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O artigo de estreia de Sérgio Moro tem o título “Todo corrupto é um ladrão”. É um título instigante: seriam todas as formas de corrupção capazes de serem traduzidas como roubo? É bom lembrar que corrupção não é um sinônimo de peculato. Por exemplo, quando Flávio Gordon escreveu A corrupção da inteligência (Record, 2018), o assunto não eram contratos superfaturados de obras públicas nas universidades federais, nem desvio de verba de pesquisa, nem mesmo “nepotismo” cruzado em concursos. Todos esses problemas são importantes e merecem muito mais atenção do que recebem. Peculato é caso de polícia; o “nepotismo” dos acadêmicos, porém, nem mesmo seria tipificado como tal, já que orientando não é família. Se fosse tratar desses assuntos, Flávio Gordon, que não é policial nem detetive, não teria capacidade de escrever um livro sobre a corrupção nas universidades. A corrupção abordada, claro esteja, é ideológica: as universidades abandonaram a tarefa de encontrar a verdade e passaram a se portar como madrassas de esquerdismos.
A corrupção é um desvio da finalidade. Quando o dinheiro é desviado do salário do médico, da construção da escola, para o bolso de alguns particulares, temos corrupção. Nesses casos, o corrupto é um ladrão. Quando uma universidade deixa de servir à busca da verdade e passa a se portar como uma constelação de igrejinhas seculares, temos corrupção também. No caso da universidade brasileira, é até possível afrouxar os conceitos e tratar como “roubo”, porque há dinheiro público. Mas e se fosse privada, não seria desvio de finalidade mesmo assim? Essa universidade entregaria à sociedade diplomas podres. E é coisa muito comum nos Estados Unidos, onde o alunado se endivida para sair bacharel em bobagens identitárias.
E se eu fosse tão rica quanto George Soros e financiasse um centro filantrópico de prevenção ao suicídio, mudando as diretrizes com a finalidade secreta de induzir o máximo de pessoas a se matar? Eu não teria corrompido o centro? Bom, isso não é muito diferente do que acontece em locais que recebem dinheiro (ou “investimento privado”) para introduzir a “redução de danos” e estimular o uso de drogas. Será possível negar que a política de redução de danos é uma corrupção da medicina, da psicologia e da assistência social? Não obstante, não tem nada a ver com peculato.
Eu fico exasperada com o feitiço que o discurso “anticorrupção” (i. e., antipeculato) exerce sobre certos setores da classe média
No texto de Moro, a corrupção aparece como sinônimo de peculato. Ele até menciona a obra do advogado erudito Raymundo Faoro, que trata do patrimonialismo; ou seja, da confusão entre público e privado por parte dos agentes do Estado. Mas nem toda confusão entre público e privado redunda em roubo. Digamos que um diretor de escola pública resolva abrir o espaço informalmente para a pregação religiosa e deixe apenas o seu religioso favorito entrar: é patrimonialismo, mas nem sequer há dinheiro envolvido.
Eleito senador, não cabe mais a Moro a aplicação da lei, mas sim a sua formulação. É claro que é possível formular leis que facilitem ou dificultem o peculato, sendo portanto muito bem-vindo um parlamentar que trabalhe no combate a esse tipo de crime. Um parlamentar é livre, também, para se tornar monotemático. Vide Eduardo Suplicy, que falaria de renda mínima até em festa de aniversário de boneca. Mas mesmo nesse caso Suplicy teria duas vantagens sobre Moro: 1. ele tinha um projeto para apresentar; não é simplesmente uma bandeira vaga “contra a pobreza” e 2. ele nos diz claramente qual é o modelo de sociedade desejada, uma social-democracia à europeia. Como Moro espera combater o peculato? Após os meses de campanha e de mandato, já era tempo de sabermos. E qual é o modelo de Moro para o Brasil? Caso diga ser liberal, não é muito informativo, já que políticos tão diversos quanto Tabata Amaral e Marcel van Hattem reivindicam o rótulo. O que Moro pensa do ESG, da Amazônia, das ONGs, dos avanços do Supremo, da liberdade de expressão? Se corrupção para ele é só peculato, então essas são não questões.
Eu fico exasperada com o feitiço que o discurso “anticorrupção” (i. e., antipeculato) exerce sobre certos setores da classe média. Isso é velho e tem o pior precedente possível: o PT. No longínquo ano de 1994, quando FHC estreava como presidente, Olavo de Carvalho publicava as seguintes linhas em A nova era e a revolução cultural (p. 79-80):
“Mudanças de critério moral […] podem ser induzidas através da imprensa, sem qualquer ataque frontal e explícito aos critérios admitidos. Um caso que ilustra isto perfeitamente bem […] é o do noticiário sobre corrupção. […] A campanha [pela ética na política] surgiu numa reunião de intelectuais de esquerda em busca de uma fórmula contra Collor, muito antes de que houvesse qualquer denúncia de corrupção no governo. Mais tarde, estas denúncias vieram a dar à campanha uma força inesperada, trazendo para ela a adesão das massas de classe média moralista que, politicamente, teriam tudo para se opor a qualquer proposta explicitamente esquerdista. Ora, a campanha exerceu uma influência decisiva na direção do noticiário nos jornais e na TV. Essa influência foi tal que introduziu nos julgamentos morais uma mudança profunda. Impressionado pelo conteúdo escandaloso das notícias, o público nem de longe reparou que a edição delas subentendia essa mudança, que, conscientemente, ele não aprovaria. Ela consistiu em fazer com que crimes contra o patrimônio parecessem infinitamente mais graves e revoltantes do que crimes contra a pessoa humana. P.C. Farias, um trêmulo estelionatário incapaz de dar um pontapé num cachorro, era apresentado como um Al Capone.”
Durante a Lava Jato, a toada da mídia não mudou: roubar o Estado é ruim e bandidos são vítimas da sociedade. A novidade era só que Lula passou a figurar entre os maus
Exatos 20 anos após a publicação dessas linhas, os criminosos de colarinho branco do PT é que seriam os vilões diabólicos do noticiário, com a Operação Lava Jato se tornando uma espécie de telenovela amplamente dramatizada. Nesse trecho, Olavo criticava o tratamento dado pela mídia ao peculato (“a corrupção”), tido como crime supremo, ao mesmo tempo em que tratava os bandidos como “vítimas da sociedade”. Moral da história: roubar o Estado é abominável, mas assassinar seres humanos é aceitável.
Durante a Lava Jato, a toada da mídia não mudou: roubar o Estado é ruim e bandidos são vítimas da sociedade. A novidade era só que Lula passou a figurar entre os maus. Os próprios crimes que a Lava Jato pegou mereciam ser tratados como muito mais que um simples desvio de dinheiro público: eram, tal como o mensalão, uma tentativa de tomada do poder. Uma coisa é roubar para investir no próprio haras; outra, bem mais preocupante, é roubar para investir na tomada do Estado.
No governo Bolsonaro, que eu me recorde, o primeiro “escândalo de corrupção” foi o das “mulheres laranja” do ministro Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo. Não se dizia que ele enfiara dinheiro público no próprio bolso, mas sim, simplesmente, que seu partido maquiara as estatísticas referentes ao sexo dos seus candidatos. Graças ao arbítrio do Supremo, os partidos brasileiros têm de gastar pelo menos 30% do fundo partidário com candidatas mulheres. Se não houver mulheres suficientes, o que o partido pode fazer? Partidos grandes e que não aspiram à Presidência, como o MDB e o União Brasil, puderam gastar com candidatas mulheres à Presidência e bancar assim os seus palanques estaduais – que eram o que realmente interessava. E se algum juiz eleitoral resolvesse dizer que Simone Tebet e Soraya Thronicke eram mulheres-laranja?
Na época de Raymundo Faoro, o Estado brasileiro ainda apitava alguma coisa, de modo que quem quisesse reclamar dos males do Brasil faria bem em reclamar do Estado. Nos dias de hoje, porém, a face do poder no Brasil é o STF
O Estado saiu de cena e a toada da mídia mudou: agir contra os desígnios do Supremo e o credo progressista é abominável, mas assassinar seres humanos é aceitável. Se corrupção agora é isso, não me oponho à corrupção.
Outro ponto em comum entre o discurso anticorrupção de Moro e o dos petistas dos anos 90 é a própria adesão a Raymundo Faoro. Na obra citada pelo ex-juiz, Os donos do poder, Faoro basicamente defende que o Brasil é subdesenvolvido por causa da formação do Reino de Portugal na Idade Média. Liga o Mestre de Avis, morto em 1433, a Floriano Peixoto e aos barões do café (os intelectuais da Carta Capital vão mais longe e ligam Portugal medieval a Bolsonaro). Existiria um estamento burocrático patrimonialista e centralizador que, desde a Idade Média, condena os brasileiros ao atraso. Noutras palavras, o problema do Brasil é o seu Estado.
A obra de Faoro foi muito importante na formação de quadros do PT, e o comunismo, a despeito do que diga a propaganda liberal, é contra o Estado. Faoro chegou a ser convidado pelo próprio Lula a ser seu companheiro de chapa na eleição presidencial de 89.
Não é o Estado brasileiro o que incomoda agora. É a sua captura e distorção por organizações estrangeiras imbuídas da ideologia progressista
Na época de Faoro, o Estado brasileiro ainda apitava alguma coisa, de modo que quem quisesse reclamar dos males do Brasil faria bem em reclamar do Estado. Nos dias de hoje, porém, a face do poder no Brasil é o STF, que a seu turno assume agendas que não têm nada a ver com a vontade do povo brasileiro e de suas lideranças tradicionais, tal como a Agenda 2030 da ONU, muito afim à regulação ESG do Fórum Econômico Mundial de Klaus Schwab. A mesma mídia que bateu palmas para a Lava Jato, que depois lançou ovos podres em Bolsonaro e que depois reabilitou Lula ficou esse tempo todo batendo palmas para os ministros iluministas do Supremo. E agora tenta diuturnamente promover os identitarismos feminista, negro e gay. Não é o Estado brasileiro o que incomoda agora. É a sua captura e distorção por organizações estrangeiras imbuídas da ideologia progressista.
Vejam que tínhamos lei contra racismo desde meados do século passado, e agora temos tribunais raciais. Vejam que o aborto é rechaçado pela população brasileira, mas a liberalização regulatória fez com que, na prática, nenhuma mulher fosse condenada pelo crime. Vejam, aliás, que Bolsonaro quis imputar a defesa do aborto (e de Ortega) a Lula, mas o TSE proibiu. Isso tudo não é corrupção da nossa democracia e das nossas instituições?
Ninguém deveria gostar de peculato – assim como de assassinato, de pedofilia, de estupro etc. Se gostar, vai fingir que não e negar até a morte. Por isso mesmo, não faz sentido alguém se dar ao trabalho de escrever um artigo dizendo meramente que o peculato (“a corrupção”) é ruim. Sergio Moro faria bem se ampliasse sua concepção do que é corrupção e se dissesse ao público qual modelo de sociedade ele quer para o Brasil.
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Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos