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Cientistas têm vieses. Quem defende isso não são só os pós-modernos malucos; é gente como Karl Popper também – um dos poucos filósofos da ciência que cientistas levam a sério. E o viés mais natural aos cientistas é querer defender os seus rebentos, isto é, as suas próprias teorias. Mas em vez de exigir que os cientistas se tornassem imparciais e que tratassem tão bem os rebentos dos coleguinhas quanto o seu próprio, Popper achava que era bom haver cientistas apaixonados defendendo as suas teorias o melhor que pudessem – desde que os concorrentes pudessem fazer o mesmo. Assim, tinha-se uma espécie de luta pela vida das teorias, em um processo que emula o da seleção natural. O diferencial da humanidade civilizada seria a substituição do assassinato do rival pela destruição argumentativa de suas ideias.
Mas é possível que esse esquema popperiano fracasse sem que sequer haja censura. Basta haver derrota por W. O. Muita tinta já correu sobre a ideologização da classe acadêmica. Mesmo que conseguíssemos tornar mais justos os critérios de contratação de pesquisadores, não estaria resolvido o problema da autosseleção; isto é, o fato de que gente de um determinado perfil ideológico decide fazer um determinado curso e não fazer um outro tipo de curso. Dificilmente você vai ver um tipo absolutamente comum, com o mesmo ideário do brasileiro médio, dizer “Vou cursar ciências sociais!”. Gente comum cuida de ganhar dinheiro com coisas práticas; não vai para a universidade com o fito de entender grandes questões do conhecimento. Trocando em miúdos, a pesquisa acadêmica é para-raios de ideólogo. Pode ser darwinista, pode ser comunista, pode ser liberal de modess, pode ser anarcocapitalista, pode ser progressista. Fato é que dificilmente será um homem comum. E isso é um problema, porque, seja na formulação de políticas públicas, seja em questões de saúde, fato é que a ciência afeta a vida das pessoas. E muitas vezes há uma confusão imensa, à qual os ideólogos são tão propensos, de confundir fato e valor. Para ficarmos no mais caricatural dessa confusão, voltemos ao exemplo da agência de checagem de fatos que queria porque queria banir o termo “criado mudo” como racista. Ora, ainda que a história fantasiosa de que os escravos negros ficavam plantados à cabeceira sem dar um pio fosse verdadeira, isso não significaria que quem usasse a expressão hoje é um racista. A etimologia é uma ciência justamente porque as pessoas usam as palavras sem saber de suas origens. Da etimologia não se pode extrair prescrição moral nenhuma.
A decisão das questões
Se não podemos obrigar homens comuns a seguirem a carreira acadêmica, o que podemos fazer no Brasil é reduzir a autonomia dos acadêmicos na definição dos objetos de pesquisa. Por exemplo: cá com os meus botões, tenho para mim que o Estado brasileiro fomenta a formação de lares antissociais, com mulheres predatórias que criam psicopatinhas. Mas eu não tenho como provar que o Estado está errado, porque eu não sou cientista social e, mesmo que fosse, não teria um laboratório para conduzir uma pesquisa. Enquanto isso, os cientistas sociais brasileiros que dispõem de laboratórios ficam fazendo umas pesquisas que visam a justificar suas teorias malucas eivadas de imperativos morais que ninguém questiona – porque afinal de contas foi “a ciência” quem disse que tem que descriminalizar todas as drogas e parar de prender traficante para dar um jeito na violência do Brasil. Tem cientista social que acha que a desestruturação familiar, e não fantasmagorias como o “racismo estrutural”, explica a violência no Brasil? Tem. Posso citar Eduardo Matos de Alencar, que não tem um laboratório para chamar de seu. E que eu aposto que nunca vai passar num concurso de federal, porque a forma de contratação de professores é perpetuação de panelinha. Muitos brasileiros acham que a liberalização da posse de arma desencoraja a violência – e um raro jurista contrário ao desarmamentismo, em artigo para esta Gazeta, usou os dados públicos para mostrar que os brasileiros comuns têm mais chances de estar corretos do que a penca de cientistas sociais de federais. Ele pôde fazer isto porque o Estado recolhe dados. Mas se o cientista social quiser mais detalhes sobre a família, terá que montar sua própria base de dados, e para isso é necessário financiamento.
Seja como for, no frigir dos ovos, uma panelinha de ideólogos impõe seus valores à sociedade no que concerne à segurança pública e a algo tão basilar quanto a organização familiar.
Outro exemplo, as creches
Hoje é fácil encontrarmos apologistas da creche. Das duas, uma: ou é porque o lar se degradou muito, ou é porque a água da ideologia tanto bateu na pedra do senso comum, que a furou. Com o progressismo, a “ciência” decidiu que a mulher tinha que se realizar fora do lar, no trabalho, legando a prole à creche. Cito o melhor historiador do progressismo nos EUA: “Talvez uma razão de as mulheres preferirem criar seus próprios filhos seja que, intuitivamente, elas compreendam que, tudo o mais sendo mantido igual, a creche, de fato, não é uma coisa boa para crianças. O dr. Benjamin Spock sabia disso desde 1950, quando escreveu que as creches ‘não faziam nenhum bem aos bebês’. Mas, quando reeditou o Meu filho, meu tesouro na década de 1990, retirou aquele conselho, curvando-se às pressões feministas. ‘Foi um ato covarde meu’, admite ele. ‘Eu simplesmente joguei isso fora nas edições seguintes. Se, como os liberais frequentemente sugerem, a supressão da ciência para fins políticos é fascista, então a campanha para ocultar o lado negro dos cuidados infantis certamente conta como fascismo. Por exemplo, em 1991 a dra. Louise Silverstein escreveu na American Psychologist que ‘os psicólogos precisam se recusar a fazer qualquer pesquisa sobre consequências negativas de cuidados que não sejam os da mãe.’ A concepção tradicional de maternidade é nada mais que um ‘mito idealizado’ concebido pelo patriarcado para ‘glorificar a maternidade numa tentativa de encorajar mulheres brancas de classe média a terem mais filhos’” (Jonah Goldberg, Fascismo de Esquerda [Liberal Fascism], p. 393). Moral da história: para se estabelecer um consenso científico que guia a moralidade pública, basta uma panelinha de cientistas com uma moral muito peculiar decidir que não vai pesquisar tal assunto. Cá com meus botões, me pergunto se a queda do QI no primeiro mundo não é resultado da implementação da educação progressista, já que o QI não é 100% determinado pela genética. Mas tudo o que eu tenho são botões.
Não seria o caso de o Estado definir as questões que a ciência tem que investigar? O passado da Embrapa prova a necessidade e a capacidade de o Estado produzir ciência. Se a ciência pública vai mal hoje, isto não é uma decorrência necessária do caráter público da ciência. Tampouco é algo que não possa existir no presente, já que o IMPA é uma instituição pública brasileira de elite.
E as maravilhas do mercado?
Se o governo resolver bancar uma “ciência” que diga que mudar de sexo é uma beleza, temos uma questão de valor, e o governo pode ser punido nas urnas. No atual estado de coisas, essa “ciência” passa por uma questão de Estado e é bancada independentemente da vontade do povo expressa nas urnas. No Brasil, onde o financiamento da ciência é público, nosso problema mais velho é o desenho institucional que permite que a ciência seja dominada por panelinhas de ideólogos. Mas já faz um tempo que tem se disseminado surgido entre nós a “ciência” da Fundação Ford e da Open Society, que financiam ONGs e até pesquisas de universidades públicas. Nesse caso, a coisa é pior ainda, porque a sociedade não pode ter controle absolutamente nenhum sobre tais entidades privadas. A Verdade é o que elas estabelecem, e não há meios de bancar pesquisas que as contradigam. Quem determina quase sozinho o que é a Verdade acaba mandando na democracia. É verdade que empresários com ideologia próxima à do homem comum têm liberdade para criar Fundações e fomentar pesquisa. Mas fato é que não fazem, e que essa não é sua obrigação.
Olhemos então para os EUA, a terra das liberdades, lugar de grande produção científica. A última novidade por lá, segundo conta O Globo em manchete e legenda, é que “poucas crianças transgênero mudam de ideia após 5 anos, diz estudo. A pesquisa também afirma que a descoberta da transexualidade no começo da infância não é motivo para descartá-la em nome da imaturidade da criança”. Alguns estados dos EUA têm feito leis para impedir que professores de pré-escola ensinem teoria de gênero para crianças, bem como a terapia de mudança de sexo em menores. Prontamente a “ciência” se apresentou, com sua conclusão normativa em baixo do braço: “Os pesquisadores acompanharam 317 crianças nos Estados Unidos e Canadá que passaram pela transição social [i. e., mudar de nome e roupas] entre os 3 e 12 anos. Em média, os participantes fizeram a transição de gênero entre os 5 e 6 anos e, cinco anos mais tarde, a maioria do grupo ainda se identificava com o novo gênero. Além disso, muitos começaram a tomar medicamentos hormonais na adolescência […]. Mas, do outro lado, cerca de 2,5% do grupo voltou a se identificar com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. À medida que a tensão aumenta nos tribunais e nas câmaras estaduais de todo o país sobre os cuidados de saúde apropriados para crianças transgênero, há poucos dados concretos sobre desenvolvimento a longo prazo”.
Para quem estiver inteirado do livro de Abigail Shrier de 2020, Irreversible Damage, não há surpresas. Inclusive uma crítica feita à medicina trans é que ela não informa aos pais que quase 100% dos adolescentes que tomam bloqueador hormonal após a transição social “escolhem” ser do sexo oposto. Uma vez que os pais transijam com a ideologia, a criança não sai dela. Outra coisa que ela criticava é a falta de informação sobre os riscos à saúde. Bloqueador hormonal dá osteoporose; mulheres que se entopem de testosterona veem aumentar suas chances de ter problemas cardíacos, além de ficarem com a vagina seca e atrofiada. Segundo registrou Shrier, os psiquiatras e psicólogos que lidavam há décadas com crianças e adolescentes com disforia de gênero sofreram uma verdadeira caça às bruxas promovida pelos conselhos de medicina e psicologia. Antes, o quadro empírico que eles tinham era o seguinte: criança pequenininha (em geral menino) dizendo que é do sexo oposto, até vir a puberdade, a disforia passar e o menino se assumir gay. Na puberdade, na prática, era a cura da disforia. Assim, se você der bloqueador hormonal com o fito de pausar a puberdade, era de se esperar que a disforia continuasse mesmo. O papel do terapeuta era conversar e ajudar o paciente a ficar em paz com o próprio corpo. Só uma ínfima minoria, cuja disforia não passava de jeito nenhum e tinha ideações suicidas, mudava de sexo. O ativismo passou a considerar que isso era transfobia, e o único tratamento aceitável é o “tratamento afirmativo de gênero”, ou seja, quando a criança diz “eu sou uma menina” e todo mundo – desde o terapeuta à família – está obrigado a dizer “é mesmo”, e a passar a tratar por um novo nome. Depois vem a castração química (bloqueador hormonal).
Nesse caso, cientistas com décadas de pesquisa foram silenciados pelos conselhos. Desde então, a mudança de sexo caminha para ser considerado um direito humano básico, a ser bancado pelos seguros de saúde nos EUA, NHS na Inglaterra e, como não, o SUS no Brasil. Ou seja, essa teoria científica rende uma bolada para a indústria farmacêutica. Não é uma teoria ousada demais imaginar que esta tenha razões e meios para corromper os conselhos, promover a caça às bruxas dos terapeutas tradicionais e impor a “terapia afirmativa de gênero”. Essa é uma teoria menos ousada ainda num país cuja cultura é antiestatista e em que ninguém acha estranho a indústria farmacêutica bancar pesquisas da área de saúde que depois orientam leis.
Aí a “ciência” manda castrar criança, enquanto a democracia fica de mãos atadas, com o povo passando por um bando de ignorantes, sem ninguém que possa defendê-lo à luz da razão e da ciência. Trata-se, ao cabo, da privatização da ciência em si mesma.