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Esta semana, Sílvio Almeida ganhou atenção no Twitter com uma troca de mensagens pública com a deputada Sílvia Waiãpi. Primeiro ele disse: “Solicitei à AGU que avalie a tomada de providências legais diante de mais uma tentativa de vincular Marajó ao grave problema do abuso e exploração infantil. É preciso saber a quem interessa a divulgação de mentiras sobre a atuação dos governos na região.” A deputada replicou: “O que você chama de difamação, aqui no Norte nós chamamos de ‘REALIDADE’.” A tréplica foi a seguinte: “Deputada, sabemos que estes fatos ocorrem e devem ser apurados com responsabilidade, sem expor crianças ou estigmatizar moradores da região. Faça o seguinte: reúna todas as provas e envie às autoridades competentes. É nosso dever – inclusive da senhora – tomar providências.” Que negócio estranho, hein? Vá lá que as autoridades devam, em tese, apresentar denúncias sobre coisas específicas; ainda assim, a postura de Sílvio Almeida foi totalmente desproporcional e despropositada. Se há uma denúncia, concreta ou vaga, de exploração sexual de menores, o pudor manda o ministro pelo menos fingir preocupação com isso. Mas não: ele preferiu abordar o grave problema das fake news – grave, claro, para os identitários deste Brasil não tão varonil.
De todo modo, tentei entender o que aconteceu exatamente. Porque, ao que parece, reclamar da exploração sexual infantil em Marajó é meio que como reclamar do tráfico no Complexo da Maré: todo o mundo (menos Sílvio Almeida) sabe que tem, todo o mundo (menos Sílvio Almeida) lastima, todo o mundo (menos Sílvio Almeida) diz que tem que acabar, mas ninguém tem uma bala de prata para o problema. Damares fez um programa, o governo Lula chamou de inútil e fez outro – que ninguém sabe se será útil. Digo que é mais ou menos como o problema do Complexo da Maré porque este é famoso, fica numa metrópole e dá na TV para o Brasil todo. Já o problema de Marajó, aparentemente, é conhecido por quem conhece Marajó, ou por quem lida com o combate à exploração infantil no Brasil. O tema foi trazido ao palco nacional por Damares, ex-ministra notoriamente evangélica do governo Bolsonaro. Agora, volta à tona mais uma vez por meio dos evangélicos.
Nas redes sociais, políticos evangélicos estavam triunfais dizendo que Damares foi vingada, pois agora tinha-se comprovado que ela tinha razão. Diante disso, achei que havia alguma denúncia específica. O que entendo por denúncia específica é algo que indique responsabilidades individuais, ou que pelo menos traga algum fato novo. Do contrário, fica parecendo aquele meme dos primórdios da internet brasileira: “crime ocorre nada acontece feijoada”.
Pela matéria desta Gazeta, não houve denúncia específica: tudo começou com aquilo que noutros tempos seria chamado de “canção de protesto” cantada num “festival de música”. Onde, 50 anos atrás, poderia estar Geraldo Vandré cantando uma música com crítica social e discursando sobre as mazelas do povo sofrido do Norte, tivemos a cantora evangélica Aymée no Dom Reality, um programa de YouTube de música evangélica. Sua música “Evangelho de fariseus” é uma típica música de crítica social, que condena a ganância dos pastores e contrasta as frivolidades das igrejas com problemas sociais prementes, como o tráfico de crianças na Ilha de Marajó.
Como eu disse, é voz e violão com crítica social num festival de música: cheiro de MPB na década de 60 enfrentando a ditadura. Mas creio que, no regime militar, declarações de músicos não ensejavam respostas oficiais de autoridades. O máximo que tinha para ser interpretado como “resposta” ufanista eram propagandas como “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Mas Sílvio Almeida jamais faria tal coisa. Mandar amar o Brasil, esse antro de racismo estrutural? Jamais!
Como só mesmo Sílvio Almeida parece ter coragem hoje de falar abertamente contra as denúncias, vagas ou não, de exploração sexual de menores, eu fui dar uma olhada no que a esquerda estava dizendo para justificar a má vontade com elas. Pelo que entendi, eles acham que, já que o problema de Marajó é velho, os evangélicos se articularam justo agora para denunciá-lo porque querem promover ONGs evangélicas. Isso seria errado por duas razões: o dinheiro público seria erroneamente desviado para a doutrinação religiosa e porque os pastores evangélicos são trambiqueiros. Ao mesmo tempo, o dinheiro que vai para as ONGs "do mal" deixa de ser canalizado para as ONGs "do bem". Os evangélicos teriam um esquema similar ao da Mynd e toda a celeuma seria plantada com esse fito.
Faltam-me dados para aventar a possibilidade de eles terem algo análogo à Mynd (eu acabei de descobrir a existência do Dom Reality e de Aymée); faltam-me dados também para aventar a possibilidade de as ONGs evangélicas citadas serem envolvidas em trambique. No entanto, sei muito bem que o regime tributário e a falta de institucionalidade facilita muito a criação de igrejas evangélicas cuja real finalidade seja lavar dinheiro. Eu precisaria ser muito ingênua para ver o Rio das Pedras, área administrada por milicianos, trocar casas de baile funk por igrejas evangélicas e achar que o povo de repente passou a priorizar a salvação da alma (ao contrário, eu reparei que as tais igrejas promovem muitos shows e até uns festivais meio Woodstock chamados de "Vigília"). Como caridade é uma isca de pegar trouxa e lavar dinheiro, eu não ficaria surpresa se uma ONG de pastor trambiqueiro usasse a ingenuidade das pessoas para aprontar. Mas se esse for o caso, não deve ser difícil a própria esquerda pegar a mutreta.
O que há de legítimo é a crítica do eventual uso do Estado para financiar, via terceirização (ONGs), o crescimento de uma vertente religiosa particular que, ainda por cima, não raro prega a submissão a um Estado estrangeiro (refiro-me às igrejas dispensacionalistas que usam a Bíblia Scofield para dizer que o Estado moderno de Israel tem que ser apoiado). Por outro lado, não é legítimo fechar os olhos à imposição de uma moralidade muito específica só porque ela é laica (refiro-me aos ongueiros ao estilo de Soros, que são os mais comuns). Na minha opinião, não deveria haver ONG nenhuma tomando conta da região, porque as funções de Estado deveriam ser executadas ou por funcionários públicos concursados, ou por agentes indicados pelo Executivo. As ONGs, com seus valores "do bem" ou "do mal", são um drible ilegítimo na democracia. Mesmo que as ONGs não tenham dinheiro público, o fato é que o exercício da caridade jamais vai substituir as demandas de lei e ordem na região: Marajó precisa de mais Estado e de Estado robusto, não terceirizado.
Tendo assim a interpretar a celeuma da esquerda com as denúncias de Marajó como uma briga de ongueiro. Porque entre ongueiros evangélicos orientados a cuidar do Homem e ongueiros misantropos orientados a cuidar de Gaia, não resta dúvidas de que os primeiros gozam de muito mais aprovação popular. As denúncias da Ilha do Marajó, embora estejam longe de resolver o problema (sobretudo se considerarmos que a direita neste século vive pedindo menos Estado…), serviram apenas para desnudar aquilo que já sabíamos: que os ongueiros woke odeiam a humanidade, e por isso não elencam a exploração sexual infantil como uma pauta prioritária.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima