Creio que eu deva bater numa tecla: as explicações para a decadência de instituições outrora respeitadas, tais como a grande mídia e a universidade, devem incluir a idiotia de elementos da classe que a compõem, mas tal idiotia não é explicação suficiente. As coisas mudaram demais num curto espaço de tempo; além disso, a idiotia de uns pode ser contrabalançada pela argúcia de outros. Em qualquer profissão, encontramos idiotas. O difícil é profissões que outrora demandavam argúcia de repente parecerem ter apenas imbecis. Hoje todos os opositores do politicamente correto abominam a Globo. No entanto, um de seus quadros mais poderosos escreveu um livro cujo título é Não somos racistas (Nova Fronteira, 2007), defendendo o Brasil. Ali Kamel não morreu, nem consta que tenha mudado de ideia. Ele existe, só não tem mais o mesmo poder ou a mesma liberdade.
O século passado se viciou nas explicações puramente econômicas. Por isso o marxismo fez tanto sucesso: enquanto os EUA ascendiam à condição de potência global por meio das armas e impunham o liberalismo econômico, estava à mão a obra de Marx, que explicava o mundo por meio da economia e dos conflitos de classe. Não faltaram críticos ao marxismo que apontassem a pobreza de se considerar que tudo era economia. Provavelmente o mais famoso desses críticos é Max Weber, que atribuiu o capitalismo ao espírito.
O século passado se viciou nas explicações puramente econômicas. O nosso século, por outro lado, parece ser viciado nas explicações puramente culturais, cego às questões econômicas.
O nosso século, por outro lado, parece ser viciado nas explicações puramente culturais, cego às questões econômicas. Deu-se um jeito até de subverter o marxismo e fazê-lo tratar somente de costumes, tomando o pseudomarxismo da Escola de Frankfurt como sinônimo de marxismo. Os países que passaram por revoluções marxistas implementaram regimes abertamente contrários à homossexualidade, mas, à direita e à esquerda, acredita-se que defender neutralidade estatal perante os gays é marxismo. Não é; é liberalismo. O liberalismo impede que o Estado, mesmo democraticamente, adote uma definição de bem comum para guiar a sociedade. Em vez disso, para o liberalismo, o Estado serve para “libertar” os indivíduos da cultura, lançando-os por padrão numa indefinição moral. Cada um deve decidir o que é bom – como se fosse possível tomar essa decisão num nível estritamente individual, com cada qual reinventando a roda sozinho em sociedade.
Espero ter mostrado no meu último artigo que é preciso atentar às corporações transnacionais da educação – as donas das faculdades caça-níqueis – para explicar a política de cotas nas universidades federais. O PT, um partido com preço, matou a universidade pública e assim o alunado brasileiro passou a ter que estudar em universidades privadas caras caso queira ter um diploma respeitável. Ao mesmo tempo, impôs de cima para baixo a uniformidade ideológica nas federais. Uniformidade, aliás, que existe nos EUA e na Europa graças ao dinheiro privado de figuras como George Soros, um especulador do mercado financeiro que saiu quebrando bancos públicos na Europa. Não à toa, esse neoesquerdismo que virou ideologia oficial das universidades públicas é a mesma ideologia que viceja nos departamentos de RH das corporações transnacionais. Essa esquerda não quer mais tomar a propriedade de Soros; quer que Soros lhes dê um cabide de emprego e garanta cotas. Isso não tem nada a ver com crítica econômica marxista.
O outro caso de cegueira para questões econômicas é a imigração na Europa. Começa que a política de open borders foi aprovada na marra pelo STF de lá da União Europeia, sem um voto do cidadão francês ou alemão, e num nível superior ao nacional. Vejam bem: a Europa perdeu para os EUA duas guerras mundiais e teve de adotar modelos políticos ao estilo do vencedor. Primeiro teve que virar República democrática (a Alemanha não topou Weimar e armou mais uma guerra); depois, teve que virar essa juristocracia de moeda única que é hoje. Mas a culpa, segundo o fã clube de Olavo de Carvalho, é de Gramsci e da União Soviética. Não tem nada a ver com os EUA, um país muito melhor do que o nosso, onde todo o mundo ganha em dólar e fala inglês desde criancinha. Parece até que o politicamente correto foi inventado no Leblon por Caetano Veloso, e que Margaret Sanger nasceu em Garanhuns.
Pois bem: no pós II Guerra os Estados nacionais do Ocidente em geral tinham aparatos de proteção social que jogavam o nível de vida lá para cima e, naturalmente, encareciam o trabalho. Na Europa, esse modelo recebeu o nome de “social-democracia”; nos EUA, manteve o nome de “liberalismo”, mas acrescentou a espinhosa ideia de “Direitos Humanos” que são, essencialmente, supranacionais.
Aumentar o nível de vida do trabalhador é bom para a maioria da população; ainda assim, há quem queira maximizar os lucros às expensas do trabalhador. Isso deve gerar uma situação um tanto conflituosa, já que em tese os trabalhadores e os consumidores são mais ou menos as mesmas pessoas, dentro de uma mesma sociedade. Se você arranca o couro dos trabalhadores, eles não podem consumir e você não tem pra quem vender. Nos anos 70, os EUA contornaram a questão abrindo a China e mandando as fábricas para lá, fazendo com que os consumidores fossem americanos e os trabalhadores braçais fossem chineses. Ser um trabalhador e ter dinheiro para sustentar a própria família deixou de ser uma opção. Com que dinheiro os americanos consumiam? Bom, de lá para cá, os seguros sociais (algo análogo ao Bolsa Família) foram se generalizando junto com o desemprego e com a dívida pública, enquanto a China se tornava uma potência econômica e militar credora da dívida pública americana. Os EUA se deram mal – ao menos enquanto Estado nacional. Com as empresas e bancos de lá ficou tudo ótimo; lograram êxito no seu empenho em aumentar os lucros. Se os consumidores não têm emprego, o governo dá um dinheirinho para eles e se endivida. Depois o banqueiro compra a dívida pública e lucra com os juros – como tem sido no Brasil desde quando Lula, ainda no primeiro governo, resolveu pegar um empréstimo para quitar a dívida com o FMI.
Se o mainstream americano não propõe a naturalização dos imigrantes ilegais, é porque pretende normalizar a figura do trabalhador não-cidadão. E trabalhador não-cidadão tem sido, na maior parte da história ocidental, a mesma coisa que “escravo”.
Então, no liberalismo pós Direitos Humanos de 1948, o governo tem servido para dar dinheiro aos cidadãos e transformá-los em consumidores. O modelo dos EUA foi exportado Ocidente afora, Brasil incluso. E quem é o pobre que precisa trabalhar para conseguir dinheiro dentro do país? O não-cidadão, o imigrante ilegal que não é reconhecido pelo Estado nacional.
Nos EUA, o Partido Democrata se empenha em manter as fronteiras abertas, em criar eufemismos para designar imigrantes ilegais e, pasme, até em deixá-los votar. Trata a figura do imigrante ilegal como uma identidade fixa e imutável: simplesmente não cogita um mutirão de legalização. Se um político, num Estado nacional, está preocupado com a falta de direitos de um estrangeiro oprimido, o mais natural é querer legalizá-lo e dar-lhe existência jurídica dentro do Estado. Se o mainstream americano não propõe isso, é porque pretende normalizar a figura do trabalhador não-cidadão. E trabalhador não-cidadão tem sido, na maior parte da história ocidental, a mesma coisa que “escravo”.
Criar essa figura nos EUA é mais difícil do que na Europa, porque nos EUA (como no Brasil) cidadão é quem nasce em solo pátrio. O ilegal chega, tem filhos e os filhos são cidadãos. Na Europa, porém, vigora o jus sanguinis, então é possível gerações nascerem e crescerem lá sem jamais receberem status de cidadão. Os mesmos europeus que apontam o dedo para os cidadãos brasileiros que moram nas favelas têm, em suas terras, não-cidadãos morando em banlieues e no-go zones, que é como se diz “favela” por lá.
Então vejamos: na Europa existe uma categoria de europeus nativos que não trabalha e que recebe auxílios do Estado, e outra de humanos não-cidadãos que não têm direitos trabalhistas (pois não existe aos olhos do Estado). A direita tende a enxergar esse quadro em termos puramente raciais, como se por alguma razão os banqueiros ou o EUA odiassem brancos e quisessem substituí-los por gente escura. Ora, o que salta aos olhos é que “os brancos” são cidadãos com direitos; os escuros (e uma porção de nacionalidades eslavas) não são cidadãos e não têm direitos perante o Estado nacional; no máximo, só os têm perante a ONU. Uma eventual extinção dos “brancos” da Europa representaria a extinção do trabalhador livre, e a inauguração de uma era em que o homem só reivindica “direitos” valendo-se de alguma credencial arbitrária tirada da cabeça da tecnocracia, tal como “obeso”, “portador de necessidades especiais” etc. Entre esses direitos pode estar o direito a morrer com dignidade em vez de enfrentar a pobreza, tal como no Canadá.
Capitalistas como Soros e os do Vale do Silício não são idiotas. Idiota é quem quer explicar a opressão econômica estritamente em termos culturalistas, reduzindo tudo a lacração.
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