Ouça este conteúdo
A esquerda mudou muito em pouco tempo. Antes ela tinha ares de catolicismo enrustido: fazia apologia da pobreza e da vida comunitária, lembrando um monastério. Seu antissemitismo ocasional também lembrava o antissemitismo católico: via os banqueiros judeus roubarem o tempo, enriquecerem de maneira ilícita por não trabalharem o solo. Usura era pecado.
Todos esses cacoetes católicos medievais foram substituídos por uma postura de nouveau riche: nada mais bonito que usar roupa de grife e ostentar como prova de empoderamento. Quando consegue alguma posição de status, a discrição está fora de questão. E até mesmo as bem-nascidas, outrora cheias de complexos e culpas, usam suas grifes sem medo de ser feliz: o correto seria todos terem dinheiro para comprar grifes. Se você nasceu pobre, ter uma Louis Vouitton é símbolo de justiça social. Se você nasceu rica, ter uma Louis Vuitton significa que você tem algo que deveria ser de direito de todos. O fato de algumas andarem com bolsas baratas é culpa do capitalismo.
De minha parte, não vejo muita diferença entre esse povo e aqueles funkeiros do tráfico que ficam ostentando marcas de luxo. Se o “comunismo” desse povo me desse uma Louis Vuitton, eu venderia e seguiria usando a minha Luís Vitão: uma bolsa de couro de bode da qual gosto bastante.
Ao escolher minha bolsa de bode, eu apoiei o artesão que vende couros na Ladeira da Barroquinha. O artesanato vendido ali é em parte feito na oficina do dono, e em parte trazido de todo o Semiárido, sendo os mais coloridos e elaborados os cearenses. São feitos por brasileiros livres. Se eu escolhesse uma Louis Vuitton, bancaria uma das muitas grife europeias que usam mão de obra escrava dos campos de concentração chineses. Posso dizer que o fetiche dos esquerdistas (e funkeiros) com marcas de luxo é ególatra, além de indiferente a um genocídio real.
Ficamos assim: a esquerda, que antes emulava as virtudes monásticas da austeridade e da vida comunitária, hoje é nouveau riche e ególatra. É como se a caricatura do capitalismo pintada pelo esquerdista monástico tivesse ganho vida dentro da própria esquerda. O dinheiro não faria acabar a solidariedade entre os homens? Os conservadores costumavam se contrapor apontando a caridade privada. Mas aí estão os esquerdistas fãs de marcas que usam trabalho escravo, sem darem a mínima para isso. O esquerdista monástico diria que o capitalismo aliena. O esquerdista nouveau riche prova que sim.
Esquerda pró-corporações
Temos hoje, então, uma esquerda que adora marcas de luxo e não tem vergonha disso. Daí não se segue, porém, que isso tenha feito dela uma apoiadora do livre mercado que possibilitou o surgimento de tais marcas. São como crianças mimadas querendo que um Grande Protetor satisfaça seus desejos.
A novidade é que esse protetor não necessariamente é o Estado. Pode ser um empresário iluminado. Hoje vemos coisas impensáveis para a década de 2010, que são esquerdistas em coro elogiando empresários, destituídos de qualquer tipo de ceticismo. O PT fez Joesley Batista e Eike. No entanto, daí não se seguiu que Joesley fosse vendido ao público como um grande homem capaz de moralizar a sociedade. A coisa é diferente com Luiza Trajano, que de oligopolista do varejo foi alçada a luminar do pensamento social, ungida à qual devem se curvar as leis. A Constituição e as leis trabalhistas proíbem a discriminação racial em contratações — mas Lulu do Magalu pode tudo, e leis podem ser atropeladas para que ela abra uma vaga de estágio black only. Nada que os “operadores do direito” não resolvam com uma hermeneuticazinha.
Se repararmos bem, os oligopolistas estão, com uma hermenêutica aqui, um lobby ali, uma vista grossa acolá, atropelando as leis criadas pelas democracias liberais. Vejam o caso dos aplicativos de motoristas: são baratos, são eficientes… e não pagam imposto. Qualquer empresário brasileiro tem que pagar bastante imposto, mas Travis Kalanick (dono da Uber) pode repassar os custos para os motoristas e enganar o fisco de países de todo o mundo com empresas de fachada.
Não estou dizendo que o sistema tributário brasileiro é bom; não estou dizendo que táxi é melhor do que Uber; não estou sequer tratando de legislação trabalhista. Estou dizendo que todos os grandes empresários que rezam a cartilha do progressismo têm carta branca para atropelarem os Estados democráticos. (Sobre a Uber, lembrem que ela mandou cartinha para os clientes xingando-os de racistas. Como toda Big Tech, é progressista.) O cuidado mais elementar que todo Estado tem é com o fisco. Se vemos o Estado tolerar a evasão fiscal explícita, é porque o problema é grave.
Mas voltemos à caracterização dessa esquerda nouveau riche. Seu sonho é ser bancada por empresário, ganhar salário alto e viver em luxo. Em vez de querer viver diretamente do Estado, como o concursado à moda antiga, o esquerdista se tornou um sócio do empresariado progressista. O empresariado fica encarregado de arrancar o máximo possível do dinheiro de impostos, o esquerdista fica encarregado de tornar isso legítimo na opinião pública. Depois o empresário dá ao esquerdistas migalhas capazes de bancar a sua vida de classe média alta. Pode inclusive bancar veículos de comunicação quebrados por falta de público. E quem trabalha? Ora, os uigures lá em Xinjiang.
A direita também mudou
Desde a redemocratização, a direita mais visível é a liberal. São os fãs de Roberto Campos que se mantiveram fiéis ao seu legado liberalizador, que se opunha ao espírito estatista da Constituição de 1988. A direita era associada ou à defesa do regime militar, ou à ideia de Estado Mínimo.
Com o avanço do progressismo sobre as instituições, com a suspensão dos diretos humanos e garantias individuais que veio à tona com a pandemia, de repente a direita começa a ser caracterizada pela conservação do Estado democrático de direito tal como o conhecemos, que inclui a liberdade de expressão.
Creio que os velhos termos “direita” e “esquerda”, hoje, mascarem uma divisão nova. Chamamos de “esquerda” quem é a favor da usurpação do Estado pelo empresariado progressista e de “direita” quem é a favor da preservação de um Estado democrático com eleições livres e limpas.