Primeiro a modernidade exigiu do camponês analfabeto que ele aprendesse a ler e escrever a fim de julgar, por conta própria, as coisas da fé. Em seguida gente dessa mentalidade foi para um continente novo e criou um país onde cada homem deveria decidir os rumos da nação. No modelo medieval da Europa ocidental, uma Corte fixa decidia os rumos do reino, enquanto câmaras municipais viviam uma espécie de democracia que cuidava dos assuntos imediatos. Já nos EUA, em lugar da figura do rei, erigia-se a do intérprete da Constituição. Lá, grandes avanços ou retrocessos são atribuídos a variações na interpretação dada por um juiz da Suprema Corte. Posteriormente, surgiram agências de inteligência não-eleitas que velam pelos interesses de Estado de maneira secreta. Enquanto isso, o Brasil deixa a Amazônia ao sabor de eleições e de decisões de um Judiciário nem sempre muito preocupado com a soberania nacional.
Tendo se tornado uma potência econômica, os EUA exportaram seus vícios e virtudes para o mundo. Assim, o Brasil se tornou uma democracia em três ocasiões: no finzinho do século XIX, no fim da II Guerra Mundial e no fim da Guerra Fria. A democracia federalista do Café com Leite começou um pouquinho antes da Guerra Hispano-Americana, quando os EUA se consolidaram como potência ao vencerem a marinha espanhola, e seguiu de vento em popa enquanto os EUA venciam a I Guerra Mundial. Quanto às demais guerras – a II Guerra e a Guerra Fria –, os EUA saíram vitoriosos. Nosso modelo político imita o dos EUA quando vitoriosos. A própria democracia como sistema político ocidental por excelência data do término da I Guerra Mundial. Cerca de 100 anos depois, as tentativas de impor o modelo democrático se estenderiam ao Oriente Médio.
O voto tradicional na autoridade
Um corte cultural útil para tratar de boa parte do Brasil é a Idade Média versus a Modernidade. O Nordeste, o Sudeste e o Sul têm importante influência cultural europeia, mas o tempo da Europa é bastante diferente. No Nordeste celebrado por Ariano Suassuna, temos até hoje comemorações pela vitória de Carlos Magno sobre os mouros. Esses “europeus” medievais são bem morenos, mas nada mais medieval do que se misturar com pagãos e cristianizá-los por meio de sincretismo. O Nordeste é também a região mais católica, e tem uma população agrária muito mais próxima de um aldeão medieval do que da de um fazendeiro high tech do Centro-Oeste. O Nordeste é isolado, por isso seus traços medievais se fazem mais visíveis.
A imigração do europeu moderno foi especialmente importante de São Paulo para baixo. Ainda assim, no Rio Grande do Sul, o Sul do estado é de população antiga. Tal como o Nordeste, o Sul do Rio Grande do Sul tingiu o mapa eleitoral de vermelho.
Exigir que cada indivíduo forme um juízo sobre os destinos da nação é, ao meu ver, uma estupidez. Não acho sensato exigir que um camponês analfabeto, ou uma dona de casa comum, se inteirem do problema dos fertilizantes russos ou da regulação ambiental sobre terras indígenas. Não acho sensato exigir que o gari da metrópole esteja preocupado com as invasões do MST. Para piorar, tampouco boto lá muita fé no bom-senso de uma pessoa que se julgue capaz de pontificar sobre todas as questões científicas, morais e nacionais ao mesmo tempo. Só quem atende a essa demanda – mal e porcamente – é o chato que passa o dia no Twitter falando que a Ciência manda não votar em Bolsonaro porque ele é homofóbico e vai acabar com o planeta.
Como vota, então, essa mentalidade medieval? Vota conforme manda a autoridade. Pode ser o coronel, o padre ou o professor, mas certo é que o brasileiro tradicional sabe que ele próprio não tem discernimento para decidir sozinho os rumos da nação. Prova bem visível disso é que nordestino vota em poste, desde que indicado por alguém de confiança. Aqui na Bahia já é terceira vez que os baianos elegem um desconhecido. Primeiro foi Jaques Wagner, depois foi Rui Costa e agora foi Jerônimo Rodrigues. A mudança ocorreu quando parte dos coronéis que apoiavam ACM passou a apoiar o PT, já em 2006. O mais famoso deles é Otto Alencar.
A falência das elites brasileiras
A crermos nas Infalíveis (as urnas), Bolsonaro cresceu no Nordeste e diminuiu no Sudeste. Cresceu onde perdia e diminuiu onde ganhava. O crescimento no Nordeste era previsível, porque em 2018 uma massa politizada e urbana, muito diminuta no Nordeste, pesou na eleição. No segundo mandato, Bolsonaro já seria conhecido.
O problema do Nordeste, ao meu ver, são as elites. Em primeiro lugar, a elite coronelista. Deixando considerações morais de lado, o fato é que, se os coronéis tivessem garantido a Bolsonaro os votos perdidos no Sudeste, eles entrariam no próximo governo como aliados de prestígio, num país que tinha tudo para enriquecer. Em vez disso, eles serão responsáveis pela eleição de um governo rachado, que só agrada a Faria Lima, num país que tem tudo para empobrecer. Se os coronéis fazem caridade com o chapéu alheio, pegando o dinheiro do resto do país para investir numa região pobre, convém cuidar do chapéu alheio.
Mas o que observei em Salvador em reduto tradicionalmente de elite e antipetista indica uma mudança no comportamento das elites que não é só do Nordeste, muito pelo contrário. Minha seção tem cara de Copacabana, é cheia de velhinhos bem-nascidos e sempre vota contra o interior. Desta vez, as velhinhas estavam na doceria com adesivo 13. Nunca vi isso na minha vida.
Uma eleitora antipetista me explicava que pensava em votar em Lula porque ele é um velho doente que tem Alckmin de vice. Eu olho para Alckmin e só o vejo como um membro do grupo político de um certo censor.
Recuemos no tempo: em que período, na história do Brasil, a TV esteve junto com a universidade e a cúpula da Igreja católica? Não me ocorre nenhum. A Igreja era “de direita” nos anos 60, virou apoiadora velada do “aborto como questão de saúde pública” nesta eleição. A Universidade era marxista e contrária ao imperialismo, hoje só quer saber de importar dramas pequeno-burgueses dos EUA (combate à gordofobia etc.). Ambas eram contra a TV, agora são a favor. E a TV, que até ontem pintava Lula de satanás, resolveu que Bolsonaro é ameaça maior.
O narcotráfico e as communities
Outra novidade em minhas andanças por Salvador foi uma favela. Muito se falava do crescimento da criminalidade na cidade desde a pandemia. Hoje de manhã, inclusive, eu estava em sala de espera em consultório de medicina do trabalho ouvindo peões conversarem sobre um PM morto em Cosme de Farias e na bandidagem toda com fuzil na mão fazendo o L. Comentavam que até granada os bandidos têm agora. As tiazinhas, metendo-se na conversa, diziam-se aflitas com Lula no Complexo, porque Bolsonaro é amigo de gente perigosa e podiam meter uma bala nele ali. Os peões se fizeram de desentendidos e silenciaram.
Mas voltando. Há uma favela perto da qual já morei, onde já tive amigo morando e à qual já fui vez ou outra – inclusive na pandemia. Além disso, ela é caminho para a minha faculdade. Salvador tem um relevo bem complicado; é uma favela cuja entrada fica embaixo e eu vejo quando estou subindo a ladeira que dá na faculdade. Olhei de cima e vi uma entrada nova, toda colorida; uma hélices de ventilador faziam as vezes de catavento. Numa placa, lia-se algo como “bem-vindo ao Calabar, uma comunidade da paz”. Nunca tinha visto essa entrada, e qualquer soteropolitano sabe que o Comando da Paz é uma facção local. É isso: os traficantes agora fazem uma entradinha toda bonitinha para marcar território. Eu não fotografei o local porque desconfiei do rapaz que estava parado na subida. Logo o ouvi falando com um outro, embaixo, discutindo se era federal ou civil, falando das fardas. Isso foi na ida. Na volta, tinha dois olheiros. Essa é uma ladeira que subi por anos e nunca teve olheiro ostensivo assim.
Tudo o que é politicamente correto, agora, é “comunidade”. O termo vem da cultura dos EUA, mas logo somos forçados a falar de gay community, e chamar favela de “comunidade” – quem sabe, black community, onde os policiais entram por serem racistas. Se reclamarmos, estaremos violando as “regras da comunidade” do Twitter e do Facebook.
Então ficamos assim: o Brasil vai bem porque a democracia vai bem. A democracia vai bem porque os juízes são obedecidos e os direitos dos manos são respeitados nas comunidades. Cabresto é só coisa do interior. E se o seu filho se viciar em crack, os padres dão uns pratinhos de comida para mantê-lo na rua com dignidade. Mas às vezes o padre pode ser mais gentil e dar uma Pajero ao menor infrator, também. Ufa! Ainda bem que escapamos do agro, que é fascista!