Até certo ponto, o livro de um professor de Harvard com o título “A tirania do mérito” é exatamente o que parece: lero-lero sentimentaloide e pieguice que justifica crescimento de burocracia. E tem ainda um outro vício ao qual viemos nos acostumando desde a eleição de Bolsonaro, que consiste em analisar falas presidenciais para inferir que o mundo vai acabar. Mas seu autor, Michael Sandel, faz isso sobretudo com Obama. Entre as palavras mágicas são smart e dumb, além da expressão “lado certo da história”.
O problema tratado por Sandel é o da queda da renda e do padrão de vida dos seus concidadãos, iniciada nos anos 1970. Não à toa, é o período em que a China se transformou num capitalismo de Estado, tão respeitador dos direitos humanos quanto qualquer regime comunista. A história é evidente e nós sabemos qual é: empresas do Ocidente rico tiraram os postos de trabalho dos seus países e os realocaram para a ditadura escravocrata genocida (de verdade), onde o custo do trabalho é baixíssimo. Como resultado, grandes corporações lucraram muitíssimo, mantiveram um intenso mercado de ações propenso à especulação, os empregos sumiram e o povo ficou desesperado, empobrecido, desempregado, endividado, enchendo a cara de metanfetamina e morrendo na meia-idade, mais novos que a geração dos próprios pais.
Mas Sandel não fala nunca do uso de trabalho escravo pelos chineses. Ele se refere ao problema usando termos vagos e brandos de “globalização” e “empregos em países com baixos salários”. Se o cenário que descrevi acima parece algo catastrófico por si só, Sandel prefere abordá-lo pelas beiradas, considerando a verdadeira catástrofe a eleição de Trump. O problema das “mortes por desespero” e do desnorteamento do trabalhador norte-americano só aparece no fim do livro.
Para seduzir o seu leitorado harvardiano, ele começa o livro ratificando que supremacistas brancos elegeram Trump por odiarem o sucesso de negros e imigrantes. Mas, diz ele, existem também motivos legítimos para os trabalhadores brancos estarem revoltados com as elites progressistas.
Trumpistas têm razão, segundo Sandel
A seguirmos Sandel, desde a era Obama, o ensino superior tem sido vendido como panaceia para a ascensão social. O mundo seria dividido entre os inteligentes (smart) e os burros (dumb). Os inteligentes entram numa boa faculdade, de preferência da Ivy League (uma liga de oito universidades dos EUA, Harvard inclusa) e saem com um papelzinho mágico que lhes garante emprego e renda. Os burros não entram nas universidades e, por consequência, não encontram um emprego que lhes garanta o mínimo para sobreviver.
Que fazer com eles? Tratá-los com programas assistencialistas, que dão um dinheirinho para poderem consumir. Isso joga o moral do trabalhador lá para baixo. Para atestar uma obviedade dessas, Sandel precisa citar o debate “redistribuição versus reconhecimento”, protagonizado por uma marxista chamada Nancy Fraser e o hegeliano chamado Axel Honneth. Grosso modo, um dia a elite acadêmica entendeu que as pessoas não precisam apenas de dinheiro (“redistribuição” de renda) para viver, pois precisam se achar merecedores de algum respeito individual (o “reconhecimento”). Então a marxista fica dizendo que a redistribuição causa reconhecimento (ou seja, dar dinheiro e cota pra meio mundo deixa meio mundo cheio de moral), enquanto o hegeliano diz que a redistribuição mina o reconhecimento (dar cota pra meio mundo deixa a outro meio mundo fulo, desprezando os folgados).
Honneth é um socialista, por isso é autorizado a dizer as coisas que diz. Sandel o cita com concordância, pois ressalta a importância do “reconhecimento”, mas é um defensor de cotas raciais para minorar mazelas pecuniárias. Ele não só reconhece a existência de brancos pobres, como lhes dá certa razão por votarem em Trump. Ainda assim, misteriosamente, se sente à vontade para confundir raça com renda na defesa das cotas.
Sandel critica os projetos de esquerda dos EUA por mais duas outras coisas: a falta de senso de comunidade e o pendor tecnocrático. De fato, a visão de sociedade deles não consiste em mais do que um grupo nada coeso de inteligentes competindo entre si, e outro, tampouco coeso, de perdedores que ficaram pelo caminho. Entre os democratas, seria comum se referir com desdém a seções eleitorais de encanadores, como se encanadores fossem desprezíveis e as únicas métricas para definir os seres humanos fossem conta bancária e credenciais acadêmicas.
Quanto às credenciais, ele diz que o “credencialismo” se tornou o último preconceito aceitável. Uma vez que os burros não podem decidir nada, não têm direito a participar da vida pública. Assim, cabe aos diplomados, cheio de credenciais acadêmicas, regerem de maneira técnica o que, na verdade, são problemas políticos. As políticas são apenas smart ou dumb, sem nenhuma avaliação moral delas. E aí está a tecnocracia, coisa essencialmente antidemocrática.
Loucura nos EUA
O gancho para Sandel escrever o livro foi a descoberta de um escândalo de corrupção na elite progressista. Uma das coisas que aprendemos lendo Sandel é que as universidades dos EUA são paraestatais. São privadas só no nome; vivem de subsídio, volta e meia recebem uma doação de um ricaço que quer que seu filho estude lá. Como paraestatais, têm uma prova nacional chamada SAT, inspirada em testes de QI e que deve ser feita para medir não a aprendizagem escolar, e sim a inteligência inata dos alunos. O SAT inspirou o nosso ENEM pós-Haddad, que (ao menos em tese) exige mais interpretação do que conteúdo.
Como o SAT seria capaz de medir a inteligência dos jovens, é bonito entrar pelo SAT e feio entrar com doação milionária ou com feitos esportivos. O falsário disse então que entrar por SAT é entrar pela porta da frente; por doação, pela porta do fundo; e que ele inventou uma porta lateral: os pais pagam aos falsários fortunas (que bem poderiam virar doação) e os malandros dão um jeitinho de botar o aluno dentro da universidade como se ele tivesse passado no SAT com nota alta.
Aqueles cujos pais não são tão inescrupulosos, ou nem tão ricos, vivem a infância e a adolescência em função do SAT. Esse fenômeno teria se tornado intenso a partir dos anos 1990. O tempo de brincadeira das crianças teria sido reduzido em 25%. Pais ficam em cima dos filhos durante toda a adolescência, assegurando-se de seguirem rígidas agendas de treinamento.
Isso condiz com os relatos do psicólogo social Jonathan Haidt e da jornalista Abigail Shrier. Perante tamanha vigilância parental, os adolescentes chegam às universidades sem terem flertado nem beijado na boca, muito menos trabalhado. Pelas estatísticas trazidas por Sandel, os índices de doenças mentais são altos, e hoje um jovem nos Estados Unidos tem mais chances de morrer por suicídio do que por homicídio.
Abigail Shrier, em Irreversible Damage,apontou que a mania de mastectomias duplas atinge sobretudo as CDFs, e que elas chegaram à universidade sem nenhuma experiência de natureza erótica. Quanto a Haidt, suas preocupações se concentram mais na junção de infância sob vigilância (criança lá não brinca mais sem adulto perto) com smartphones. Mas o panorama comum é esse, de a geração do smartphone crescer sem espontaneidade, obediente a pais sempre vigilantes.
Um efeito colateral apontado por Sandel para as ciências é os universitários não terem mais interesse no aprendizado. Tudo se restringe a obedecer a normas para tirar as notas mais altas, e tirar as notas mais altas porque sim. Outro efeito é os alunos ficarem arrogantes por se acharem cheios de méritos – o que seria falso, já que as notas do SAT refletem mais essa gincana cara e sem sentido do que o QI ou o esforço.
De minha parte, eu acrescento outro: na prática, isso quer dizer que o sistema universitário dos Estados Unidos seleciona doentes mentais há décadas. Gente sadia e curiosa que diga “Não quero passar por isso” fica fora. Dentro da Ivy League, só doente mental. E então a “ciência” que chega até nós tem tudo para ser delírio de gente doida.
Soluções de Sandel
Para a questão da loucura universitária e da “arrogância meritocrática”, a solução de Sandel seria acrescentar uma dose de acaso ao ingresso nas universidades. Haveria uma nota de corte e, depois disso, sorte. Como não há nenhuma diferença crucial entre um candidato que tire 9,81 e outro que tire 9,82, então faria mais sentido pegar (por exemplo) todos os candidatos com notas de 9,5 a 10 e sortear quem entra. Isso abalaria a crença dos jovens de que toda a sua vida está sob o seu controle.
Essa é a única solução objetiva que ele dá. A outra seria a restauração de um civismo e um senso de comunidade a unir os concidadãos dos Estados Unidos. Um exemplo desse ambiente ideal seria a biblioteca do Congresso, que é pública, na qual convivem negros e brancos, ricos e pobres, em harmonia e em pé de igualdade.
Há uma estatolatria aí. Precisa ser prédio público? Lendo essa apologia do convívio pacífico entre os diferentes, logo me lembrei das descrições alegres que os viajantes faziam do carnaval de rua brasileiro. Quando os marxistas liam algo do tipo, provavam que os nossos pobres são alienados. A implicação é que os brasileiros pobres estariam melhores se fossem doentes mentais amargurados e parassem de pular carnaval sem saber da classe social de quem está junto. Já disse que o Brasil é o melhor país do mundo e vou sempre lembrar que questões pecuniárias não bastam para julgar um país. Fora do Estado, na vida espontânea, nós temos mais do que esse cara aí de Harvard queria.
Por fim, Sandel, que citou bastante “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, trata das “mortes por desespero”, que seriam suicídio direto ou causadas por comportamento suicida (por exemplo: overdose e alcoolismo). Segundo os dados de Sandel, a expectativa de vida lá estacionou pela primeira vez em 2014, e desde então cai. O livro de Weber trata de um problema espiritual, e, perante os dados, fiquei curiosa em saber da religião desses mortos por desespero. Apostei com meus botões que haveria uma possibilidade grande de serem ateus. (Alto lá: eu mesma sou ateia; só acho que ateus são raros, e, se há muitos, é por haver algo errado.)
Mas a possibilidade de uma crise de fé ter a ver com alguma coisa a ver com ondas de suicídios sequer é aventada. O dado relevante trazido para as “mortes por desespero” é a ausência de diplomas. A experiência brasileira vem mostrando que gente com comportamento suicida amiúde entra nos trilhos após encontrar Jesus, e isso não tem nada a ver com diploma. Segundo Sandel, tanto os com diploma quanto os sem-diploma têm preconceito contra os sem-diploma. Assim, faz sentido enxergar esses suicidas como pessoas que não tinham nada, e quem tem fé sempre tem algo.
Para resolver o problema, Sandel propõe que sua sociedade valorize o trabalho, seja ele diplomado ou não. Tendo Weber em mente, é como se Sandel propusesse que os EUA dessem uma marcha à ré de Calvino (que levava à sacralização do lucro) para Lutero (que levava à sacralização do trabalho). Ao cabo, o livro se parece muito mais com uma peça em favor de Douglas Murray: uma elite ocidental rica em crise de fé, angustiada, agarrou a justiça social como religião laica para dar sentido à vida.