasileira do Milagre de Fátima ocorrida no sertão pernambucano em 1936. Segundo ela, o Brasil tem que rezar e se penitenciar para o comunismo não banhar de sangue o nosso país.
Os membros do Centro Dom Bosco foram a Aparecida rezar o Rosário com Bolsonaro. Segundo relatam, a reitoria de Aparecida fez o possível para atrapalhar o evento, Bolsonaro acabou não indo para a reza, e eles (isso está documentado no vídeo) eram perturbados pelos sinos enquanto rezavam. Os sinos tocavam ininterruptamente, competindo com o microfone do organizador.
A lacração do bispo durante a celebração já foi apontada por observadores mais atentos do que eu. Quero apontar apenas que, num contexto eleitoral, o bispo adere à agenda desarmamentista das ONGs progressistas (“pátria amada não será armada”), mas não dá um pio sobre o aborto. Sabemos que Bolsonaro é contra o desarmamentismo e o aborto, e que Lula considera que o aborto “deveria ser transformado em uma questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha”, como disse em abril deste ano na Fundação Perseu Abramo. Noutras palavras, Lula adere à agenda das ONGs progressistas não só na questão do desarmamentismo, como também na defesa de que o aborto seja considerado um direito humano.
Mas calma, que piora. Marcia Tiburi, um estereótipo ambulante que goza de um cantinho especializado nas Frases da Semana, tem usado o Twitter para comparar a ascensão de Bolsonaro à de Hitler. O Cardeal e Arcebispo D. Odilo Scherer, após uma série de tuítes defensivos garantindo que escreveu muito contra o aborto, deu esta tuitada: “Para ser mais claro: parece-me reviver os tempos da ascensão do fascismo ao poder. E sabemos as consequências…”. É o tiburismo cultural tomando conta da cúpula católica brasileira.
O episódio do Centro Dom Bosco, aliado à aparição do Pe. Kelmon (que é de uma igreja obscura), foi muito usado para dizer que bolsonaristas odeiam padres e são falsos católicos. O teólogo por Roma e professor de comunicação da UFBA Wilson Gomes tuitou assim: “Mandem mais vídeos de bolsonaristas xingando padre. Isso tá fazendo um estrago nas intenções de voto em Bolsonaro lá na minha aldeia que nem lhes conto.” A “aldeia” dele deve ser a sua terra natal, uma cidade pequena no sul da Bahia que deve ser orgulhar do quão longe chegou Wilson Gomes. E o Nordeste é a região mais católica do Brasil.
Então vocês imaginem o tamanho do engodo que é imposto a essa população: os católicos que seguem o Vaticano são falsos e fascistas; Lula, que defende o direito ao aborto, é que é um bom católico. Wilson Gomes pode mandar vídeos sobre como os católicos bolsonaristas são maus; os bolsonaristas é que não podem mandar o vídeo em que Lula diz que ninguém deveria ter vergonha de fazer aborto, porque o TSE não deixa.
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“Ninguém é a favor do aborto”
Justiça seja feita, a CNBB, por meio da pessoa do D. Odilo, de fato se posicionou contra o direito ao aborto. Mas, porém, contudo, todavia, quando se trata de influir nas eleições, os bispos não movem uma palha para impedir o direito ao aborto – ao contrário, já que atacam Bolsonaro.
A justificativa na ponta da língua dos wilsons gomes da vida é importada dos EUA. “Ninguém é a favor do aborto”, dizem, antes de entrar a ladainha dos zilhões de mulheres que morrem em abortos clandestinos porque iam fazê-lo de qualquer jeito. Já que as mulheres abortam de qualquer jeito, o bleeding-heart liberal quer que haja aborto público, gratuito, de qualidade, para mulheres. Como “ninguém é a favor do aborto”, teremos certeza de que adolescentes desmioladas (pleonasmo), mulheres drogadas ou irresponsáveis em geral jamais usariam e abusariam de algo público, gratuito, de qualidade, totalmente seguro (segundo a propaganda).
Se não bastasse o bom-senso, a macabra repercussão da reversão de Roe v. Wade no meio feminista e empresarial não deixaria crermos nisso. Vimos que o aborto de fato é tratado como um meio de contracepção, com as empresas passando-se por filantropas por custearem as viagens para o aborto das suas funcionárias – amparar a maternidade, que é bom, nada. Será que elas deixariam uma grávida que não quisesse abortar embolsar as despesas do aborto?
Virada na cultura
Durante as eleições de 2010, Serra, ex-presidente da UNE, passava por direitista por adotar a pauta contrária ao aborto. Talvez tenha sido nessa época que surgiu o “ninguém é a favor do aborto”, com Dilma dizendo: “Não acho que nenhuma mulher seja a favor do aborto. Como presidente da República, eu tenho de encarar o fato que há milhares de jovens, de adolescentes, que, diante do aborto, desprotegidas, fazem e adotam práticas, por que elas estão abandonadas.” Daí entra o papo de questão de saúde pública, que é abrir as portas (e os cofres) para a Planned Parenthood.
Seja como for, agora, em 2022, Lula está correndo atrás de todos os meios possíveis para se apresentar ao eleitorado como contrário ao aborto e até à possibilidade de se mudar de sexo. Foi o que ele fez no Flow há pouco, com direito à imprensa amiga declarando aos quatro ventos que Lula é “contra o aborto”.
Mas ele é contra o aborto “pessoalmente”, e, segundo alega, quem tem que dizer se pode ou não abortar é a lei. Dada a anomia jurídica reinante, essa não é uma posição muito animadora.
Em sua declaração contra o aborto, a CNBB disse que “ninguém poderá, no futuro, acusar a mesma Igreja de não ter falado claramente e defendido o primeiro direito dos nascituros: o respeito à sua vida.” Se aceitarmos a premissa de que a CNBB tem alguma relevância nas audiências do STF, é verdade. Mas eu não consigo imaginar Barroso ou Fachin deixando trilhões de mulheres morrerem porque representantes do heteropatriarcado capitalista querem controlar os corpos das mulheres.
Se havia uma hora de a CNBB tomar qualquer ação eficaz, era nas eleições. Assim, sua carta serve para lavar as mãos.