O filósofo Olavo de Carvalho quando morava em Curitiba, em 2004, durante entrevista para a Gazeta do Povo.| Foto: Rodolfo Bührer/Arquivo Gazeta do Povo
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Em 2012, a Vide Editorial publicava o debate entre Olavo de Carvalho e Alexandre Dugin sobre a nova ordem mundial. Àquela altura, o debate era marginalíssimo, feito, aparentemente, entre dois esquisitões sem relevância para o país. No entanto, em 2018 o Brasil conheceu Olavo de Carvalho por meio da eleição de Bolsonaro. E agora, em 2022, Dugin começa a despontar no cenário nacional: seja por causa das querelas internas à esquerda (com os progressistas chamando os duguinistas de fascistas), seja por causa das querelas internas à direita (com Dugin sendo chamado de comunista), seja ainda por causa da aproximação com o Exército (cuja Escola de Guerra o convidou para palestrar). Além, é claro, de ser apontado como guru de Putin, tal como Olavo era apontado como guru de Bolsonaro.

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Ali por meados dos anos 2000, na época do Orkut, começou-se no Brasil a discutir tradicionalismo e a ler autores proibidões da direita europeia – tais como Julius Evola (1898 – 1974), René Guenon (1886 – 1951) e Alain de Benoist (1943). Fazem coro contra a modernidade, o liberalismo e evocam um misticismo natureba para a esfera pública. São proibidões por de fato terem pontos de contato com o fascismo histórico; ainda assim, nenhum deles é mais comprometido com o nazismo do que Martin Heidegger (1889 – 1976), que todo comedor de quinoa acha muito bonito e ninguém cancela.

Tanto Olavo como Dugin partilham dessa bibliografia e tinham uma base de jovens admiradores brasileiros que estudavam esses proibidões e gostavam de discuti-los online. Assim, em 2011, os duguinistas e os olavetes falaram com seus respectivos mestres para organizar um debate por escrito. Primeiro Dugin escreveria, depois Olavo, e então haveria réplicas e tréplicas, seguidas pelas conclusões. O título do livro – Os EUA e a Nova Ordem Mundial – condizia com a maior discordância entre ambos, qual seja, o papel que os EUA desempenham na promoção do globalismo.

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A hipótese de Dugin

Dugin acredita que em 2011 o mundo vivia um período indefinido que ele chamava de Transição. Saíramos do mundo unipolar, no qual os EUA eram o único polo de poder, com vistas a chegar a um mundo multipolar, com vários polos de poder. Nos anos 90, após a vitória dos EUA sobre a URSS, Francis Fukuyama expressara a ideologia dominante: a humanidade alcançara o Fim da História, e o mundo viveria uma democracia e um livre mercado globais. Não haveria mais conflitos ideológicos. No entanto, o mundo árabe mostrou que não é assim que a banda toca (vide as tentativas de impor a democracia liberal na marra); além disso, a China despontou como uma adversária à altura, com seu modelo que combina ditadura e mercado.

Para resolver o problema e tentar conduzir o mundo de volta à unipolaridade, os EUA têm três correntes distintas: os neocons querem fazer do mundo um grande Iraque e impor a democracia e o livre mercado na marra; os multilateralistas querem fazer a mesma coisa, mas com o auxílio de países sócios; e os globalistas querem destruir Estados nacionais da maneira mais rápida possível – coisa que fatalmente levaria a uma instabilidade muito grande. Os neocons falam em nome dos EUA; os multilateralistas, do Ocidente, e os globalistas são muito nebulosos. Dugin achava que os EUA agiam segundo as três correntes ao mesmo tempo. Hoje eu creio que os neocons não estão com nada.

Quanto aos desejos particulares das elites globais, cito o resumo que seu pupilo Giuliano Morais fizera na apresentação: “No plano econômico, consistiria na imposição completa e obrigatória ao mundo inteiro do sistema de mercado capitalista; no plano geopolítico, seria a predominância absoluta dos países do Ocidente histórico-geográfico em relação ao Oriente; no plano étnico, consistiria no fomento da miscigenação indiscriminada, no combate a qualquer unidade racial, nacional, étnica e cultural localizadas; e, finalmente, no plano religioso, a Nova Ordem Mundial prepara o surgimento de certa figura mística que desvelará uma nova religião que unificará a humanidade”. Quem está por trás disso? “Os ideólogos da chamada Comissão Trilateral, do Grupo de Bilderberg, do Conselho Americano de Relações Exteriores e de diversos pensadores que estão a serviço do mundialismo internacional”.

Para Dugin, os EUA, enquanto país, Estado e cultura, são agentes desse complô de capitalistas. Eles impõem o americano como universal e visam à destruição de culturas particulares. Quanto à miscigenação – difamada e combatida no Brasil pelos progressistas – creio que Dugin possa considerar, à maneira integralista, que o Brasil tenha uma raça mestiça, de modo que fomentar apartheid sexual implique dissolver a brasilidade.

Como o projeto globalista atenta contra a soberania nacional, Dugin considera que é do interesse de todos os Estados ficar contra a unipolaridade sediada nos EUA. Ele lista quatro tipos de países conforme a postura adotada: os que fazem malabarismos para manter relações amigáveis com o Ocidente os EUA, mas se empenham em não perder a soberania (em 2011 ele colocava o Brasil e a Rússia nesse bloco); os que cooperam sem admitir interferência em assuntos internos (como a Arábia Saudita); os que cooperam e filtram as influências ocidentais (China) e os que fazem oposição aberta (Irã, Venezuela e Coreia do Norte).

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Dugin considera que todos os Estados e religiões tradicionais deveriam cooperar entre si para conter o projeto globalista unipolar e criar o mundo multipolar.

A visão culturalista de Olavo

Creio que muito da discordância entre ambos vem do que seria importante considerar como um país. Os EUA, para Dugin, são as elites e o Estado dos EUA. Para Olavo, os EUA são o país que mais faz caridade privada, são cristãos muito bons, são uma sociedade de cultura marcadamente comunitária, de índole avessa à ideia de uma caridade estatal. Essa sociedade de valores comunitários é boa em si mesma, e isso são os EUA para Olavo.

Olavo, como explica meu colega de faculdade Ricardo Almeida na apresentação, tem uma filosofia aberta, sem esquemas fechados, feita enquanto se responde aos problemas que vão surgindo. Além disso, ele não tem uma hipótese tão fechadinha quanto a de Dugin. Ele está de pleno acordo quanto à existência de uma elite globalista que tenta impor seus valores totalitários a todo o mundo, regulando cada aspecto da vida privada – vide as demandas cada vez mais invasivas do politicamente correto. Mas a elite dos EUA é antinacional e apátrida. Para Olavo – e eu concordo com ele nisto –, Dugin erra ao chamar isso de capitalismo. Para designar o fenômeno, ele cunhou a expressão “metacapitalismo”; os metacapitalistas são “capitalistas que enriqueceram de tal modo no regime de liberdade econômica que já não pode continuar se submetendo às flutuações do mercado”. Os metacapitalistas se empenham em corromper e controlar os Estados; por isso, financiam comunistas e socialistas porque estes querem sempre aumentar o poder do Estado sobre os indivíduos.

Assim, os metacapitalistas se associam culturalmente a países. Ele fala então muito mal dos chineses e dos russos, atribuindo todas as mortes dos regimes comunistas aos povos desses regimes. Com essas contas, prova “objetivamente” que os russos e os chineses são mais malvados que os norte-americanos, porque o saldo do comunismo é maior do que o das bombas de Hiroshima e Nagasaki.

Para Olavo, os metacapitalistas compõem um Consórcio que compra governos e tem nos socialistas os seus maiores aliados. Por isso, Rússia e China compõem um bloco de poder alinhado com o bloco globalista. Há três blocos de poder: o ocidental, o russo-chinês e o islâmico. No primeiro mandam os financistas e banqueiros; no segundo, os herdeiros da Nomenklatura soviética; no terceiro, teocratas. “Pela primeira vez na história do mundo,” diz ele, “as três modalidades essenciais do poder – político-militar, econômico e religioso – se encontram personificadas em blocos supranacionais distintos”. E entre eles Olavo não prefere nenhum; alega que os russo-chineses estão mancomunados com os financistas e, ao mesmo tempo, financiam o terrorismo islâmico.

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A Dugin o que é de Dugin

O tempo provou que Olavo estava redondamente enganado quanto ao conluio entre a Rússia e os globalistas. “A Rússia e a China não são apresentadas jamais como possíveis agressoras, mas como aliadas do Ocidente”, diz ele para inferir que “a ideologia do globalismo ocidental fala como se já personificasse um consenso universal estabelecido, só hostilizado por grupos marginais e religiosos um tanto insanos”. Ora, a questão da Ucrânia e os ataques à “masculinidade tóxica” de Putin mostram que os globalistas veem na Rússia uma grande vilã. Além disso, o cercamento da Rússia pela OTAN mostra que essa perspectiva não é de agora. E nunca é demais lembrar que a “democracia” da Ucrânia tem, como membro do Estado, um batalhão neonazista antirrusso, com poder sobre uma população de língua russa que gostaria de separar da Ucrânia. Aí não vale autodeterminação dos povos.

Quanto ao culturalismo, me parecem acertadas as afirmações de Dugin de que os EUA vivenciados por Olavo são irrelevantes para a análise geopolítica. Olavo se mudou de uma grande cidade brasileira para uma cidade da interiorana Virgínia e ficou encantado com o espírito comunitário tão comum fora das metrópoles. Ora, um estrangeiro poderia se mudar para o interior do Piauí, encontrar muitos católicos fervorosos e se encantar com o verdadeiro espírito das raízes brasileiras, contrários aos do Leblon. O espírito do interior do Piauí seria irrelevante para avaliar a atuação do Brasil, um membro do Foro de São Paulo. Antropologia não substitui geopolítica – ainda mais quando se trata de uma subcultura periférica. O dado do afastamento entre as elites e o povo sem dúvida é relevante, mas é generalizado pelo mundo. A Rússia provavelmente é uma exceção – vide a liberdade que um russo tem para falar que mulheres não têm pênis, em comparação com a Inglaterra ou até o Brasil.

Dugin não negligencia a cultura. Ele acusa a “globalização do mundo e a instalação em todos os cantos do controle Americano, incluindo a intrusão direta em países nominalmente soberanos, a promoção do modo de vida americano e a uniformização das diferentes sociedades humanas, […] a contaminação da sociedade russa pelos padrões decadentes do consumismo e o apoio a regimes antirrussos no espaço pós-soviético”. A propaganda de uma cultura americana corrompe, então, as culturas dos países. Quanto a isso ser promovido pelo Estado, nunca é demais lembrar que os EUA tacaram ideologia de gênero no Afeganistão e botaram cota para mulher em parlamento. E se há algum país responsável por colocar o prazer solipsista como meta de vida – alcançável pelo uso de drogas, pelo sexo sem reprodução e pela compra de bugigangas –, esse país certamente não é a Rússia nem a China. Os EUA são um agente cultural pernicioso e muito perigoso. Não creio que sejam só isso, mas tenho certeza de que são isso também. Quem quer que reprove a Planned Parenthood e a Fundação Ford terá de concordar com isso. E bom, vendo Simone Tebet, a mais nova identitária do MDB, devo subscrever isto que Dugin diz: “a elite globalista dos EUA […] corrompe nossa elite política, a sociedade, o país”.

No mais, ele tem toda a razão ao não engolir a conversa de Olavo ser científico e imparcial. Dugin seria praticamente um agente da KGB, enquanto que Olavo se gabava dizendo que “nenhum partido político, movimento de massas, instituição governamental, igreja ou seita religiosa me tem na conta de seu mentor”. O tempo provou que ele estava errado. Referindo-se a ambos, menciona a “assimetria dos papéis respectivos do agente político [i. e., Dugin] e do observador científico [i.e., Olavo]”. Eu esperava mais dele.

Dizer que se é “objetivo” e “científico” por calcular maldade com número de mortes é ridículo. É como se um ditador alemão não pudesse ser tão mau quanto um ditador chinês, já que a demografia o impede de atingir a maldade máxima.

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A Olavo o que é de Olavo

No que concerne a fatos políticos, me parece que Dugin dá um banho em Olavo. Onde Olavo acerta, porém, é numa crítica epistemológica de valores. Dugin protesta contra os EUA alegando que nenhuma cultura deveria poder julgar outra cultura – chega até mesmo a fazer etimologia para dizer que “realidade” é uma construção social latina. Isso é expediente de heideggeriano e é coisa afeita ao nazismo (bem como ao identitarismo). Todas as raças/culturas se tornam incomunicáveis graças a um samba do crioulo doido etimológico. Assim, falar de “realidade” seria “racismo intelectual”. A isto, Olavo responde: “Toda acusação de racismo, com ou sem aspas, toma como pressuposto a igual dignidade de todas as raças, que é um conceito universal fundado na uniformidade geral da natureza humana. A negação da identidade universal da natureza humana em nome da diversidade das raças e culturas faria destas o limite intransponível de todo conhecimento humano, justificando automaticamente, por exemplo, a incomensurabilidade de uma ‘ciência judia’ e uma ‘ciência ariana’. Tertium non datur: ou existe uma natureza humana universal, ou nada se pode argumentar contra o racismo”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]