| Foto: Daniel Caron / Arquivo Gazeta do Povo
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Espero que fique claro para o leitor que a ideologia de Milei, o anarcocapitalismo, não pode ser categorizada inequivocamente como de direita. Como vimos no último texto, ela foi inventada por um sujeito chamado Murray Rothbard e defende que o homem viva sem Estado, respeitando apenas uma única Lei: ninguém deve ter sua propriedade violada. A própria lesão corporal é entendida como violação da propriedade, porque Rothbard entende que cada homem (e cada mulher) é autoproprietário, dono do próprio corpo e dos próprios pensamentos.

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A partir disso, é fácil discutir (e defender) a moral da Nova Esquerda, já que a autopropriedade permite o sexo como mero lazer, o aborto, o uso de qualquer tipo de droga, a prostituição; assim como dificulta a moral tradicional, já que os pais têm direito a abandonar os filhos e a vendê-los, e nenhuma promessa que vá além da propriedade é legítima, de modo que os votos do casamento não podem ter validade.

É fácil apontar o neoesquerdismo velado de Rothbard. Quanto às crianças, remeto ao capítulo d’A Ética Libertária (Instituto Ludwig von Mises, 2010) intitulado “As crianças e os seus direitos”. Quanto ao neoesquerdismo difuso, cito uma passagem: “No campo das políticas morais, as pessoas estão cada vez mais convencidas de que o Proibicionismo desmedido da política governamental – não apenas no âmbito do álcool, mas também em assuntos como pornografia, prostituição, práticas sexuais entre ‘adultos em comum acordo’, drogas e aborto – é uma invasão imoral e injustificada do direito de cada indivíduo fazer suas próprias escolhas morais, e não pode, por conseguinte, ser imposto na prática. As tentativas de implantá-lo só produzem adversidades e um estado policial autêntico. Está próximo o tempo em que as pessoas irão reconhecer que o proibicionismo nessas áreas de moralidade pessoal é totalmente injusto e ineficaz, como ocorreu no caso da proibição das bebidas alcoólicas” (p. 352). Usar a proibição do álcool é um sofisma, haja vista o ineditismo de tal iniciativa na história ocidental. (Já escrevi sobre esse tipo de coisa aqui.)

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O “esquerdismo” menos conhecido do anarcocapitalismo é a legitimação de movimentos de ocupação como o MST no Brasil e os colonos sionistas na Cisjordânia; em suma, de movimentos que não respeitam a propriedade em países que não são os EUA. A razão disso é que Rothbard tem seu próprio critério para determinar se uma propriedade é legítima. Afinal, se ele é um anarquista que considera o Estado imoral, é lógico que não tem por que aceitar escrituras públicas.

Para Rothbard, o que faz de alguém o dono original de um dado terreno é a sua alteração por meio do trabalho, desde que ele esteja vazio e não tenha havido um dono anterior que um dia o trabalhou e tenha descendentes para herdá-lo. A propriedade legítima deve, portanto, remontar a um homem que encontrou terra virgem (ou abandonada e sem dono conhecido) e a trabalhou.

Ora bolas, caçarolas (como diria Bob Fields). Não existem muitos lugares no mundo onde se pode falar de descoberta de terras. É impossível, numa localidade de Paris ou de Bagdá, perguntar quem foi aquele que encontrou virgem a terra, trabalhou-a e depois decidiu vendê-la. Por conseguinte, só há alguma chance de falarmos em terras virgens descobertas no continente americano. E ainda assim, só tirando os índios da jogada – o que os anglófonos efetivamente fizeram, praticando uma limpeza étnica contra as tribos que lá viviam.

Um exemplo hipotético escolhido por Rothbard é o de Terça-Feira se apresentando a Crusoé como dono de toda a ilha recém-descoberta. Ele seria ilegítimo, porque Terça-Feira não trabalhou toda a ilha, mas só um pedaço dela. Quem é um pouco versado em história não deixará de pensar na entrega, pelo Papa, do Novo Mundo às Coroas ibéricas. As colônias britânicas, com índios mortos e sem herdeiros, se enquadram perfeitamente no modelo de propriedade legítima: são terra virgem (ou quase) que os colonos britânicos trabalharam à revelia do Direito Canônico vigente na maior parte da Europa. Por outro lado, a América Ibérica é lida por Rothbard como terra feudal cheia de servos. Nenhum latifundiário ibérico seria legítimo, porque nunca seria ele mesmo que iria trabalhar toda a terra. Por isso, no Brasil e em qualquer lugar do mundo onde tenha havido escravidão (só a parte pobre dos EUA) e feudalismo, é justo rebelar-se contra o grande proprietário a fim de confiscar-lhe a terra.

Como se vê, o anarcocapitalismo, tal como o wokismo ou identitarismo, é uma ideologia pensada contra o Brasil.

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