Senhoras e senhores, foi com muita consternação que recebi a missão de ler O que não se pode dizer: experiências do exílio (Civilização Brasileira, 2022), de Marcia Tiburi e Jean Wyllys. Para piorar, como eu estava no Rio de Janeiro visitando o meu pai, fui pessoalmente comprar o objeto, valendo-me dos meus dois pés e da minha boca, em vez de dar uns cliques anônimos usando a minha internet de bairro em Cachoeira. Caminhei até a Rua Sete de Setembro e entrei na Travessa, que, para minha surpresa, tinha livros interessantes à mostra e levei dois lançamentos de História. Eu fiquei surpresa, porque a minha incursão em livrarias paulistanas tradicionais foi de surpresas negativas. A Martins Fontes Paulista, embora tenha excelente catálogo e acervo, só exibia os livros polêmicos do momento. Já a Cultura da Avenida Paulista estava de chorar. Não só exibia apenas subliteratura de esquerda, como ainda acrescentou uma seção de moda esquerdista, com camisetas de frases de Jessé Souza e almofadas de coração bordadas por feministas. Tinha até chá feminista (cf. foto abaixo). Assim, se for a São Paulo querendo ver lançamentos interessantes, vá à livraria da É Realizações. No Rio, se for atrás da Livraria Da Vinci, passe reto pela porta e vá ao sebo Berinjela no final do corredor, excelente em acervo e preço. A Da Vinci foi vendida a um empresário paulista e, desde então, agora só exibe subliteratura de RH lacrador.
Assim, peguei um lançamento sobre Alexandre de Gusmão (1695 – 1753), de Synesio Sampaio Goes Filho; um fininho sobre a história da maconha, de Jean Marcel França; e namorei um sobre Arariboia (morto em 1589), de Rafael Freitas da Silva.
Procurei uma pilha de livros comerciais de esquerdismo e nada. Tive de ir ao atendente envergonhada pedir o livro de Marcia Tiburi e Jean Wyllys. A última vez em que senti tanta vergonha foi quando eu era adolescente e minha tia me pediu para comprar Contigo. Abordei o atendente dizendo que estava com vergonha de pedir um livro. Depois de informar qual era, ele perguntou por que eu estava com vergonha de pedi-lo. E eu, que não quero ofender ninguém, respondi que, na minha opinião, é livro de gente retardada. Mas eu tenho que ler por causa do trabalho, que o chefe mandou resenhar.
Como é o livro
Nessas horas, o leitor sempre dirá que eu mereço adicional de insalubridade. Quanto aos livros de Djamila e Sílvio Almeida, é bem verdade, já que eles escrevem mal. Quando é livro de gente prolixa ou que não sabe escrever, eu fixo uma quota diária mínima de páginas ou capítulos e deixo para ler de noite, lendo de manhã algo do meu agrado. Nem sempre é assim. Kabengele Munanga escreve absurdos revoltantes, mas ao menos sabe escrever e mistura os absurdos com um trabalho sério sobre a França no Haiti e o papel do Iluminismo no racismo. Jean Wyllys sabe escrever, embora às vezes incorra em dramalhão. Marcia Tiburi, quando não desembesta a usar neologismos feios e fazer melodrama, também escreve direito. Além disso, os dois não escreveram juntos um livro teórico – no qual se corre mais risco de ser prolixo. Trata-se, senhoras e senhores, de um livro epistolar. Um livro com cartinhas trocadas no “exílio”.
Assim, li rapidinho. Minha impressão geral é que Marcia Tiburi é uma coitada que sofre só por causa de ideologia, e que Jean Wyllys é um sujeito astuto e com um equilíbrio mental muito acima da média da esquerda. Peguei o livro achando que era pura propaganda, mas logo a leitura se tornou um divertido jogo de adivinhação, em que eu especulava o grau de sinceridade das cartas. Eles trocaram correspondência por e-mail sabendo de antemão que iriam compor um livro epistolar; logo, escreveram sob holofotes, prontos para atuar caso queiram. Concluí que Jean atuou bastante; falou muito de política e pouco de si. Tentava empurrar a pauta da “emergência climática” sempre que possível, fosse falando de Covid, da crise de refugiados na Europa ou do fascismo no Brasil. E concluí que, se Marcia Tiburi atua, é só para iludir a si própria junto com o leitor. Ela me pareceu tão honesta quanto possível.
Aos fatos biográficos – Marcia Tiburi
Deixemos a psicologia para um texto à parte e vamos aos fatos das vidas de ambos, que se consideram exilados.
Marcia Tiburi, natural de Vacaria (no nordeste do Rio Grande do Sul), foi para a França com o marido juiz, mas o “exílio” acabou com o casamento dela. Ela tem morado de favor desde então. O pai morreu durante o “exílio”, a mãe está doente, sem uma perna, dá a entender que pode morrer em breve, mas mesmo assim ela só volta quando “o fascismo” for derrotado. Do contrário, ela crê que pode virar uma nova Marielle. Morre de medo do MBL.
Seu marido tinha uma licença de dois anos para fazer o pós-doutorado; se o casal saiu no final 2018, é de se presumir que ele tenha tido que voltar no final de 2020. A julgar por uma nota de lançamento de um livro de ambos, porém, ele voltou ainda no começo de 2020 ao Brasil, pois na nota dizia-se, em março de 2021, que ela estava há um ano sem ver o marido, que voltara ao Brasil.
Ela tem uma filha adulta, Lulu, que ficou consigo por um tempo em Paris, mas em 2021 é referida como uma visita de Natal. Lulu não é filha do juiz. Tomando por base uma entrevista antiga hospedada no portal Terra, intitulada “Não sabia que casamento precisava de sexo”, este é no mínimo o seu terceiro casamento acabado. O primeiro foi o pai de Lulu, hoje advogado; depois casou-se com um músico, que teria virado figura paterna de Lulu enquanto que o pai mesmo seria amigo. (Parêntese: toda mãe mal resolvida quer empurrar um novo pai para o filho, restaurar a imagem de família margarina e contar a todo o mundo que o homem anterior não cumpriu com o papel de pai. É um elogio do atual com o propósito de falar mal do ex, enquanto ainda enche o saco da criança, que fica incumbida de elogiar o padrasto em público.)
Em Paris, Marcia Tiburi vive como cidadã europeia (tem cidadania italiana), é apertada de grana, dá aulas de filosofia e usava como ateliê um lugar que seria demolido em breve. É artista plástica. O lado ruim de ter cidadania italiana é não poder participar do programa Scholars at risk, uma mortadela dos EUA para acadêmicos do terceiro mundo.
Aos fatos biográficos – Jean Wyllys
Jean Wyllys, natural de Alagoinhas (ao norte de Salvador, no agreste baiano) saiu do Brasil às pressas após a eleição de Bolsonaro. Há época, circulavam dois boatos: o de que ele vendera o mandato para assumir o marido de Glenn Greenwald e o de que o gabinete dele dera o falso álibi de Adélio Bispo. Jean comenta só o primeiro destes, lastimando que quem o espalhou evidentemente não sabe das condições financeiras dele. Ele saiu correndo do Brasil sem dinheiro, e quem o socorreu foi a Open Society Foundation de George Soros, via Pedro Abramovay. Como a renovação da bolsa atrasou, ele precisou da ajuda financeira de amigos. Mercadante também o ajudou arrumando um trabalho provisório. Diz que “a OSF garantiu minha dignidade humana e intelectual, bem como meu trabalho” (p. 44).
Jean passou por Harvard, mas sofreu muito com o frio nos EUA, quis se mudar para o clima mediterrâneo. Ele não fica em Portugal porque há brasileiros demais lá, e inclusive levou uma ovada na Universidade de Coimbra. Diz ele: “foi ali […] que um fascista atirou um ovo contra mim e Boaventura de Sousa Santos, enquanto proferíamos uma palestra no auditório da universidade. O ovo poderia ser uma pedra, uma faca, um tiro…” (p. 37). Imaginem se Bolsonaro tivesse feito esse dramalhão depois da cusparada.
Assim, para permanecer anônimo e em clima mediterrâneo, ele não pôde ficar nem em local de língua portuguesa. Mudou-se para Barcelona e gosta muito de lá. Quanto a Harvard, despirocou lá durante a pandemia. Dado o seu meio letrado & chique, considera uma peculiaridade o seguinte: “meu corpo franzino e pequeno de nordestino, que passou fome durante quase toda a infância, aguentou quatro décadas de ataques sem recorrer a nenhuma terapia ou remédio…” (p. 123) Quando ele teve que ficar sozinho no confinamento, ainda por cima num inverno rigoroso, teve ataque de pânico e finalmente evoluiu para o maravilhoso mundo dos medicados & desenvolvidos. Agora ele escreve assim para a amiga: “Mas sabe o que me salvou, além do bom tratamento médico (‘remédio é melhor que Deus’, disse-me nossa amiga Nina Lemos [do Uol])? O cuidado dos amigos e amigas” (p. 246). Se ele continua medicado, não sei. Mas por aí se vê que os medicados estão galgando prestígio demais e precisamos a parar com essa coisa de normalizar doença psiquiátrica.