Certa feita escrevi uma resenha do livro de Kogos aqui neste jornal e me surpreendi bastante com a quantidade de comentários furiosos, que tomavam as dores do jovem. Não raro, ouço e leio frases que começam assim: “Eu não sou ancap, mas…” Concluo, portanto, que o anarcocapitalismo é uma coisa ridícula da qual a maioria dos adeptos se envergonha, pois em geral sabe ser uma coisa ridícula. Aí, quando veem Kogos apanhando, tomam as dores dele e vêm chamar a crítica de esquerdista – como se ser “de direita” fosse o mesmo que ser anarcocapitalista.
Esse é um erro compartilhado tanto pela nova direita quanto pela nova esquerda. Por isso, quero convencer o maior número possível de pessoas de que o anarcocapitalismo não só é ridículo, como é uma ideologia crucial para o wokismo. Cancel culture, ou cultura do cancelamento, é a maneira como os identitários (ou wokes) punem aqueles que desobedeceram à sua moralidade. Os senhores sabem quem inventou a teoria que funda essa punição? Murray Rothbard, em A ética da liberdade (Instituto Mises Brasil, 2010), publicado pela primeira vez em 1982.
Embora haja muito revisionismo histórico no anarcocapitalismo, o fundador da ideologia e do movimento é Murray Rothbard (1926 – 1995). Ele cunhou o termo “anarcocapitalismo”, idealizou a bandeira (que une o negro do anarquismo ao amarelo do ouro) e escreveu as obras filosóficas. Ao menos em A ética da liberdade, Rothbard usa os adjetivos “anarcocapitalista” e “libertário” como sinônimos.
É fácil explicar essa ideologia como a decorrência de duas crenças estapafúrdias: (1) a de que o livre mercado constitui a ordem natural autossuficiente e (2) que a lei e os contratos têm uma validade autossuficiente.
Já tratei das origens filosóficas da primeira crença estapafúrdia neste texto. De todo modo, cabe ressaltar que, uma vez que se acredite na harmonia e na perfeição do laissez faire, qualquer interferência social não-mercadológica é vista como a introdução da desordem. Parafraseando Rousseau, digamos que para o libertário “o mercado é bom, a política/o governo o corrompe”. Assim, para voltar a um idílio natural do qual não temos notícia, é preciso destruir qualquer intervenção governamental no mercado.
Quanto à segunda crença estapafúrdia, a sociedade libertária seria aquela em que todos os deveres e direitos se reduzem à propriedade: temos o dever de respeitar a propriedade alheia e o direito a ter a nossa propriedade respeitada. Graças à noção de “autopropriedade”, segundo a qual cada um é dono de si, é um crime matar um homem inocente, porque assim você está roubando o homem de si mesmo (!) – e daí se segue o lema "meu corpo, minhas regras", no qual a mulher está autorizada a extirpar do seu corpo um parasita que não produz riqueza e com o qual ela não firmou nenhum contrato (veja-se o capítulo "As crianças e seus direitos").
Uma vez que se acredite na harmonia e na perfeição do laissez faire, qualquer interferência social não-mercadológica é vista como a introdução da desordem
Como se adquire a propriedade de modo legítimo? Transformando, pelo trabalho, aquilo que não tinha dono (a chamada “apropriação original”), ou por trocas voluntárias, formalizadas por meio de contratos. Quem vai arbitrar um conflito? Uma corte privada, contratada. Quem vai executar a decisão, caso seja necessário o uso da força? Uma polícia privada, também contratada. O contrato existe por si e você que dê seus pulos para contratar tribunal e polícia que não só julguem o caso ao seu favor, como também honrem o contrato que fizeram com você. E pense que a outra parte também tomará uma iniciativa similar…
No capítulo “Situações de vida ou morte”, vemos o descolamento da realidade. Rothbard pensa no cenário de um naufrágio para discutir o que as vítimas fariam diante de um bote com apenas 8 lugares, ou como deveriam agir dois homens que precisam agarrar uma única tábua para sobreviver. Segundo ele, a menos que o dono do bote tenha estabelecido algo em contrário, durante a emergência o bote é considerado sem dono; assim suas vagas são daqueles que chegarem primeiro (pela “apropriação original”), e quem empurrasse alguém para o mar seria criminoso. Obviamente, se for para disputar a tapas e pontapés, os homens levam vantagens sobre as mulheres e crianças; mas considerações morais não devem ser levadas em conta ao se estabelecer o dever legal: vale o que diz o proprietário.
O caso dos homens brigando pela tábua é mais insólito ainda: “a primeira pessoa que chegar à tábua é ‘dona’ dela durante a ocasião [emergencial], e a segunda pessoa, ao jogá-la para fora, é no mínimo um violador da propriedade do primeiro e está também, talvez, sujeito a ser processado por um ato de assassinato. Novamente, nenhuma das pessoas pode usar força contra a outra para impedir que ela chegue à tábua, pois isto seria um ato de agressão física contra esta pessoa” (p. 222) Dois homens sozinhos em luta pela sobrevivência, um morre. Como será possível provar que ambos não agiram como bons libertários e o sobrevivente era o legítimo proprietário da tábua? Ninguém sabe, nem interessa a Rothbard.
Ora, aquela lei que nós seguimos sem ligar para a coerção é a lei moral – aquela que Kant trazia no coração e não sujeitava a nenhum juiz terreno. Em bom português, Rothbard cria uma moralidade baseada unicamente na propriedade; no entanto, ilude os seus leitores fazendo crer que se trata de um corpo jurídico, e que há liberdade para cada qual aderir a uma moralidade peculiar.
Assim, a moral deixa de ser entendida como uma coisa social e no mais das vezes tácita, capaz de ir mudando com o tempo por meio do consentimento implícito, e passa a ser vista como um código de ética pessoal. É como se cada indivíduo criasse sua carta de princípios personalíssima e então fosse viver em sociedade tendo como preocupação apenas não lesar a propriedade alheia, nem ter a própria lesada por outrem.
Se eu acho a sua ética pessoal espúria e quero puni-lo por isso, que devo fazer? Não posso chamar a polícia, porque não firmamos nenhum contrato. Não posso lhe dar uns catiripapos, porque isso lesa a sua propriedade (o seu corpinho). Resta eu fazer uso de minha liberdade de expressão, que é absoluta e inclui até difamação (porque eu sou dona dos meus pensamentos e corpo, mas não da minha reputação, que é do pensamento dos outros), e convocar um boicote contra a sua pessoa. Você pode ficar sem ter o que comer, mas Rothbard declara lícita até a exposição de recém nascidos por pais que não queiram criá-los, quanto mais isso. Uma coisa é assassinar por ação, outra por omissão. Pela ética de Rothbard, a primeira não pode, a segunda pode – porque ser obrigado a algo que não esteja estabelecido em contrato é o mesmo que escravidão, a qual é entendida como coerção ilegal.
O que temos, então, é uma politização histérica de cada aspecto da vida econômica, que naturalmente inclui a profissional e até a familiar (pois parentes se ajudam materialmente). Cito Rothbard, no brevíssimo capítulo “O boicote”: “Um boicote é a tentativa de persuadir outras pessoas a não se envolverem com alguma pessoa ou firma específica – seja suspendendo relações sociais ou concordando em não comprar os produtos da firma. Moralmente, um boicote pode ser usado por motivos absurdos, repreensíveis, louváveis ou neutros. [… O] boicote é um dispositivo que pode ser usado por pessoas que desejam tomar providências contra aqueles que se engajaram em atividades que consideramos lícitas, porém imorais.” Temos, portanto, a cultura do cancelamento: ninguém quer levar ninguém à Justiça; quer, em vez disso, usar a turba para punir aqui e agora, mantendo o resto da sociedade aterrorizado. No mesmo capítulo, Rothbard cita como legítimo aquilo que é apontado por Norman Finkelstein como precedente da cultura do cancelamento: a lista negra efetuada por patrões – que levou artistas ao suicídio no século passado, durante o pânico anticomunista.
Dado que o anarcocapitalismo exclui a Justiça, é muito natural que resulte em justiçamento. E como o cancelamento não é caracterizado pela agressão física nem pelo roubo, então está em plena harmonia com o anarcocapitalismo.
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