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Eu conheço menos a vida de Marighella do que eu gostaria para comentar esse filme. Eu sabia que ele tivera sua fase como parlamentar pelo PCB; sabia que, após a cassação do registro do PCB, houve uma migração dos comunistas para o MDB (o partido de oposição no sistema bipartidarista imposto pelos militares); e sabia que o PCB era pacífico. Em virtude disso, houve um racha ainda antes de 64: comunistas adeptos da guerrilha fundaram o PCdoB e passaram a se dizer maoístas. O PCB ficava sujeito a Moscou; o PCdoB, em tese, a Pequim. (Na prática, significava apenas que eles iam bajular Mao e passar o pires lá. Mao era sovina e eles acabaram se contentando em virar “albaneses”.)
Marighella rompeu mais tarde com o PCB e fundou a ALN. Sua posição política é uma incógnita para mim. Lendo seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano (que está disponível neste engraçadíssimo site de direitos humanos petista), não encontramos a ocorrência das palavras “comunismo” ou “socialismo”. Por outro lado, encontramos uma porção de apologia da violência. O plano político desenhado para além de ganhar a simpatia das massas explodindo coisas e impedir que ela se distraísse com ideias como “redemocratização”.
É tudo muito vago e negativo, sem a perspetiva de nenhum plano construtivo. Eu tenho para mim que ele virou adepto de Georges Sorel, uma figura ambígua que fez muito sucesso na Itália entre comunistas, fascistas e anarquistas no começo do século XX, especialmente em sindicatos. Como o pai de Carlos Marighella era um operário italiano anarquista, é factível que ele tenha crescido com Sorel em casa e, solto do comunismo, dado vazão às próprias tendências intelectuais.
No mais, eu sabia que a ALN organizou a maior ação bem-sucedida da esquerda armada junto com o MR-8: o sequestro do embaixador Charles Elbrick. E uma curiosidade biográfica é que seu motorista era Aloysio Nunes, que teve longa carreira política no PSDB por São Paulo.
Thriller panfletário
Pois bem: tenho um conhecimento aquém do necessário para pescar os detalhes da história, mas também superior à média dos espectadores. Fiquei boiando a maior parte do tempo, com corre-corre pra lá, corre-corre pra cá, tiro, porrada e bomba. Eu passei um tempo suspeitando que Branco fosse Aloysio Nunes para nada. No fim, sobressai-se o seu sotaque nordestino aparentemente forçado, sendo que Aloysio Nunes era paulista.
Gostei da crítica de João Carlos Rodrigues, que, além de pesquisador de cinema, acumula um conhecimento espontâneo de filho de comunista das antigas. Cito-o: “Carlos Marighella era filho de um italiano com uma preta e, portanto, não podia ser escuro como Seu Jorge. (Eu o vi pessoalmente quando criança e era mulato mais pro claro, como Nelson Xavier ou Marku Ribas, o ator que o interpretou no filme de Ratton). Escrevi acima e aqui repito que sua interpretação é excelente – merece os prêmios que recebeu e outros mais - mas creio que seu tipo étnico é manipulado para fazer paralelos entre a luta de guerrilhas de 1968 e a luta contra o racismo de hoje. Digo mesmo há nas entrelinhas incentivos a uma insurreição negra nos dias atuais. Nada mais irresponsável e fora da realidade. Marighella, um marxista-leninista que achava como Marx a religião o ópio do povo, beijar guia de Oxóssi é um pouco demais. Também o papo furado que Jesus era negro quando era um judeu palestino. Os partidos comunistas do mundo inteiro sempre recusaram aceitar a luta racial como legítima, achavam um desvio da verdadeira luta, a luta de classes. Esses três escorregões quase põem tudo a perder.”
Ou seja: do ponto de vista histórico, o filme é uma barbaridade. Se tem valor (João Carlos acha que tem), é como thriller de tiro, porrada e bomba.
Supremacismo negro
Quanto a Jesus negão, a ideia é pior ainda: aparece um padre explicando a Marighella que Jesus foi escondido no Egito quando Herodes mandou matar a meninada. Sabem o que isso prova? Que Jesus era negão. Porque no Egito só tinha negão, então só faria sentido esconder Jesus lá se ele fosse negão também. Supremacista negro dos Estados Unidos adora dizer que no Egito só tinha negro, que Cleópatra era negona, e que brancos malvadões omitem isso por serem malvadões. Faltou só aparecer a teoria da melanina do Dr. Jeffries para explicar a superioridade de Marighella por meio de sua melanina, turbinada por Seu Jorge.
Aliás, resta inexplicado, no filme, o próprio sobrenome do protagonista. No começo, aparece um letreiro informando que Marighella era neto de sudaneses. Nenhuma menção ao pai anarquista italiano. Os tuiteiros com selo azul vão assistir ao filme e especular que Marighella era o sobrenome de algum senhor de engenho italiano em plena Bahia.
Como Wagner Moura vem enfurecendo a velha esquerda desde a fase de produção do filme, de lá para cá deve ter pensado em como se justificar quanto à parte da guia de Oxóssi. Disse no Roda Viva que Marighella cresceu num terreiro de candomblé envolto em folhas sagradas. Pois bem: Nietzsche era filho de pastor e foi um menino bem pio, mas só um diretor de cinema salafrário usaria isso para fazer uma cinebiografia dele agarrado com a Bíblia enquanto corria atrás de Lou Salomé.
Não sei se Wagner Moura é ateu. Eu sou, mas entendo que a religião é uma dimensão séria na vida das pessoas. Ficou complicado entender a cosmovisão do diretor de cinema. Jesus era um negão revolucionário? Oxóssi tem poder? Marighella deriva seu caráter revolucionário da cor de sua pele? A Revolução é uma experiência mítica religiosa intrinsecamente atrelada à negritude? Que visão de mundo é essa que concilia os poderes da guia de Oxóssi e a fé num Cristo negro racializado? Wagner Moura é ateu ou acredita numa religião da Raça?
É comum na Bahia misturar catolicismo com candomblé – mas essa fusão só é possível desapegando-se da cor dos santos e orixás. Iemanjá é representada como um sereia branca. Omolu é identificado com uma estatueta de São Lázaro, branco. Em Jesus reconhece-se Oxalá. Assim como o cristianismo nunca se pretendeu uma religião étnica, o candomblé, brasileiro, tampouco discrimina os fiéis. Quem faz isso são os picaretas do movimento negro.
Existe um golpe novo na praça. Quem me alertou foi Luiz Mott, que ouviu as queixas de um pai de santo branco. Os terreiros de candomblé têm uma hierarquia rígida e uma formação demorada. São necessários sete anos para alguém se tornar pai ou mãe de santo. Por outro lado, na Nigéria, para se tornar babalaô (o cara que joga os búzios) basta fazer um curso de três meses. Os orixás cultuados são mais ou menos os mesmos. Assim, o militante do movimento negro viaja para a Nigéria, faz um cursinho de babalaô express, fica tirando onda de grande autoridade religiosa e racializando o culto dos orixás no Brasil.
Capitão Nascimento cheirador
No Roda Viva, Wagner Moura insistiu que as personagens são todas profundas, e até o tal do Lúcio, interpretado por Bruno Gagliasso (o malvado tinha que ser um branco de olhos azulões), teria sido humanizado. Cito outra vez João Carlos: “Um dos lados fracos está que o lado antagonista não é tão bem delineado quando o dos terroristas. O policial Lúcio é raso, exagerado, previsível e o intérprete se esforça muito, apesar de lhe faltar o physique du rôle, mas não pode fazer milagres. Claro que o filme, simpatizante dos guerrilheiros, não poderia suavizar o papel dos torturadores, mas esse lado sem dúvida mereceu menos atenção do roteiro.”
Eu acho que Wagner Moura foi honesto ao dizer que Lúcio tem profundidade. Acho é que ele não tem a menor ideia de como seja um militar anticomunista da época da Repressão. Bruno Gagliasso teve experiência em interpretar playboy cheirador. Não podemos dizer que Wagner Moura antipatize com cheiradores. Daí ele juntou isso com uma espécie de Capitão Nascimento cheirador (Lúcio aparece cheirando mesmo) obcecado por pegar Marighella. Num dado momento ele diz todo cheirado para uma autoridade dos EUA que ele está fazendo isso por ser um brasileiro, um patriota, e que os EUA precisam dele para pegar Marighella, pois só ele pode fazer isso. Pronto. E Zé Fini a profundidade. Os militares eram loucos cheiradores obcecados por caçar comunistas sei lá por quê.
Talvez por serem negros. Afinal, só aparecem militares brancos – o que é uma falsificação histórica gritante – e Lúcio aparece dizendo “Corre, negro!” antes de matar um mulato. Antes de resolver matar comunistas, ele diz: “Eu mato preto, posso matar vermelho”. A ditadura foi um período em que militares brancos matavam comunistas negros porque odiavam negros, eram maus e cheiravam pó.
Aliás, teve golpe em 64 por quê?
Eis mais outra coisa que deixa o espectador de cabelo em pé logo no começo do filme, no letreiro explicativo. O neto de sudaneses (Marighella) assistiu a um golpe militar em 64 dado em nome do combate à corrupção e à ameaça comunista, nesta ordem.
Eu juro que nunca vi essa versão, nem na esquerda mais revisionista. Golpe dado em nome da corrupção? Jânio Quadros foi eleito em nome do combate à corrupção, com o jingle “Varre, varre, vassourinha”. Jânio renunciou e acabou assumindo Jango, vice-presidente. À época, o eleitor votava num presidente e num vice em separado. Jânio era opositor do Vargas; Jango, apoiador. Ambos os governos são bastante conturbados, com Jânio às voltas com o Congresso, esperando que sua renúncia implicasse sua volta ao governo nos braços do povo com o Congresso fechado. Deu ruim. Jango assumiu e ficou fazendo um monte de bravata. Deu ruim também.
Só se pra Wagner Moura a própria eleição de Jânio já constituía um golpe. Como ele é um adepto da teoria do Golpe do Zap-Zap e faz de tudo para forçar um paralelismo entre 64 e 2016-2018, é possível que tenha feito esse texto do letreiro já em 2018.
Mas a loucura aparece na boca de Seu Jorge também. Aos 18min, Marighella grita com o cara do PCB que tem que ir para a luta armada, sim, e elenca o seguinte motivo entre vários: “Presidente eleito democraticamente pelo povo expulso do país por uma corja de fascistas”. Acho que nem na Comissão da Verdade apareceram com essa.
De resto, abro um bocejo para o revisionismo ao estilo Dilma Rousseff da Comissão da Verdade. Presume-se que os comunistas eram defensores da democracia que se viram obrigados a pegar em armas para defendê-la, o que é um despautério. Um monte de ex-comunista que se manteve à esquerda pode confirmar que isso é um despautério, Gabeira já bateu muito nessa tecla e é cansativo ter que voltar a isso toda hora.
Fiquemos assim: Marighella é um thriller no qual algum marciano pode achar graça, se gostar de tiro, porrada e bomba desconexos. (Vi gente elogiando a humanização de Marighella a partir do filho; eu achei piegas.) Para brasileiros e amantes da liberdade, é uma peça de propaganda racista sobreposta à já tradicional propaganda da Comissão da Verdade.