Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Entretenimento ou propaganda?

Madonna: um marco na propaganda da prostituição como ideal feminino

Madonna entre incontáveis pretendentes dispostos a pagar. (Foto: Reprodução Youtube)

Ouça este conteúdo

Os termos “propaganda” e “marketing” têm uma fortuna curiosa. “Propaganda” é um gerundivo latino do verbo propagare, propagar. Para ligar o nome à coisa, aponto um gerundivo famoso: Amanda, nome próprio que é, ao mesmo tempo, o gerundivo do verbo amare. Significa “a ser amada”. Propaganda, ao seu turno, significa “a ser propagado”. Assim, faz perfeito sentido falar tanto em propaganda política quanto em propaganda comercial, já que tanto os políticos quanto os comerciantes querem propagar suas coisas.

Já a etimologia de marketing não tem mistério nenhum. Vem de “mercado” em inglês. Em português, curiosamente veio a dar em “marqueteiro”. Não existe marqueteiro de comerciantes; só existem marqueteiros de políticos. São profissionais que pegam um produto acabado – um homem – e tentam vendê-lo como alguém digno do seu voto. Ele é um cara legal, todo mundo gosta dele e ele vai tapar os buracos da sua rua, além de agradar uma série de nichos (sindicalistas, por exemplo). O marqueteiro não discute ideias; logo, não faz sentido enxergá-lo como um propagandista.

Embora “marqueteiro” seja uma palavra do português, creio que o fenômeno etimológico sirva para expor o mal-estar das democracias ocidentais. Os políticos podem vender a própria imagem. Mas, se fizerem propaganda das suas ideias, isto é, se fizerem propaganda política, aí incorrem num risco cada vez maior de praticar o “discurso de ódio”.

Bolsonaro defendeu ideias políticas contrárias a muitas das ideias políticas que gozam de hegemonia na mídia e na política institucional. Ele fez propaganda política. E foi exceção

Bolsonaro foi o primeiro e único presidente da Nova República a se eleger sem alçar às nuvens a cotação de algum gênio do marketing eleitoral. E sua legitimidade é negada por causa do conteúdo da sua mensagem. Goste-se dele ou não, é preciso admitir que Bolsonaro defendeu ideias políticas contrárias a muitas das ideias políticas que gozam de hegemonia na mídia e na política institucional, tais como: que a segurança do cidadão deve ser mais valorizada que o conforto dos bandidos; que a religiosidade cristã não deve se confinar aos locais de culto e deve pautar os valores públicos; que as drogas não devem ser legalizadas; que o aborto não deve ser descriminalizado… Bolsonaro fez propaganda política. E foi exceção.

Assim, podemos dizer que da política democrática ocidental, pelo menos nos dias de hoje, espera-se tudo, menos política. Deve-se ser um gestor apolítico. Se elegermos alguém que não seja corrupto, alcançou-se o Nirvana da democracia.

A política está em tudo, menos na política

Por outro lado, também são ideias políticas as ideias contrárias, tais como: que a empatia com as vítimas da sociedade merece toda a atenção; que a fé é um assunto estritamente privado a se manifestar somente dentro de espaços institucionais; que as drogas devem ser legalizadas junto com políticas arrojadas de “redução de danos”; que o aborto até as vésperas do nascimento é um direito inalienável da mulher… Creio que só o PSol ouse afirmar tais coisas perante o seu eleitorado (nos EUA, a coisa é bem diferente). Do progressismo, a única coisa que cola mesmo com o público brasileiro são os auxílios econômicos para os pobres. Por isso os candidatos progressistas ficam dando evasivas quanto ao aborto e às drogas.

Ao menos no Brasil, os políticos costumam mais mostrar conformidade ao progressismo do que propagandeá-lo ativamente. Quem faz propaganda ideológica todos os anos, e sem necessidade de horário eleitoral, é a mídia, com sua cultura de massa. A política se afastou do seu pretenso habitat – a política institucional, na qual políticos disputam cargos eletivos – e tomou todo o resto. Tudo foi se tornando propaganda política, sem que as pessoas chamassem a coisa pelo nome.

Revolução cultural

É patente que houve, no Ocidente, uma Revolução Cultural deflagrada na década de 1960, com o movimento da contracultura nos EUA e o maio de 68 na França. No rastro dessa revolução, a Nova Esquerda começou a substituir a esquerda comunista, agora tachada (não sem razão) de stalinista. Fosse de esquerda ou de direita, oriental ou ocidental, branca ou preta, rica ou pobre, tiete da Emilinha Borba ou da rival Marlene, uma mulher dos anos 50 jamais, em hipótese alguma, acreditaria que trocar o próprio corpo por dinheiro é algo empoderador e libertador, e que ter marido e filhos é ruim. Nem o amor livre dos anos 70 chegava à apologia da prostituição; afinal, o amor livre se pretendia amor grátis.

Para as mulheres mudarem de ideia e adotarem um sistema de valores tão contrário à natureza, foi preciso que a água da propaganda batesse tanto na pedra da consciência até que ela furasse.

A Nova Esquerda nasceu também obcecada pelo totalitarismo. Embora denunciasse Stálin como um desvirtuador do comunismo, dedicava-se sobretudo a análises culturais catastrofistas baseadas na ascensão de Hitler. E um dos assuntos em voga era o efeito da propaganda totalitária sobre as massas.

Fosse de esquerda ou de direita, uma mulher dos anos 50 jamais, em hipótese alguma, acreditaria que trocar o próprio corpo por dinheiro é algo empoderador e libertador, e que ter marido e filhos é ruim

Mas, porém, contudo, todavia, era como se só o Estado pudesse fazer propaganda. E a indústria do entretenimento (que tomou o lugar das artes) não pudesse desempenhar o mesmíssimo papel, a serviço de organizações privadas.

Material Girl, um marco

Penso que é possível fixar um marco da apologia da prostituição como o trabalho natural da mulher: é o lançamento do clipe Material Girl, de Madonna, em 1984. Nele, Madonna é admirada por todos os homens e por eles disputada: o clipe abre com a jovem se queixando à amiga de “ele” ainda estar atrás dela, e ter dado um colar cheio de diamantes. O homem que está na porta à sua espera ouve a conversa e desiste de entregar o seu presente. A música começa com Madonna cheia de joias e cercada de homens bonitos com coraçõezinhos na mão. Os versos: “Alguns meninos me beijam, outros me abraçam / Acho que são legais / Se eles não me derem o crédito certo” – e aqui ela gesticula esfregando as pontas dos dedos para o expectador – “eu só vou embora”. Acho muito improvável que à maioria das jovens em 84 não parecesse repulsivo ser abraçada e beijada por uns e outros, com peitões quase à mostra. Mas hoje os camarotes VIPs estão aí. Corta para uma cena num carro e a letra continua: “Eles podem implorar e suplicar / Mas não podem ver a luz, é certo / Porque o rapaz com dinheiro vivo é sempre o Cara Certo”. Esta é a crença de uma porção de jovens misóginos da internet. Vale ressaltar que Madonna não escrevia as próprias músicas e Material Girl foi composta por dois homens, Peter Brown e Robert Rans. Não creio que eles tenham muito respeito por mulheres.

Em seguida entra o refrão e volta o cenário em que Madonna está coberta de joias e rodeada por um balé de pretendentes, que mostram mais joias para ela. O refrão: “Porque vivemos num mundo material / E eu sou uma moça material / Vocês sabe que vivemos num mundo material / E eu sou uma moça material”. Até o fim da música, Madonna dança com os bailarinos-pretendentes, às vezes mais de um ao mesmo tempo, num momento até chovem dólares e um homem rola a escada chutado. Traduzo o resto da música, omitindo o refrão: “Uns meninos romanceiam, outros dançam devagar / Tudo bem, por mim / Se eles podem aumentar meus benefícios, então tenho que deixá-los à vontade / Uns meninos testam, outros mentem / Mas eu não os deixo brincar de jeito nenhum / Só os meninos que economizam seus tostões aumentam minha poupança / A experiência me enriqueceu e agora eles correm atrás de mim.” A música termina com um coro de vozes masculinas cantando que vivemos num mundo material. Um homem paga um velhinho com um maço de dólares e em seguida aparece Madonna.

Material Girl é uma promessa às mulheres de que, se elas forem bonitas e desinibidas, multidões de pretendentes irão se atirar aos seus pés, e que é por meio da pilhagem desses pretendentes que elas conseguirão manter a própria vida financeira no futuro

É propaganda ideológica

O que temos nesse clipe não é uma noção que se pretenda rebelde e contracultural. Em primeiro lugar, não é rebelde, é mainstream. Em segundo, uma explanação que se pretende objetiva sobre como funciona este “mundo material” e sobre como uma mulher supostamente bem sucedida se porta. É uma promessa às mulheres de que, se elas forem bonitas e desinibidas, multidões de pretendentes irão se atirar aos seus pés, e que é por meio da pilhagem desses pretendentes que elas conseguirão manter a própria vida financeira no futuro.

A material girl interpretada por Madonna é infinitamente mais semelhante ao atual “empoderamento feminino” de hoje do que Janis Joplin ou qualquer comunista. O feminismo marxista prometia às mulheres uma carreira e a oportunidade de serem excelentes profissionais bem remuneradas. O amor livre não era materialista, e é coerente com a mulher que surgisse do feminismo marxista: uma vez que homem e mulher são, em tese, igualmente capazes de ganhar dinheiro trabalhando, e igualmente desejosos de sexo, não há por que o homem comprar sexo e a mulher vender sexo. Mas a “empoderada” não é apresentada como uma profissional exemplar; é apresentada como uma mulher sexy que ostenta artigos de grife. É um mistério muito grande perguntar qual é a relação entre ser sexy e ter artigos de grife?

Então ficamos assim: a indústria do entretenimento e a mídia podem divulgar peças de propaganda segundo as quais as mulheres devem ser prostitutas; mas, se as lideranças religiosas e os políticos disserem que as mulheres não devem ser prostitutas, aí é ataque ao Estado laico e discurso de ódio.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.