Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Israel x Palestina

Numa guerra, a primeira vítima é a verdade, e ceticismo é obrigação moral

Yoav Gallant, ministro da defesa de Israel, chama palestinos de animais humanos. (Foto: Reprodução/Twitter)

Ouça este conteúdo

Quem vai à guerra e sobrevive normalmente volta com problemas de ordem emocional ou psicológica. Nos EUA, onde há um ímpeto muito grande em estudar e categorizar as coisas, e ao mesmo tempo há muitos ex-combatentes, o nome desse tipo de problema foi variando com o passar dos anos. Há um stand-up de George Carlin sobre isso: no começo era shell shock, depois virou battle fatigue, operation exhaustion e por fim (?) PTSD. Mas chame-se de qualquer desses nomes, ou de nome nenhum, o fato é que quem volta da guerra volta abalado. E não é por menos: ver carnificina e barbárie faz mal.

Há o problema da possível morte iminente, claro. Mas podemos ver por outra via que o mero fato de ver imagens faz mal: policiais que trabalham só com imagens violentas, analisando material de pornografia, têm seu psicológico prejudicado, ainda que não tenham sua integridade física minimamente ameaçada quando assistem às cenas. Cenas essas que vão parar em sites de pornografia gratuita que lucram com o tráfego de internet, e são vistas por “lazer” por adolescentes e até crianças.

Um resultado disso é as meninas morrerem de medo de fazer sexo um dia, e os meninos acharem toda mulher normal muito sem graça. No mínimo, tem que ter peitos gigantes e adorar ser estrangulada (veja-se a esse respeito Louise Perry). No fim das contas, a geração que mais vê pornografia é a que menos faz sexo: são depravados e celibatários ao mesmo tempo. E tudo dodói da cabeça, deprimido, tomando remédio controlado.

Jovens virgens veem vídeos de violência porque são jovens e, portanto, idiotas. O que não se entende é a compulsão por vídeos de massacres de civis em guerras. Se os sites de pornô grátis criaram donzelos depravados, o Twitter criou o burguês sensível que, num dia, viu mais barbárie do que um militar calejado vê numa semana. O militar é pago para isso, são ossos do ofício. E o burguês sensível, vê a troco de quê?

Cosmopolita, dirá que precisa ver as misérias do mundo para tomar um lado. Tomar um lado, no caso em tela, significa fazer textão em rede social, vigiar quem não fez textão em rede social, cortar relações com quem pensa diferente, cortar relações com quem tem relações com quem pensa diferente. E só. O burguês sensível não comanda tropa alguma, nem possui fuzis. Então tudo o que podem fazer é sofrer: ser, quem sabe, agnus dei qui tollit peccata mundi. Será?

Eu não acredito nisso. Todo o mundo sabe que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. No Brasil, que nem tem guerra, estamos desde outubro de 2022 alertando a uma população vulnerável (idosos e bolsonaristas roxos viciados em redes sociais) que não se deve acreditar em qualquer coisa que se vê na internet. No começo da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, fomos bombardeados por imagens de mulheres bonitas posando fuzis, apresentadas como soldadas ucranianas que pegavam alegremente em armas para defender sua pátria. Logo se descobriu que as imagens eram de modelos, e se tratava de um esforço de propaganda. Lembro que eu mesma caí. Uma guerra começava, e o país alvo do ataque corria para o Twitter para postar fotos de modelos. A escolha é bizarra, mas a corrida ao Twitter é elementar. Porque na guerra, a primeira vítima é a verdade. Propaganda é arma de guerra: serve para infundir ânimo nos seus, derrotismo nos inimigos, além de influenciar decisões diplomáticas. Neste último caso, resta a importância do burguês sensível.

Bom, então temos dois motivos para não sair vendo todo vídeo de carnificina de guerra que apareça pela frente: primeiro, faz mal; segundo, pode ser mentiroso. O meu colega Polzonoff, por exemplo, escreveu: “O que me interessa é apenas e tão-somente o que meus olhos veem e meus ouvidos ouvem, por mais que eu não consiga compreender o idioma: as crianças de no máximo três anos presas em gaiolas (EM GAIOLAS!)”. Ora, no momento em que li esse texto, já havia visto usuários pró-Israel do Twitter avisando que tinham caído numa fake news e as imagens, felizmente, eram falsas. (Você pode ver Bruna Torlay aqui, e ver a origem do boato aqui.) De todo modo, quando procurei por “israeli children cage” pela primeira vez, aparecia a mesma imagem em sites que desmentiam o boato de que os israelenses trancavam crianças palestinas em gaiolas. A história mais completa da foto que achei foi esta aqui; a foto é de 2010, da Reuters, e as crianças são árabes.

Poder-se-ia dizer, claro, que é uma imagem real, ainda que a história seja falsa. É possível se martirizar vendo todas as fotos de desgraças que apareçam pela frente. Quem sabe, então, não devêssemos tomar partido da questão Israel X Palestina assistindo a todos os vídeos de desgraça que aparecessem pela frente cuja procedência fosse certa? Não é difícil imaginar o que resultaria daí. Pagar por cobras mortas, no governo inglês da Índia, levou os indianos a criarem cobras para matar. Numa guerra de propaganda feita para emocionar burgueses sensíveis, não me admiraria que se criasse um set de crimes de guerra, assim como já há produtoras que montam armadilha pra estuprar “modelos” e botar os vídeos no Pornhub. Isso acontecendo, a culpa é de quem?

Outro problema é que crimes de guerra não costumam ser filmados, e que o acesso à imprensa ocidental é desigual. Por exemplo: agora Israel fez um cerco a Gaza e lançou bombardeios aéreos. Gaza não é um Estado; é pouco provável que disponha de meios para proteger os seus civis. Parece factível que o cerco e os bombardeios não vitimem civis, entre os quais se contam idosos e crianças? Então se não filmar, não conta? A mim parece óbvio que o lado mais fraco vai filmar só as próprias vitórias, não os próprios fracassos.

Eu tomei conhecimento do cerco da seguinte maneira: um dos perfis em inglês que eu segui no Twitter por ser anti-woke e antivacina de covid, uma médica, postou um vídeo em hebraico com legendas em inglês no qual um homem, supostamente o Ministro da Defesa de Israel, anunciava um cerco a Gaza dizendo: “Nada de comida, nada de eletricidade, nada de água. Estamos combatendo animais humanos.” Sendo verdade, é possível enxergar isso de outra maneira que não limpeza étnica?

Fui procurar se é verdade e encontrei na Associated Press a notícia do cerco a Gaza. Não mencionava a expressão “human animals”, mas informava que “o Ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, ordenou um ‘cerco completo’ a Gaza, dizendo que as autoridades cortariam a eletricidade e cortariam a entrada de comida e combustível.” Quanto à água, a matéria mencionava dano a três estações de água que pararam de abastecer 400 mil pessoas, mas não falava que isso era parte do cerco prometido pelo ministro. Menciona-se ainda que, se morrer civil por causa das medidas anunciadas, será considerado crime de guerra.

Será que a Associated Press omitiu algo tão importante quanto a desumanização dos palestinos pelo ministro israelense? Bastou pesquisar “Yoav Gallant human animals” no Google para encontrar as notícias do cerco dadas pelo Times of Israel e pela Al Jazeera, que confirmavam o insulto. No veículo israelense, porém, omite-se a parte do “sem água”; no do Catar, exibe-se o mesmo vídeo que vi no Twitter, e com mais ou menos a mesma tradução, que inclui a proposta de deixar Gaza sem água. Quanto a deixar sem água, será que a Al-Jazeera mentiu? Não sei hebraico, não tenho como dizer. com certeza, mas no vídeo ele lista quatro coisas com os dedos. Se a quarta coisa a ser cortada não for água, é alguma outra não mencionada.

Se a Associated Press omitiu pelo menos uma coisa tão importante, é possível que tenha omitido duas – e que deixar civis sem água seja um crime grave demais para haver uma operação abafa por parte da mídia amiga. Antes que se comece o chororô sobre toda a mídia ser de esquerda, mais uma vez recorro ao Twitter para reproduzir esta declaração de Paula Schmitt, jornalista com experiência no Líbano: “Experiência pessoal: tive uma briga mastodôntica com a Folha em 2004. O jornal alterou minhas palavras p/ favorecer uma narrativa pro Israel. Segundo o editor, as ordens p/ mudar meu texto tinham 'vindo de cima.' O caso virou um breve artigo no Observatório da Imprensa. Outro caso que vivenciei: o Estadão encomendou uma entrevista minha com Saad Hariri, e ofereceu o maior valor q eu já vi por uma reportagem (nível New Yorker de pagamento p/ Seymour Hersh). O editor achou por bem cortar uma pergunta sobre Israel descumprindo resoluções da ONU.”

No mais, o fato é que quem segue a Al-Jazeera vê crueldades perpetradas por israelenses contra palestinos antes desta guerra (vide este aqui, por exemplo, que concerne ao abastecimento d'água). Nossa imprensa comum fica na dúvida se segue a linha de Jean Wyllys (que é esquerda pró Israel, entendido como uma democracia com liberdade para gays), ou se repete slogans de DCE sem se aprofundar na busca por informação não-ocidental, neste último caso. Você vai ver militante do PSOL defendendo os crimes de guerra do Hamas e até compartilhando notícias falsas, mas não vai vê-los citando veículos profissionais como a Al-Jazeera ou o Russia Today.

O Hamas evidentemente cometeu bárbaros crimes de guerra. Reconhecer isto não pode implicar o apoio aos crimes de guerra perpetrados por Israel. Isso é errado de um ponto de vista humanista (se formos laicos) e cristão; e é errado de um ponto de vista geopolítico. O Brasil não pode engolir propaganda e, irrefletidamente, tomar partido da beautiful people ocidental, justo quando tem sua soberania ameaçada por ONGs e governos ocidentais. Não adianta nada desconfiar da mídia ocidental quando se refere a incêndios na Amazônia e engolir tudo quando se trata dos inimigos do Ocidente.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.