Recentemente fui tentada a crer que a democracia surgiu em alguma aldeia xavante. Há quem diga que surgiu na Grécia, como indica a origem grega do nome. Demos é povo, krátos é poder, democracia é poder do povo. Mas logo haveria quem dissesse que dar poder ao povo é populismo. Seja como for, a democracia foi reputada uma coisa ruim na maior parte da Antiguidade. No final da Modernidade é que a coisa começou a mudar de figura, com o experimento realizado por rebeldes ingleses na América do Norte. Ali surgiu uma República um pouco mais velha do que a francesa da Revolução, mas a francesa acabou sendo mais famosa. Talvez seja por isso que houve um rebranding e o regime dos Estados Unidos passou a ser divulgado como Democracia. O primeiro grande divulgador do modelo foi Tocqueville, um aristocrata francês na República. Com certeza ele via que o novo regime de sua terra natal era bem diferente daquele sistema descentralizado que os norte-americanos chamavam de federalismo.
Mas nem a Grécia Antiga, nem os Estados Unidos do século XVIII são uma aldeia xavante, e eu receio que tampouco sejam democráticos segundo o novo critério em vigência. Pois eu cresci ouvindo que numa democracia existia liberdade de expressão – e prenderam um cacique xavante por “ataques à democracia”. Ataques verbais, diga-se. Nesse conceito pós-moderno de democracia, as instituições (que são a mesma coisa que a democracia) são uma espécie de donzela em apuros, no alto de uma torre, ameaçada pelo dragão do populismo, e o Judiciário é o cavaleiro que a salva. E não me peçam maiores explicações, porque é tudo muito mítico e confuso – mais digno, talvez, da tradição oral passada numa aldeia xavante do que do trabalho acadêmico de doutores em direito.
Mas tampouco era por isso que eu comecei a suspeitar que a democracia pós-moderna tenha surgido numa aldeia xavante. É porque eu passei os últimos anos ouvindo que os índios têm que ter a sua cultura respeitada de modo absoluto – mais até do que a própria pessoa do índio. Se o índio quiser eletricidade, nananinanão. Vai acabar com seus modos de vida tradicionais, os seus saberes e conheceres. Se o índio quiser praticar infanticídio, é correto deixar o indiozinho morrer, porque é a cultura deles e não cabe impor o discurso “racista” da dignidade do homem. Se for pra deixar o índio na idade da pedra contra a vontade, ou para matar criança indígena, a Cultura é soberana. Só resta concluir, então, que a “democracia” ora vigente no país foi inventada numa aldeia xavante, já que o índio não pode atacá-la. Registre-se que a democracia pós-moderna é um legado cultural xavante para o mundo.
Entre oito e oitenta
Entre liberar o infanticídio e obrigar a ter um estilo de vida totalmente desaculturado, há um abismo. O que seria um índio totalmente desaculturado? Um proibido de falar a própria língua, por exemplo, e obrigado a falar só a do colonizador. Um nativo que passasse a considerar inferior qualquer vestígio de sua própria cultura, e tivesse de se vestir conforme a moda europeia, usando roupas quentes demais para o clima e fazendo penteados impossíveis no seu cabelo. Muito do colonialismo inglês foi assim na África; e nos Estados Unidos os índios que não foram mortos deveriam ser “assimilados”, isto é, proibidos de preservar traços da própria cultura tão elementares como a língua.
Esse é um dos assuntos em que o Brasil é melhor do que o resto. O Marechal Rondon, ele próprio descendente de índios e poliglota fluente em algumas línguas indígenas, tentava atrair os índios para a civilização seduzindo-os com mostras do poder da tecnologia. A fim de convidar à troca de presentes os índios mais isolacionistas, fazia coisas como botar uma vitrola tocando o hino nacional no meio do mato para impressioná-los. Esse positivista, crente na marcha da Humanidade rumo ao progresso, apenas tentava seduzi-los porque obrigá-los estava fora de questão. Rondon era um grande respeitador de culturas indígenas e, ao mesmo tempo, um entusiasta do progresso. Seria irrazoável decidir se os índios todos, in bloco, vão viver ou na Idade da Pedra, ou no agronegócio tecnológico.
Cultura nenhuma se reduz a um mero atraso tecnológico. A eletricidade chegou à Europa, à América e ao Japão sem que todos passassem por isso a falar uma só língua e a ter os mesmos costumes. Os índios não têm por que ser excluídos. A ideia de que só descendentes de europeus têm o direito de se beneficiar da ciência moderna é de um racismo evidente, e se antropólogos de boa fé não enxergam isso, é porque estão loucos.
Até ontem, relativismo extremo
No Brasil de hoje, colonizado pelo progressismo, há uma confusão dos diabos por causa de antropólogo louco do relativismo cultural que se junta com ambientalista hippie e aciona MP para impor aos índios um estado pré-cabralino. Nenhum descendente de europeu quer usar dos saberes e conheceres quinhentistas para tratar dor de dente, mas os índios estão obrigados a viver como se ainda não tivessem contato com metal. (Não obstante, há casos de sucesso de índios desenvolvimentstas que conseguem fazer valer as suas vontades, como este aqui.)
Até ontem, o normal das elites acadêmicas era o relativismo mais hiperbólico. Os povos tradicionais têm seus saberes e conheceres, então transmitir conhecimento científico é racismo. Como lembra Eli Vieira, “um exemplo recente da influência das ideias relativistas sobre a ciência na academia foi o de uma reunião de estudantes na Universidade da Cidade do Cabo (UCC), na África do Sul, que circulou nas redes sociais em 2017. Os estudantes diziam que deviam ‘descolonizar a ciência’, o que implicava que ‘a coisa toda deve ser eliminada’ e substituída por uma ‘perspectiva africana’ que aceita que ‘através da magia negra, você pode mandar um raio para atingir alguém’".
Mas 2017 parece distante como 1917. Mal se passaram 5 anos, e o mundo viu os progressistas achando que têm o direito inalienável de usar bandeira gay no Catar, sem contar com a resistência de autoridades locais. E aqui, na Terra de Santa Cruz, prenderam um xavante por “ataques à democracia”, sem que a Associação Brasileira de Antropologia desse um pio.
Absolutismo moral totalitário
Alguma dose de relativismo cultural é necessária à boa convivência entre os povos. Nunca as culturas foram todas iguais, e nunca serão – a menos que um poder de coerção insuportável tenha êxito global.
E é bem isso que as elites ocidentais, recém-ex-relativistas, passaram a querer de repente. A noção universalista de Direitos Humanos do pós-guerra já trazia conflitos com povos tradicionais. Vide o exemplo do infanticídio: se todo ser humano tem direito à vida, então índios que praticam infanticídio são contrários aos direitos humanos. Antes, dizia-se que eles não eram cristãos e deveriam ser catequizados. O Brasil foi feito assim, mas de repente isso virou “supremacismo branco” na boca dos relativistas culturais. Com a laicização, deixou de existir essa consciência de que os homens não são passivos perante a cultura e escolhem mudá-la com base em valores – sendo a conversão ao cristianismo uma das formas mais tradicionais na história do Ocidente. A laicização faz de conta que somos passivos, e que culturas com infanticídio não existem.
No século XXI, essa esquizofrenia só fez piorar, porque a noção de direitos humanos foi ficando cada vez mais radical. Se era tangível fazer os Estados nacionais convencerem suas tribos a pararem de matar bebês, de repente os direitos humanos passaram a se equivaler aos valores particulares das elites urbanas e acadêmicas do Ocidente. Creio que a melhor representação disso sejam as quotas para mulher no parlamento afegão criado pelos Estados Unidos – e que a Dona Tabata de Harvard quer pôr aqui, inspirada em Ruanda. Brasil, Afeganistão, Ruanda: tudo a mesma porcaria a ser civilizada, aos olhos de Harvard.
Imaginem se uma potência resolvesse sair tacando bomba em países que não respeitam a homossexualidade, nem dão igualdade de oportunidades a homens e mulheres, nem consideram o aborto um direito: iriam pelos ares uma porção de países do Oriente Médio, do Leste europeu, da Ásia, da África e da América Latina. Nisso, ia pelos ares a aldeia xavante, claro. Onde já se viu ficar contra a “democracia”? Não se pode tolerar os intolerantes. E todo o mundo é ou intolerante, ou espelho.
É tipo o Estado Islâmico, só que do bem.
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