Como vimos, Tocqueville considera que o feito da Revolução Francesa consistiu em abolir as instituições políticas medievais e instaurar um regime moderno. O grande vício da Revolução – a saber, sua concentração de poder – já se desenvolvia antes com o Absolutismo. As instituições feudais eram descentralizadas: os plebeus tinham em suas vilas câmaras eletivas, numa espécie de democracia primitiva, e estavam sujeitos tanto à autoridade do nobre quanto do Rei e da Igreja. Se os plebeus tinham destaque público por meio de eleição, os nobres já nasciam nobres.
Os nobres da época da Revolução eram uma sombra pálida do que foram na Idade Média. Eram uma classe guerreira que defendia a cristandade de invasões bárbaras e com a qual o Rei precisava negociar. Em tempos de paz, também tinham um papel importante: eram obrigados por lei a socorrer os camponeses que estivessem em penúria. Em resumo, os plebeus tinham o trabalho ordinário da paz e os nobres constituíam uma casta guerreira responsável por manter o bem-estar dos seus servos.
O drama do século XVIII, para Tocqueville, era a nobreza ter se demitido de seus deveres públicos, transferido-os para o Rei e se contentado em receber dinheiro. Ele crê que a tendência do poder é a de se unificar; e, quando a elite abre mão dele, o seu quinhão de poder irá gradualmente passando às mãos do poder central.
Uma coisa interessante do Ancien Régime para pensarmos a realidade brasileira é a transferência da caridade das mãos da nobreza para a burocracia do Rei. Somos levados a crer, tanto por esquerdistas do Bem-Estar Social quanto por liberais de Chicago, que a ideia de usar o poder central do Estado para transferir riqueza para indivíduos é nova, coisa do século XX. Com Tocqueville, vemos que não é.
Assistência social no Ancien Régime
Cito Tocqueville, que começa se referindo a leis que obrigavam os senhores a socorrerem os camponeses em penúria: “Não existia mais na França nenhuma lei semelhante. Como haviam sido tirados do senhor os antigos poderes, ele fora subtraído de suas antigas obrigações. Nenhuma autoridade local, nenhum conselho, nenhuma associação provincial ou paroquial havia tomado o seu lugar. Ninguém estava mais obrigado por lei a se ocupar dos pobres do campo; o governo central bravamente tomara a tarefa de prover sozinho as suas necessidades.
“Todos os anos o Conselho [do Rei] atribuía a cada província, sobre o produto geral das taxas, certos fundos que o intendente distribuía em socorro das paróquias. Era a ele que devia se dirigir o camponês necessitado. Nos tempos de carestia, era o intendente que fazia distribuir ao povo trigo ou arroz. O Conselho dava anualmente despachos que mandavam estabelecer, em lugares que ele mesmo cuidava de indicar, oficinas de caridade onde os camponeses mais pobres pudessem trabalhar mediante um pequeno salário. Devemos crer com facilidade que uma caridade feita de tão longe era amiúde cega ou caprichosa, e sempre muito insuficiente.
“O governo central não se limitava a vir ao socorro dos camponeses em suas misérias; pretendia ensinar-lhes a enriquecer e ajudar-lhes e forçar-lhes. Para isto, fazia distribuir de tempos em tempos por seus intendentes e subdelegados pequenos escritos sobre a arte agrícola, fundava sociedades de agricultura, prometia abonos […].
“Às vezes o Conselho resolvia obrigar os particulares a prosperarem, quisessem eles ou não. Os despachos que obrigavam os artesãos a se servir de certos métodos e fabricar certos produtos são inumeráveis; e, como os intendentes não conseguiam vigiar a aplicação de todas essas regras, havia inspetores gerais que percorriam as províncias para colocá-las à mão.
“Há despachos do Conselho que proíbem certas culturas em certas terras que o Conselho declara pouco próprias. Encontram-se alguns em que ele ordena que se arranque vinhas plantadas, segundo ele, em mau solo, do tanto que o governo já passara do papel de soberano ao de tutor.”
Vemos então que são tão velhas quanto o Ancien Régime a ideia de fazer caridade impessoal e, também de maneira impessoal, “ensinar a pescar” em vez de só “dar o peixe”.
Fome Zero, Bolsa Família e Auxílio Brasil
Como a força do dinheiro era novidade no Ancien Régime, essa transferência de riqueza se dava por meio de gêneros alimentícios. No espírito do Ancien Régime, porém, o PT tentou criar o Fome Zero, que recolhia gêneros alimentícios para distribuí-los a famílias cadastradas.
Escutei aqui pelo interior do Nordeste que existe o hábito de as pessoas necessitadas baterem à porta da prefeitura para pedir uma cesta básica. Parece ser um hábito cujo status legal é consuetudinário e permanece inquestionado. Os funcionários da prefeitura conhecem a pessoa que pede a cesta e, se descobrem que foi trocada por droga depois, não dão nunca mais. Outra coisa usual é senhoras religiosas passarem de porta em porta pedindo alimentos para doar a uma família necessitada em particular. Ouvi que a prefeita dá cidade está com moral por ter conseguido, com João Roma, cestas básicas para distribuir a famílias necessitadas. Penso que há mais chances de uma prefeitura de cidade pequena distribuir um benefício social limitado com escrúpulos do que o poder central. (Friso que limitado, porque, se for farra bancada pela União, vira compra de votos.)
É possível que os petistas soubessem desses costumes de distribuir alimentos e o Fome Zero original tenha tido o propósito justamente de fortalecer o poder federal em detrimento dos municípios.
Os liberais do primeiro governo Lula criaram o Bolsa Família, uma unificação e expansão dos programas sociais de FHC, pensados a partir de então conforme a noção de imposto negativo (segundo Marcos Lisboa). O Bolsa Família, porém, exigia uma contrapartida das famílias, que era a presença das crianças na escola. Se a criança entra e sai analfabeta, não importa: o que importa é que o poder central queria “ensinar a pescar”, e um agricultor numa cidade de IDEB risível não tinha nenhuma razão para achar que era melhor botar o menino pra carpir um lote do que pra ficar numa escola com coleguinha traficante.
Todo professor sabe que a pior coisa em sala de aula é aluno que não quer aprender e não sai da sala. E coincidem também com o período pós Bolsa Família as queixas de violência em sala de aula cometida contra os professores.
Não é de admirar: se você condicionar o auxílio à frequência escolar, o ambiente escolar será tensionado. Tanto por professores que vão se sentir culpados caso deem ausência, quanto pelos “dimenó” que podem coagir o professor a dar presença.
No futuro Auxílio Brasil, fala-se em introduzir meritocracia, premiando o aluno que tiver notas boas. Obviamente, isso acarretará mais pressão sobre o ambiente escolar.
Caminhamos para mais centralização e tutela. Penso que deveríamos repassar aos municípios as responsabilidades por assistência social e, por assim dizer, desfederalizar o Bolsa Família.
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