N’ “A história da riqueza no Brasil”, Jorge Caldeira teve uma sacada: o poder municipal no Brasil goza de mais estabilidade do que a maioria dos países europeus e do que o poder central brasileiro. Os portugueses chegaram aqui no século XVI, apresentaram as câmaras e as eleições aos mamelucos, e, entre uma flechada e outra, as câmaras municipais funcionaram quase ininterruptamente desde o século XVI até o presente. Nestes cinco séculos, a única vez em que o poder central ousou interferir diretamente em municípios foi no Estado Novo.
Por outro lado, se olharmos para a cúpula do poder no Brasil, é uma confusão dos diabos e uma montanha de golpe. Por mais que haja coronelismo e sujeição a caciques estaduais, de fato é uma sacada notar que sempre houve no plano municipal uma admissão tácita da democracia. Na cúpula do poder considerava-se legítimo dar um golpe e acabar com eleições. Nas bases municipais, não. Por mais tirânico que seja um coronel, acabar com eleições não é uma opção.
Essa democracia de base, naturalmente, não foi inventada no Brasil. Os portugueses a trouxeram da Europa medieval. O diferencial brasileiro é que, estando a Coroa do outro lado do Atlântico, a única forma de governo conhecida por brasileiros isolados no interior era essa espécie de democracia.
Ora, também nas treze colônias inglesas da América do Norte se herdaram pequenas instituições medievais europeias com um Atlântico separando a Coroa dos colonos. E é aqui que voltamos a Tocqueville, que, tendo resolvido estudar a fundo as instituições do Antigo Regime após publicar “A democracia na América”, escreve:
“Lembro-me de, ao procurar pela primeira vez, nos arquivos de uma intendência, o que era uma paróquia no Ancien Régime, ficar surpreso ao encontrar outra vez, nessa comunidade tão pobre e tão assujeitada, vários dos traços que me haviam chamado a atenção nas comunas rurais da América [do Norte] e que eu havia julgado então, erroneamente, ser uma singularidade particular ao Novo Mundo. Nenhuma das duas tem representação permanente […]; ambas são administradas por funcionários que agem separadamente, sob a direção da comunidade inteira. Ambas têm, de tempos em tempos, assembleias gerais em que todos os habitantes, reunidos num só corpo, elegem os seus magistrados e regulam seus principais afazeres. Ambas se assemelham tanto quanto um vivo pode se assemelhar a um morto.”
A hipótese de Tocqueville então é que “na Idade Média os habitantes de cada vila formaram uma comunidade distinta do senhor. Este dela se servia, vigiava-a, governava-a; mas ela possuía em comum certos bens dos quais ela tinha propriedade; ela elegia seus chefes e administrava a si própria democraticamente.” Enquanto na América essa instituição medieval se desenvolveu sozinha e ganhou novos contornos, na França ela era reprimida pelo Absolutismo.
O maior crime do Absolutismo, segundo Tocqueville
Tocqueville se empenha em mostrar que o centralização do poder promovida pela Revolução Francesa apenas aprofundava uma tendência já avançada no Ancien Régime. Assim, a maior baixeza perpetrada pela Coroa, ao seu ver, foi o ataque às liberdades municipais. Cito-o:
“As eleições só foram abolidas de maneira geral pela primeira vez em 1692. As funções municipais foram então postas em ofício, o que quer dizer que o rei vendeu, em cada vila, para certos habitantes, o direito de governar perpetuamente todos os outros.”
É como se o governo federal hoje, ou a Coroa antes, resolvesse vender os cargos de prefeito ou ou alcaide e vereador, cancelando as eleições. “Luís XI restringiu as liberdades municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luís XIV as destruiu sem temer. Prova disto é que ele as devolveu a todas as vilas que pudessem comprar. Na verdade, ele queria menos aboli-las do que traficá-las, e, se as aboliu de fato, foi, por assim dizer, sem pensar, por puro expediente de finanças; e, coisa estranha, o mesmo expediente durou oitenta anos. Sete vezes, nesse período, vende-se às vilas o direito de eleger seus magistrados; e, quando elas sentiram outra vez o gosto da liberdade, é-lhes tomado outra vez para revender.”
A desculpa era sempre o estado ruinoso das finanças reais; em vez de criar imposto, vendia-se a liberdade das vilas. “Eu não vejo traço mais vergonhoso em toda a fisionomia do Antigo Regime”, diz Tocqueville.
A Constituição de 88 e os municípios
Em 1692 e nos 80 anos que se seguiram – ou seja, enquanto a França sofria com esse arbítrio real –, os “homens bons” das cidades e vilas do Brasil estavam elegendo os seus alcaides (já que não levamos o nome latino de magistrados) e vereadores. Nunca tivemos aqui ameaça tão grave às liberdades municipais quanto as sofridas pelos franceses.
Os municípios brasileiros vivem de imposto sobre serviços. Tanto São Paulo quanto Cachoeira, na Bahia, são municípios que arrecadam o imposto sobre serviços. Evidentemente, a população de São Paulo é muito maior e arrecada muito mais do que a população de Cachoeira, que conta com 30.000 distribuídos entre um pequeno núcleo urbano e alguns distritos rurais.
Se um município como São Paulo arrecada muito, também é certo que tem muito mais despesas do que Cachoeira. Os serviços públicos municipais costumam ser saúde e educação básica, além de pequenas obras de infraestrutura. Por mais ricas que sejam as capitais, grandes obras de mobilidade urbana, tais como construção de metrôs, costumam vir do governo estadual. Este fica responsável pela polícia desde a República Velha, mas têm surgido (ao menos pela Bahia, e inclusive em Cachoeira) as guardas municipais.
Seria possível os pequenos municípios rurais do Brasil custearem seus próprios serviços e suas obras com o dinheiro que arrecadam? Talvez: são poucas crianças, pouco doentes e poucos problemas de violência urbana (noves fora o novo cangaço).
Mas a poderosa Assembleia Constituinte, lá em Brasília, decidiu dispor na Constituição de 1988 sobre os gastos municipais. Antes de 1988, o cargo de vereador podia ser, nas cidades pequenas, destituído de recompensa financeira. Em 1988, porém, a Constituição amarrou as administrações municipais a gastos com vereadores, e o gasto com vereadores ao gasto com deputados estaduais.
Tome-se o exemplo de Cachoeira. No capítulo “Dos Municípios” da Constituição, Cachoeira, que tem nove vereadores, pode ter no máximo treze, pois é um dos “Municípios com mais de 30.000 (trinta mil) habitantes e de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes”. (Este limite particular foi estabelecido em 2009.) No mesmo capítulo, obriga-se a dar um “subsídio” aos vereadores. Nos dias de hoje, após uma emenda constitucional que passou em 2000, o limite de remuneração de um município como Cachoeira é de 30% de um deputado estadual.
Na redação original de 88, se eu bem entendi, dizia-se somente que “a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito”.
E as remunerações dos deputados estaduais? Desde 1998, têm um limite máximo de 65% dos deputados federais.
Ora, daí resulta que um aumento no Congresso — atribuído dos deputados federais a si mesmos lá em Brasília — tem um efeito cascata nos municípios. No meu entendimento, seria mais saudável o contrário: os políticos que têm contato mais próximo com os cidadãos, que são os vereadores, deveriam ser a medida do poder central, e não o contrário. Antes da Constituição, seria preciso os vereadores convencerem uma cidadezinha de que eles podem e merecem ter um salário. Hoje, o salário do vereador é uma famigerada garantia constitucional.
É óbvio que isso altera o perfil do político municipal. Antes, podia-se ser vereador sem esperar uma compensação financeira por isso. Hoje, em municípios pobres, candidatar-se a vereador é como ganhar um jackpot, com direito a assessores-parentes-eleitores.
Com os gastos amarrados em remunerações duvidosas impostas pelo poder central, o município fica dependente do mesmo poder para mendigar emendas parlamentares e programas federais para aumentar a própria receita.
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